Tuesday, February 15, 2005

Olhares Algarvios

(...) Aí, as águas do Arade desaguam no mar, entre molhes ainda envolvidos por estaleiros e obras. Cá de cima, é possível ver imensos cardumes, além de vigias e outras embarcações obsessivamente rodeadas por nuvens de gaivotas. Do outro lado do rio, para os lados de Ferragudo, uma outra fortaleza complementa a tarefa secular de defesa da barra. Dessas eras imemoriais, restará, hoje em dia, a ousadia com que ambas as fortalezas se intrometem na paisagem, leve e abrupta.
Leve, porque estas rochas detêm em si a mansidão do ocre, a indolência dos sedimentos estratificados pelo tempo, um quase encanto que trazem da antiga respiração das algas. Abrupta, porque estas rochas caem desabridamente sobre a areia, como se tivessem sido levantadas pela ancestral fúria do mar que, ao erigi-las na direcção do céu, logo as baptizou com o nome de falésia. Roberto entra, por fim, na ampla esplanada da Fortaleza da Rocha. Intuitivamente, vira-se para o Poente, - esse lugar que dá o nome ao próprio Algarve, o Gharb árabe, ou seja, o ponto exacto onde o sol, todos os dias, se põe. Muito longe estamos ainda do ocaso e é, por isso mesmo, que Lagos, do outro lado da ampla baía, fecha, neste momento, o horizonte ao contínuo olhar de Roberto.

Do romance As Saudades do Mundo (Editorial Notícias, Lisboa, 1999).

Irineia continua de branco, a esvoaçar o olhar de um lado ao outro da imensa vista, dominada pelo espectáculo do céu escuro e estrelado a transformar-se, a pouco e pouco, na película espessa e aquosa do monstro que se aventura pelos baixos céus. E foi assim, sem dotes, nem avisos, que a obscuridade da neblina mais escura avançou desde o areal da praia até este terreiro por urbanizar e sempre cheio de tirs e kits de guindastes, muros em derrocada, estátuas apeadas e camiões abandonados. Pouco depois, a descomunal nuvem branca já cobria toda a cidade de Porto-de-Mão.
Como se reagisse a este brilho da natureza galopante, Irineia levantou-se com vagar, abriu os braços e colocou as mãos muito afastadas sobre o gradeamento da varanda. Levantou a voz e cantou com grão muito fino uma melodia bizarra, de que não me lembro sequer o refrão, ou o escorço do ritmo. Por cima, ao lado e em frente, o olhar de Irineia apenas só já dominava um espaço que era, no mínimo, opaco e baço. E, talvez por isso, Irineia tinha ficado meio hipnotizada e imóvel, diante desta barreira ou toada embaciada que, do asfalto das vias às alturas, mais não era do que uma vista obscurecida de útero fechado, tal o excesso do nevoeiro e a diminuta visibilidade.
Irineia parecia como que observar um balão às voltas, sacudido na turbulência da noite, mas via-o a partir do centro, de dentro, encandeada que estava pelas luzes turvas e deformadas e pela verdadeira anamorfose de candeias às avessas em que a vida, de tão toldada, se havia lentamente transformado. Nessa esfera fechada e alimentada por mínimas membranas de água, Irineia via a cidade reflectida na curvatura do céu e o vestígio das constelações reflectido na curvatura líquida do terreiro. Um caleidoscópio de vista a segredar o prodígio deste estio de espantos.
(...) Fosse como fosse, Irineia não vacilava e mantinha-se de pé, estóica, com os braços esticados e os dedos transformadas em tenazes de rapina, curvados e quase cravados nas grades da longa varanda, a face avermelhada e cheia de suor, os lábios abertos a cantarolar aquela melodia bizarra com voz de tal maneira fina que fazia lembrar o tinir dos fios eléctricos na montanha, em invernia longínqua de vendavais.

Da novela A Sereia de Porto-de-Mão (DN A, Lisboa, 6/10/01)

(...) Ao fundo, um homem muito alto vagueava de um lado para o outro da fortaleza, olhando, de forma abismada, para as escarpas que, a pique, se despedem da incontida fúria do Oceano. Quando nos viu, aproximou-se e falou sem parar. A maior parte do tempo fê-lo, olhando para a minha mãe:
- É verdade, é verdade, dizem que os Fenícios foram os primeiros a dobrar este cabo sagrado. Mas, depois, mais tarde, os Romanos viriam a chamar-lhe o Promontório Sacro e dizem que terão mantido, por aqui, os velhos cultos a Héracles, o filho de Zeus. Os Moçárabes para aqui também trouxeram as suas peregrinações ibéricas, assim como, mais tarde, os portugueses atribuiram a este mesmo cabo o local de uma escola naval. Terá mesmo existido aqui ? Não se sabe. Talvez. O que se sabe é que isto é a boca do Mare Nostrum, nome antigo do Mediterrâneo, o mar do centro do mundo. Para o cronista de língua árabe Edrisi, aqui confluíam o Mar Tenebroso e a doce terra do cabo. Aqui se foram depositando, portanto, as lendas que vinham de muito longe; de ambos os lados: quer do Atlântico tenebroso, quer do Mare Nostrum. É por isso tudo que este lugar é diferente, ou seja, à parte, separado do resto. Reparem: separado de quer dizer sagrado. É por isso que estaremos em Portugal. É tudo. Adeus.
Quem o disse foi de facto um homem muito alto, calvo, que falava um Português arranhado. Estava ali sozinho, pisando a rosa dos ventos que desenharam no chão desta fortaleza meio abandonada. Depois... partiu de repente, foi-se embora; ouviu-se ainda um carro ao longe a partir. Quem seria ? Por que nos falou ? O pai parecia olhá-lo com muita atenção e até reverência, como se fosse normal alguém subitamente começar a explicar as origens do próprio Cabo de Sagres; a mãe, por seu lado, ficou pasmada, nervosa, quase tremia quando o homem partiu. Porquê ? Quem seria ele ?

Do romance As Saudades do Mundo (Editorial Notícias, Lisboa, 1999).

Se percorrermos a imensa longitude da Eurásia - do extremo siberiano até ao nosso Gharb - chegamos a este Sul de Portugal e nele veremos a forma com que os pássaros, quando em migração, voam em cunha. De Lisboa até ao Promontório de Sagres e, de Vila Real de Santo António até esse promontório, há muito sagrado, parece, de facto, formar-se a cunha com que a extremidade do gigante continente se abisma ao olhar para o espesso oceano.

Do ensaio Sob o rosto da Europa (Editorial Pendor, Évora-Lisboa, 1997).

(...) Pouco mais te lembras agora, a não ser daquela luz que avançou até ti, como se fosse uma explosão nuclear, como se fosse a realização duma destas viagens apocalípticas, como se fosse a imagem móvel de um desses cometas pintados por Van Gogh, como se fosse nada. E na frente dessa luz, desse nada, desse inabalável cometa, Ricardo jura-o, - Clara rasgara definitivamente a roupa e doara toda a sua nudez. Abrira-se, como uma flor da manhã, no meio da seda branca e do suor que a desnudou de súbito. Como se o momento de há quinze anos, naquele Hotel Beira-Rio de Vila Real de Santo António, agora se concretizasse. Qual faúlha de desejo no meio da eternidade. E, é verdade, é preciso dizê-lo, - sentiste, de facto, nessa altura precisa, que Clara te apertava as mãos com muita força. Para que atravessasses a ponte. Para que a ladeira íngreme fosse cumprida.

Da novela O Cometa (DN A, Lisboa, 26/06/1999)

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