Saturday, June 23, 2007

Uma Caixa de Música Sibilina

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UMA CAIXA DE MÚSICA SIBILINA
REVISITANDO A OBRA DE ALMEIDA FARIA

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(homenagem a Almeida Faria. Montemor-o-Novo. 22 de Junho de 2007)
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1. O apelo oracular
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Há vinte anos, estava a escrever uma tese sobre a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria. O trabalho acabou por ser premiado pela APE, mas, curiosamente – uma curiosidade ainda hoje não racionalmente saciada – pouco ou nada fiz para que fosse publicada. Este absurdo tem bastante peso, diria um peso impostulável, na medida em que não sou um autor propriamente económico. Com efeito, em vinte e seis anos de vida literária e ensaística, tenho mais de trinta livros publicados. Mas este volume de 246 páginas sobre a obra de Almeida Faria, que guardo a sete chaves no meu escritório, manteve-se incólume, indiferente ao tempo e à erosão emocional e sobretudo distante de questionações apressadas. Há um enigma nesta decisão, ou melhor, neste espaço de sincera indecibilidade, onde convive o fascínio, um certo apego pela preservação e o apreço pela consistência do objecto estudado e longamente analisado. O certo é que a tentação de editar fez excepção neste meu perene encontro de vida com Almeida Faria. E é a ele que devo, em primeiro lugar, esta palavra confessional.
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Isto significa que o objecto de estudo desencadeou um forte efeito hipnótico sobre o desejo do então sujeito investigador. De facto, sempre houve uma voz que me segredou do meio da malha textual de Almeida Faria. Uma voz que me alertava sibilinamente. Era, digamos, um apelo que parecia reatar um conhecido fragmento (o nº 93) atribuído a Heraclito por Plutarco[1] e onde se podia ler: "O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais". Este elogio a Apolo que relevava a harmonia entre a inscrição e o Logos colocou a nu uma sabedoria que se baseava num tipo de interpretação reversível entre conhecido e desconhecido, visível e invisível entre o dito e o ‘não-dito’. Uma tal circularidade que associa o subterrâneo da alma à geometria mais apolínea e que sabe rescrever o mundo num único esteio, amalgamando o sonho e o real, a efabulação e a experiência, a plenitude e o fragmento, é um dado que sempre me pareceu evidente em toda a obra de Almeida Faria. Aparece em Rumor Branco, atravessa o edifício de Tetralogia Lusitana, inicia O Conquistador, inunda Os Passeios do Sonhador Solitário e o recente Vanitas e revela-se ainda como acaso persistente nas incursões teatrais do autor (Vozes da Paixão e A Reviravolta).
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2. Prenunciando expressões
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Quando hoje se estuda a expressão na rede, e eu tenho um ensaio no prelo sobre o tema, há um conjunto de atributos imediatos que a clarificam. Resumi-los-ia em seis pontos: um texto que se move e que vive de permanentes agenciamentos como se nunca conseguisse estar pronto; um texto feito de muitas entradas – de uma quase sobreposição de entradas e de camadas – naquilo que se designaria por excesso de actualidade; um texto que se gera a partir do seu ininterrupto contexto e que parece querer acabar com a velha separação entre um “de fora” e “um de dentro”; um texto sempre descentrado que recusa ser corpo com princípio meio e fim e que jamais se fechará sobre si próprio; um texto que transpira devido à coexistência de registos que, no seu seio, procedem das mais variadas origens; e um texto que comunica não apenas para dizer, mas também para se representar a si mesmo… como que adiando para sempre o seu aceno denotativo. Eu não quereria dizer que a obra de Almeida Faria é pioneira desta matriz expressiva que hoje pulula criativamente na rede. Mas não deixa de ser verdade que no laboratório do escritor sempre existiu uma arrumação algo prenunciadora. Senão vejamos: a textualidade na Tetralogia é constituída por uma sequência de ecos, uma multitude de entradas que inscrevem (independentemente do fazer-narrativo) o seu “Não”, o seu “Se” e o seu “Já”, não dando nunca ao leitor a ideia de um pátio fechado onde se descansaria, onde se pararia e onde o livro e o seu “de fora” se delimitassem. A própria ideia de coexistência e de absorção de registos muito plurais acaba por atravessar a obra de Almeida Faria desde a cinematografia brusca de Rumor Branco. Por fim, a obra de Almeida Faria fala de si como uma caixa de música e alarga o seu encanto estético a um modelo de paródia que eu creio ser novo entre nós.
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3. A dupla paródia
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Eu explico-me. Ao longo do século passado, tornou-se óbvia a consciência de que o diálogo e a concatenação entre enunciados, textos, mensagens e imagens de todo o tipo constituíam um modo essencial de significar. Este novo tipo de palimpsesto, diferente daquele que na Idade Média recobria autor anónimo e lógica de suporte, recebeu designações diversas, tais como dialogismo, transtextualidade ou paródia que L. Hutcheon, em A Theory of Parody[2] (1985, p. 101), caracterizou, ao mesmo tempo, como “textual doubling (o que unifica e reconcilia) e diferenciação (aquilo que pressupõe uma oposição irreconciliável entre textos e, por outro lado, entre textos e o mundo)”. Um exemplo literário onde convivem duas eras, dois estilos e duas enunciações condensadas numa só surge no romance Cavaleiro Andante (1983), onde o protagonista, João Carlos, durante a revolução portuguesa, celebra, de modo hilariante e a sós, o 10 de Junho, dia de Portugal, através de um curioso monólogo: "Quão diferentes acho teu fado e o meu, quando os cotejo: outra causa nos fez, perdendo o Tejo, encontrar novos aires e desaires; e versos tão diversos escrevemos, os teus famosos e heróicos, a mim cabendo a vez da negativa epopeia; não te imito nos dons da natureza, nem as eras são de igual grandeza, mas ambos regressamos à lusitana praia e hoje penso em ti junto ao teu mar." (p.43). Mas o que me parece novo no modelo de paródia de Almeida Faria é que, na sua obra, incorpora-se e parodia-se simultaneamente, ao contrário da lógica corrente moderna (e pós-moderna) que fez da simples incorporação uma prática de paródia (vejam-se modelos tão diversos como a tradição da Pop Art, o Casablanca em Hélder Macedo ou o mito do Anjo Azul em Fassbinder). Por exemplo, não existirá uma paródia polifónica de Faulkner em Lobo Antunes que é audível até aos confins do horizonte? E não existirá, também, uma paródia rítmica do Padre António Vieira em Saramago que é notória mesmo nas ilhas do cabo do mundo? Eu creio que sim, do mesmo modo que se reencontra em Sollers o espaçamento plástico de Céline, pois é esse, justamente, o modo mais comum de o “Cânon” se desdobrar no tempo e, portanto, se actualizar. Por outras palavras: a maioria destes autores e tendências definiram o seu mapa criativo através de um perímetro paródico reconhecível, absorvendo-o, tendo depois aí inscrito um determinado universo literário. No caso de Almeida Faria, parece-me justamente o contrário, na medida em que, por um lado, o universo criado pela sua obra provém de uma cartografia muitíssimo mais vasta (mitologia clássica, tradição épica, narrativas de cavalaria, romances franceses iluministas, poética expressionista; toda a ruptura do Pós-Primeira Grande Guerra – de Zvevo a Kafka, de Proust a Joyce – e ainda a Nouvelle Vague, o Nouveau Roman, alguma das “travessias” de Guimarães Rosa e múltiplas oralidades) e, por outro lado, na medida em que a incorporação na sua obra é múltipla e permanente, não dando lugar à formação de um perímetro paródico reconhecível e estável. O que se incorpora na obra de Almeida Faria é, com efeito, multiforme e imenso, mas jamais ou raramente se impõe, nos processos de enunciação, aos seus textos como um modelo matricial. Este efeito de caixa de música sugere uma espécie de narcisismo literário – uma obra que parece contemplar-se a si mesma – que tem como base uma dimensão plástica única.
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4. Um design da língua literária
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Quando me refiro a “dimensão plástica” e a “única”, refiro-me a entidades que se geram num sistema literário determinado; aquele que se escreve em língua Portuguesa. Só aí se poderia escutar e perscrutar o que Alzira Seixo designou luminosamente por “sintaxe do som secreto”. A plasticidade na obra de Almeida Faria mereceria um estudo à parte, por ser, ela mesma, uma consequência do modelo de dupla paródia, ou melhor, de ‘incorporação mais paródia’, que, como se viu, estará na base da enunciação de um discurso sempre inacabado e norteado pelo recorte elegante e musical da grande frase. À propriedade plástica e à propriedade sintáctica e sonora de Alzira Seixo, eu preferiria, nos tempos que correm, associar Almeida Faria a um design da língua literária. Um “power of ordering”, nas palavras de Frye, que já anteveria uma ideia de design nos idos de sessenta, não apenas como molde da cultura, mas sobretudo como modo de ver, espelhar e fruir o mundo através da eficácia e do permanente apelo estético.
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A sinestesia, a rima, os hiatos, a aliteração, o hipérbato por vezes desconcertante, os cromatismos, o silêncio, a sucessividade de efeitos e, portanto, a repetição formam parte deste design. Na plástica de Almeida Faria, a repetição – mesmo a fonética – não é nunca um ritual. Se houve um tempo em que os ritos tornavam actuais os mitos, no nosso tempo a repetição apenas torna actual a própria actualidade do texto e das mais diversas mensagens (escute-se: “Mil vezes prefiro o Veronese, esse clássico mesmo. Mas porque os clássicos não te inspiram, compreendo que te excitem mais os riscos de desequilíbrio barroco, os delírios maneiristas, marinistas” – C.A., p.235; ou “Enquanto caminhava ao acaso pela nossa casa, descobri uma porta que antes ali não existia, junto à escada para o quarto das criadas” – L., p.282). Ao contrário do que Nietzsche disse, “Deus” não morreu. Pelo contrário, “Ele” desceu à Terra e transformou a repetição, sob a forma de minimalismo sonoro, na nova “Escritura”. Ao fim e ao cabo, a repetição é o alicerce do estado generalizado de sedução em que o nosso espaço público se tornou. E nesse palco o design é um protagonista central. E já o seria há muitos anos, no campo literário e musical da Tetralogia. Ouçamos estes outros registos:
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“Será na primavera; no princípio de tudo…” (P.,17)
“(...) enterram-se raízes uma a uma, em seguida regaram, regá-las-ão até aos dias sem data”(P,63)
“(...) festejaremos a preparação da Páscoa e após termos comido lavaremos as mãos na água da ribeira e juntos partiremos pela planície.” (P.,16-17)
“Eis que caminha pela manhã da névoa, quando ainda a charneca está cheia dessas aves que cantam como sendo pingos lentos que caem, e, a caminho da missa diária, assalta-o o nevoeiro.” (P.,50)
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Estes registos de A Paixão celebram um advento fertilizador construído através da ressonância dos infinitivos. É a linguagem na sua autonomia a par do evento (neste caso) telúrico que escorre ao longo do cuidado ritmo de longa frase, aqui e ali, evocando o fôlego largo de um Bernardim Ribeiro. A ideia de um design da língua literária advém desta serenidade que une, num único caudal, o “Mito” e o “Logos” como referiu Hans Blumenberg (Arbeit am Mythos, 1979). Por outras palavras: A ideia de um design da língua literária é a ideia de uma eficácia narrativa e de uma clara percepção do “plot”, alicerçado num teor denotativo óbvio e pertinente, que se desenvolve, ao mesmo tempo, que esta cadência poética, sonora, conotativa e plástica edifica o seu próprio mundo encantatório. A sua caixa de música secreta. Como escrevi noutro lado, a história do design terá resultado de uma ideia de criação que acaba por fundir a dupla formulada por Blumenberg: de um lado, a dimensão da poeisis criativa que a arte reivindica desde meados do século XVIII, e, do outro lado, a racionalidade e a eficácia aplicada à expressão da cultura material. Se toda a história da modernidade se fez a partir da separação tida como inevitável da dupla “Mito” - “Logos”, Hans Blumenberg, ao desfazer essa oposição, veio criar (involuntariamente, porventura) condições para o entendimento de novas expressões contemporâneas, entre elas o design. Mas não só. É legítimo inserir neste novo horizonte de compreensão outras obras de arte, nomeadamente literárias, desde que integrem na sua textura discursiva e no seu íntimo jogo de linguagem a aludida dupla. Veja-se como tal é cristalino na escrita de Almeida Faria, até pelo modo como a eficácia do acto narrado convoca uma musicalidade poética que, por sua vez, agrega e ecoa matizes várias do linguajar popular: “De inverno assentava-se nos cômoros da quinta, ao pé da pluvial alcárcova rumorosa e lavada, sob o caramanchão que de chuva pingava, ali ficava horas, de cócoras, formando, paciente, figurinhas de barro, cães, mulheres, cavaleiros, automóveis; amassava a terra com força numa bola, águalmagre corria esguinchando pelos dedos (…)” (A Paixão, início do capítulo 21, p.64).
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5. Deriva crítica
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Quando há dias um crítico divorciava o lado experimental de Almeida Faria da sua capacidade de efabulação, pensei logo na incompreensão mais geral da crítica face ao silêncio numa era de compulsão de imagens, de ruído e de fluxo expressivo contínuo (esquecem-se que Fernando Pessoa, entre nós, e Charles Sanders Peirce, apenas o maior filósofo norte-americano, fundador do pragmatismo e da semiótica tal como a entendemos hoje, se limitaram a escrever um único livro em vida). Eu sei que é mais fácil esquematizar e recorrer a uma espécie de historiografia dominante, ou ir atrás do calendário mediático dos novos enlatados sintético-literários, do que reequacionar pacientemente como se fosse sempre a primeira vez. É por isso que a tipologia do mainstream é tão simples como inócua na sua caracterização. Atente-se ao seu receituário meio futebolístico: Almeida Faria seria um autor que foi genial no início, depois deu corpo a uma obra de fundo (muito pouco estudada entre nós, injustamente), a Tetralogia Lusitana, até que foi encontrado prematuramente morto na praia ocidental onde se inicia O Conquistador. Esta teoria do epitáfio satisfeito, chamo-lhe assim porque faz repousar a impaciência do que ainda resta de crítica, esquece que os 13 anos de suspensão entre A Paixão e Cortes poderão pressupor-se na razão directa da (relativa) paragem pós-O Conquistador. Há vasos comunicantes que têm o seu ritmo próprio e que não acompanham necessariamente o ritmo mediático, aligeirado e judicativo da crítica actual.
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O modo falacioso com que a crítica hoje tenta determinar e validar o que é um “grande escritor” parece decorrer, mais da permanente, sôfrega e inesgotada afirmação (um livro por ano, ou de dois em dois), do que de um olhar actualizável, incessante e sustentado pela leitura e análise do que foi e é escrito e enunciado. Isto quer dizer que a crítica passou há muito a dar cobertura a uma máxima de um meu ex-editor que dizia que “um livro dura três meses no máximo”. É esta óptica de fluxo que foca produtos e não livros, é esta óptica de simulacros que foca voragens e não obra… que gosta amiúde de assumir cenografias próprias de um concurso televisivo de horário nobre. O crítico Fernando Venâncio fazia eco, há dias, deste figurino no seu blogue – o “Aspirina B” –, onde perguntava (como se se dirigisse a concorrentes nervosos e ansiosos): «A história que hoje podemos fazer dos últimos trinta anos dá-te [a Alexandre Pinheiro Torres] razão, pois Almeida Faria não se tornou o grande escritor que Vergílio Ferreira augurara» (Carlos Ceia…); e: «Entre 1965 e 1983, Almeida Faria publicou a sua «tetralogia lusitana» (Paixão, Cortes, Lusitânia e Cavaleiro Andante), que confirmou o vaticínio de Vergílio Ferreira: o de que estávamos perante um 'futuro grande escritor'» (António Guerreiro…). O crítico terminava esta justaposição com a seguinte questão: (face a estas duas opiniões) “Qual é a sua?” Enfim, para o citado crítico Carlos Ceia, que desenvolve as suas ideias a partir de quem leva mais ou menos longe “os experimentalismos”, o caso Almeida Faria resolve-se com eloquência de breviário, isto é: o autor não passaria de um efectivo “aprendiz de Joyce”. Caso arrumado.
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É evidente que o pensamento esquemático e dicotómico serve muitas vezes para conformar afectos e ternuras pessoais (é o caso de Carlos Ceia para com Alexandre Pinheiro Torres, convenhamos). Caber-nos-á ser compreensivos neste tipo de arenas dedicadas e delicadas. Contudo, na maioria das vezes, o esquematismo enclausura o mundo numa redoma sem forma e deixa simplesmente de ver. Eu sei que não é fácil reconhecer e exemplificar na escrita de Almeida Faria o apelo oracular, o pioneirismo expressivo, o aspecto da dupla paródia e ainda a plenitude de um design da língua literária. São vias novas – e a explorar – que redescobri ao pensar esta intervenção e que podiam e deviam ser aprofundadas. Seria mais fácil não reler e não pensar. Também sei que o ruído livresco poderá ofuscar outros factos como o do inquérito às práticas de sentido ao nível de um país. Este tema que, depois do 25 de Abril de 1974, se reinventou sob o vetusto nome de “identidade nacional” é uma isotopia da obra do autor desde o início da Tetralogia. Também sei que o registo fantástico e o discurso onírico (não apenas dos personagens tipificados, Jô e Tiago), ambos fundados numa reversibilidade já sublinhada entre o visível e o ‘não-visível’, ou entre o dito e o ‘não-dito´, constituem instâncias muito singulares de álibi diegético que garantem uma pulsação profunda e ímpar aos enredos de Almeida Faria. Identidade, neste mundo, e onírica, aparentemente noutro mundo, convivem numa geometria arejada onde se pressupõe sempre uma busca, uma “quête”.
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6. O anfitrião persistente
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Quer em Lusitânia e em Cavaleiro Andante, quer no recente Vanitas, a figura do “anfitrião” é recorrente. Em ambos os percursos, alguém sai de casa e parte para algures (independentemente da finalidade). Chega depois a esquecer-se de si e do seu destino, como se comesse uma flor de lótus e a reimaginasse. Encontrar-se-á, a certa altura, com fantasmas. Enfrentará as forças da natureza que ninguém controla. Confrontar-se-á sempre com o imponderável. Por vezes, ficará imobilizado face a alguém do sexo oposto que seduz e subjuga. Inquirirá o mundo dos mortos, o além e o futuro. Transgredirá e enfrentará a adversidade e o destino, desenvolvendo capacidades próprias e reacções desconhecidas. Será acolhido por bons anfitriões, em ambiente benévolo – momento ómega! –, num lugar singular, metafórico e por vezes questionador. Contará a vida a si próprio e aos demais. Regressará ao seu ambiente original (o Nostos), depois de ter mudado muito. Já não é tão certo que seja acolhido sem ser reconhecido. Já não é tão certo que viva intensamente o reencontro com os seus (o mundo dos heróis esvaiu-se!). Nem é nada certo que deseje vingar-se e recuperar o que é seu, a não ser a “quête”, a busca incessante, como única razão a apropriar. Mas é certíssimo que, no fim de tudo, de modo mais ou menos sacrificial (lembro sempre o destino de André no final de Cavaleiro Andante!), alguém regresse à vida comum, à margem da epopeia e da história. O final de Vanitas ilustra-o de modo soberbo: “( …) E as noites de hoje, de amanhã e depois, como serão? Se ouvir passos, ponho tampões nos ouvidos e não ligo. O truque serviu para resistir às sereias de Ulisses; também funcionará contra um fantasma. Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a Vanitas inerente a toda a arte?”
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O anfitrião é – e continua a ser – na obra de Almeida Faria a metáfora da distância, do cosmopolitismo e da abertura ao universo. Mas há uma fractura permanente nesta anunciada, mas nunca cumprida, completude. É como se o regresso de Ulisses, quase no final, fosse sempre prematuro; de tal modo que a voz de Circe ou de Tirésias se continuassem a misturar e a propagar indefinidamente no relato. No fundo, trata-se de um simples reflexo da raiz contemporânea habitada pelo autor e pelas suas circunstâncias que faz conviver, de maneira pendular, a memória, o diferido, o delírio e o iminente.
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A literatura de Almeida Faria realiza-se na curvatura onde o compasso da viagem iniciática se encontra com a sublimação, ou, talvez, com o exacerbar da arte. Neste último território, tão vaticinado por Marta e JC na segunda parte da Tetralogia e entrevisto em Vanitas como pura indagação, o sentido reflecte muitas vezes o desinteresse contemplativo que Kant projectou num primeiro juízo do gosto. Vejam-se as palavras do novo anfitrião e coleccionador de Vanitas: “De cada vez que comprei uma peça, concedi-lhe e concedi-me um período de adaptação para perceber se ela e eu nos pertencíamos”. O olhar entre ambas as matérias, a humana e a que parece ter sacralizado o emergir moderno, é um olhar onde apenas o silêncio se projecta. Um silêncio de ouro que convoca um desejo subliminar e em fúria: um e outro, em oximoro emotivo, a contracenarem com a grande evocação de Marta (na antepenúltima missiva da Tetralogia em que se dirige a JC): “Passou a água alta, esqueço já as solidões passadas, acordo às seis da madrugada quando os proletários de Mestre e de Marghera tomam os primeiros comboios para Veneza, embarcam nos primeiros barcos, enquanto eu posso ficar à janela olhando as águas vermelhas, rosadas, conforme o vagaroso, nevooso sol sempre mais fraco sobre os telhados baixos, sobre os pátios baços de humidade, ouço rumor de motores avançando pelos rios laterais onde as ondas batem na esteira de outros barcos que a golpe de braços lentamente deslizam no canal (…)” (C.A., p.191).
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Bem sei que o tempo literário não é um tempo que se meça do mesmo modo que um higrómetro desvenda os níveis de humidade. Mas há uma coisa que eu sei. É que o tempo irá consolidar a grandeza literária da obra já feita e a vir – espera-se – de Almeida Faria. No fundo, era isto que eu hoje quereria enfatizar nesta homenagem que a cidade de Montemor-o-Novo presta a um dos seus melhores filhos.
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[1]Em J.Cavalcante de Souza, Org., Os pensadores Pré-Socráticos, Nova Cultural, S.Paulo, 1991, p. 60; e em G.Kirk, J.Raven,M.Schofield, Os filósofos pré-socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994, pp.217-218.
[2] L. Hutcheon, A Theory of Parody:The teachings of Twentieth-Century Art Forms, Metheun, London, 1985.

Thursday, March 22, 2007

O tabu da comunicação profética

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(Texto retirado do terceiro capítulo do meu livro, Islão e Mundo Cristão - Hugin, Lisboa, 2002)
1 - Profecias pós-escrituras: O cepticismo como fachada.
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Maquiavel disse nos seus Discursos[1]: "Não há verdadeira calamidade que atinja uma cidade ou uma província que não tenha já sido antes vaticinada, por adivinhação, por revelação, por prodígios, ou ainda por outros signos celestiais” (1970:249). Esta posição de profunda desconfiança em relação à prática profética (posterior às mensagens divinas, mas por elas influenciadas) é curiosamente partilhada por Ibn Khaldún que, dois séculos antes, afirmou, referindo-se sobretudo à profecia de cariz astrológico: "...ela leva os homens a esperarem por signos de crise, relacionadas com as dinastias, o que encoraja os adversários e os rivais do Estado a atacá-lo e a revoltar-se contra ele" (1968-II:1191). Esta posição maquiavélica de Ibn Khaldún - podemo-lo dizer - espelha um determinado receio do poder estabelecido face à prática profética.
Com efeito, por trás das palavras de Maquiavel parece pressentir-se uma quase certeza quanto ao carácter funesto da profecia, seja onde for que ela se exerça. Não se trata apenas, já se vê, de um temor pelo profético. Muito para além disso, o que de facto está aqui em causa - e também em Ibn Khaldún - é o sentido e a afirmação de um poder, de uma ortodoxia, ou seja, por outras palavras, de uma posição política e socialmente dominante que prescreve, não apenas um receio pelas consequências do acto profético, mas sobretudo vela - sempre que pode - pela sua própria ilegitimidade (quando dele não se pode servir, o que, aliás, acabou por se tornar num hábito quase natural em todo o mundo, pelo menos até ao Iluminismo, no caso ocidental).
Tal como T.Izutsu reflectiu acerca desta matéria (1964:230), existe uma espécie de relação ética entre o homem e Deus que é comum, quer ao Islão, quer ao Cristianismo. Este facto, leva-nos a admitir que existe uma dada hermenêutica - ou relação circular como a que é gerada pelo círculo pergunta-resposta - do acto humano face à presença e à acção de Deus. Neste âmbito, é da resposta permanente do homem face às exigências divinas que depende a realização do contrato ético, cuja implicação última é de natureza escatológica e com incidências decisivas na salvação, ou não, do próprio homem. Entendamos, neste contexto, a prática profética como sinónimo de um conjunto de actos cuja natureza é: (a) predizer o futuro, (b) invocar ou falar em nome da divindade, (c) poder - ou ter a presunção de poder -, eventualmente, revelar o plano divino (ou uma parte dele). A prática profética é, pois, voluntária e produz-se num mundo em que tudo é ainda gerido por Deus, mesmo se (nos campos islâmico ou Cristão) a autonomia dos actos humanos for admitida enquanto causa segunda; como adianta G.Makdisi: "a liberdade intelectual na Idade Média existia apenas, enquanto considerada no quadro de um sistema de fé"(1985:79). Neste quadro de carácter ético - que, no fundo, rege as relações entre o homem e a divindade - passamos, agora, a interrogar o tipo de relação específica que existe entre o acto humano de profetizar e as ortodoxias - ou poderes - dominantes e estabelecidos (cuja lógica depende do grande código inicial - a lei revelada - que, com a passagem do tempo, requer uma natural actualização, em situações concretas do quotidiano).
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2 - O que dizem as escrituras acerca da prática de profecias.
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O Cristianismo, em princípio, parece deixar aberta a possibilidade de legitimar a prática de profecias pós-escrituras. S. Paulo, no início da Primeira Carta aos Coríntios, chega mesmo a aconselhá-lo. Como é aclarado, nos Actos dos Apóstolos (11,28), as profecias, mais do que simples actos de premonição, correspondem sobretudo à iluminação "pelo Espírito"[2] e podem manifestar ou traduzir, desse modo, o sentido da vontade divina, em circunstâncias do quotidiano (TOB,1989:509). Na Carta de S. Paulo aos Efésios (3,5), esta legitimação é explicitada numa lógica de advento de um tempo novo: "Este mistério que não foi dado a conhecer aos filhos das gerações passadas, como agora foi revelado aos seus santos Apóstolos e Profetas, no Espírito"; na Carta de S. Paulo aos Colossenses (1,26-27), precisam-se os destinatários que são referidos na Epístola aos cidadãos de Éfeso: são estes os apóstolos, os santos e, notoriamente, "todos os baptizados" (ibid.:600).
A articulação destes dados permitir-nos-ia concluir que, sob o pano de fundo da nova era histórica - mas também já escatológica - o homem pode realmente profetizar, na medida em que a potência divina o permita (através do Espírito Santo, como se anuncia nos Actos dos Apóstolos (1,8): "ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós"). No entanto, os textos do Novo Testamento não deixam, igualmente, de avisar que os falsos profetas hão-de surgir (Mt 24,11 e 7,15; e 1 Jo 4,1). Esse facto que, desde o fim do primeiro século, "instabilizou profundamente a igreja" (TOB,1989:111)
[3], é registado no Apocalipse canónico, sob a forma da "segunda besta" (Ap 13,11-16)[4]. Os limites e a legitimidade do acto profético ficam, assim, de certa forma, por codificar. Entrevê-se, de qualquer maneira, um debate constante entre a produção profética e os critérios que uma dada ortodoxia edifica, em tempos e lugares diferentes, no sentido de evitar ambiguidades. A importância do acto profético, até como arma de guerra em séculos e séculos de alteridade islamo-cristã, a isso, iria obrigar.

Por sua vez, o discurso divino revelado através do Alcorão parece ser mais claro e conciso: A sura 33,40 refere explicitamente que "Maomé não é pai de nenhum homem de entre vós, mas é o profeta de Deus e o selo dos profetas”. Tudo parece estar definitivamente dito e anunciado à humanidade, numa última descida revelatória. Na sura 31,34, esta visão é, porventura, ainda mais acentuada: "O conhecimento da Hora pertence a Deus, que fez descer bátegas do céu. Ele sabe o que contém as entranhas das mães. Nenhum ser sabe o que alcançará amanhã, tal como nenhum ser sabe em que sítio morrerá. Deus é sábio e instruído”. Não parece contemplar-se aqui a possibilidade de revelação progressiva. No entanto, no final da sura 42 (50-52), surge o seguinte trecho: "Não foi dado a um mortal que Deus lhe fale; Ele só o faz por inspiração ou detrás de um véu”(...)“Ou por intermédio de um profeta que revela, com Sua permissão, o que Ele quer”(51)“E foi assim que nós te inspirámos um Espírito às Nossas ordens”. Neste último versículo (42,52), a palavra "espírito" remete para o anjo Gabriel
[5], o que quer dizer que, aqui, o que sobretudo é aflorado é a modalidade de comunicação existente entre Deus e o profeta, no acto da revelação original. No entanto, também não deixa de ficar em aberto (42,50) a possibilidade de Deus "falar", ou comunicar com outros homens, sob certas circunstâncias (“inspiração” e por “detrás de um véu”).
Para além deste facto escritural, convirá não esquecer que o Islão esteve sempre bastante povoado por movimentos que interpretaram a Lei revelada como algo excessivo ou pesado
[6]. São seitas, ou correntes, que aspiram a um modo mais directo de assunção com Deus. Surgem nesses casos, por razões diferentes, os ghulât[7], entre os Shi'itas mais radicais, os Ismaelitas[8], os Druzes[9] e os próprios místicos, nomeadamente os Sufis, cuja maioria se encontra dentro do campo sunita[10]. São movimentos chamados antinomistas que preconizam a possibilidade de contacto directo com Deus, e que acabam, portanto, por deixar a porta aberta à legitimação do próprio acto profético pós-escrituras. Como no caso cristão ficam, portanto, por definir os critérios capazes de estabelecer limites e níveis de legitimidade para o acto de profetizar. É disso que passamos a ocupar-nos, de seguida.
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3 - Critérios da ortodoxia para legitimar ou não as práticas de profecias.
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J. Schacht (1953:36), num artigo importante para a teorização da filosofia escritural islâmica, ou da também chamada teologia dogmática (o Kalâm[11]), equaciona e tenta atribuir um significado de facto ao que designa por “Ortodoxia” islâmica. O autor começa por sustentar que a ortodoxia deve ser entendida como sinónimo de uma doutrina "seguida pela maior parte dos muçulmanos”. Dito isto, J. Schacht retira depois a seguinte ilação: "No quarto século da Hégira - séc, XI DC -, esta doutrina transformou-se numa espécie de super-estrutura de duas escolas muito relacionadas entre si, a dos Ash'aritas e a dos Mâturíditas". Em dois artigos posteriores (1964 e 1974-I,II e III[12]), G.Makdisim, na linha de J. Schacht, considerou que a ortodoxia islâmica representa "o que é standard", no sentido de que "a larga maior parte do Islão a integra” (1964:44-5); deste modo, o Sunismo, ao congregar 90% dos muçulmanos, configuraria a própria ortodoxia dominante.
A diferença, ou a nuance, que G.Makdisi estabelece decorre de uma segunda ilação, segundo a qual "a ortodoxia sunita é determinada pela inscrição dos seus membros numa das escolas sunitas de direito, já que todas se orientam pela sunna (tradição) do profeta" (ibid:45). Deste modo, não são as correntes e os diversos raciocínios desenvolvidos na teologia dogmática (kalâm) que se constituem como referentes da noção de ortodoxia, mas são antes as escolas jurídicas sunitas que desempenham esse papel, e no seio das quais as correntes filosóficas e teológicas do kalâm tiveram uma influência diversa. É por isso que, já em 1974, G.Makdisi haveria de concluir: "a única ortodoxia que foi testada no Islão, através do consenso da comunidade - a ijmâ´ -, foi a ortodoxia sunita, representada, desde o século III (IX-X DC) por quatro escolas de direito sunitas”; e o motivo desta constatação final parece clara:"(...) no domínio da religião, tudo deve ser legitimado por intermédio das escolas de direito” (ibid.:76), até porque o Islão é, antes de mais, monocrático e monocêntrico.
A noção de ortodoxia está, assim, intimamente ligada à ideia de consenso (ijmâ`), no quadro do Islão sunita. Não havendo clero, sínodos ou concílios, o Islão centra-se em torno da sua voz comum e interior. A partir do século III (IX-X DC), são fundamentalmente quatro
[13] as escolas de direito que dão corpo à ortodoxia: a Hanafita[14], a Malikita[15], a Shafi'ita[16] e a Hanbalita[17], recorrendo, todas elas, a diferentes métodos de jurisprudência, embora baseados em fontes idênticas: o Alcorão e a sunna (a tradição). O Malikismo e o Hanifismo consideram legítimas, para além das fontes consideradas, a opinião pessoal e o princípio da analogia (qiyâs) e, só numa última fase, o consenso (exclusivamente dos doutores de Medina, no primeiro caso, e sem qualquer restrição no segundo). O Shafi'ismo recodifica a noção de consenso, sob a forma de acordo unânime entre os doutores da lei, num dado período, e sobre uma questão particular determinada. Finalmente, a Escola Hanbalita, mais rigorosa quanto às fontes da lei principal, só em casos de absoluta necessidade poderia admitir o próprio julgamento pessoal.
O esforço de investigação pessoal que, em cada escola, conduz à interpretação da Lei, ou à descodificação da “Sharí'a” - a Lei revelada - no quotidiano, é designado por ijtihâd. A capacidade de efectuar esta descodificação é, apenas, reconhecida aos fundadores de cada escola, ou aos seguidores que tenham tido a responsabilidade de passar à prática o método daqueles. A partir daqui, não mais é possível recorrer à figura da ijtihâd, sem que, com isso, se impeçam os muftis de assumir as suas responsabilidades, em certos casos sem precedentes factuais. Este sistema, fechado sobre si mesmo, contendo o nível da diferença no seu interior, consubstancia, de facto, a natureza do consenso islâmico ou, por outras palavras, a verdadeira ortodoxia. A centrípeticidade do Islão é, sob uma outra forma, apresentada por Ibn Taymiyya (1263-1328) na teoria que poderíamos caracterizar como a doutrina dos círculos concêntricos. Tal concepção estabelece as posições relativas das diversas escolas teológicas (incluindo as do Kalâm) na comunidade, tendo como base o Alcorão e a sunna - como acima se viu. Neste quadro consensual de grande amplitude, apenas os “heréticos” partidários da jammiyya são considerados exteriores à própria ortodoxia
[18].
Na Península Ibérica, bem como em grande parte da África setentrional, a escola de direito tradicionalmente dominante é a Maliquita. Isso não significa que a ortodoxia ibérica tivesse, a seu tempo, silenciado vozes dissonantes, tais como as de Ibn Hazm, as dos filósofos, ou até algumas vozes das correntes mahdistas, de que os Almóadas terão sido o expoente máximo. No seu tradicionalismo moderado, o Maliquismo constitui-se como escola oficial do al-Andalus durante o século IV/X. O historiador Ibn Khaldún, que viveu entre 1332 e 1406, integrou o Islão maliquita e, apesar de ter trabalhado já no fim do grande período islamo-ibérico, ainda criou doutrina, nomeadamente no que diz respeito à relação entre ortodoxia e criação profética.
O autor considera que a especulação pura é necessária para entender a realidade, embora parta do princípio de que a razão é incapaz de traduzir toda a causalidade do mundo, à nossa volta. É por isso que Ibn Khaldún afirma que existe "um véu (que) separa os homens do desconhecido e que é por essa razão que ninguém o conhece, com excepção para aquele a quem Deus o revele em sonhos, ou através da santidade”
[19]. Em relação aos adivinhos, Ibn Khaldún acrescenta: "trata-se de uma categoria de homens imperfeitos em relação aos profetas”[20]. No seu combate à adivinhação, nomeadamente a astrológica, o autor adianta ainda que "não existe senão um agente, e esse agente é Deus, como já foi provado por dedução (istidlâl), aquando dos nossos estudos acerca da unidade de Deus" (1968-II:1188). As realidades futuras, sejam elas quais forem, convertem-se assim, na reflexão de Ibn Khaldún, numa espécie de mistério imponderável e sempre difícil de desvendar, sobretudo porque o ciclo (profético) se fechou de vez com Maomé. Motivo, também, pelo qual Ibn Khaldún é levado a concluir que as práticas proféticas, simplesmente humanas, nada têm a ver com o decreto divino, "ou seja, com a predestinação (al-Qadar)"(ibid:1187); e termina o historiador: "Tal é a tradição autêntica”(ibid.:1189), o mesmo é dizer que tal é o legado da própria ortodoxia islâmica.
De qualquer maneira, e como já o referimos, o termo "ortodoxia" implica a existência de uma norma ou autoridade, capaz de distinguir a doutrina herética dquela que o não é. Este modo de diferenciar o legítimo e o ilegítimo não existe, de modo tangível, no Islão (ao contrário do Cristianismo). Contudo, e como D.Broadribb adiantou, “o crente sabe qual é a vontade de Deus em cada situação específica com que se depare”(...)“a este respeito, deve notar-se que a lei da religião muçulmana está devidamente codificada, detalhe a detalhe” (1970:71). Nesta lógica, as posições de Ibn Kaldún remetem inevitavelmente para a tradição que é selada como a autêntica, e não para a que poderá estar falseada. Mas, mais uma vez o círculo se torna a fechar, já que Ibn Khaldún parte do princípio que a melhor maneira de defender a credibilidade das palavras imputadas ao profeta reside no próprio consenso, a “ijmâ'” (e existem várias tradições escritas e atribuídas ao profeta (hadít) que, aliás, argumentam nesse mesmo sentido
[21]). Por outras palavras: a “ijmâ'”, por um lado, autentifica a tradição, mas esta, uma vez autentificada, converte-se numa fonte da própria “ijmâ'”. Eis o círculo que liga, com alguma fragilidade, tradição e lei.
Independentemente da verificação dos vários garantes do Isnâd (lista de nomes que garante a verdade da transmissão oral das tradições e da certificação do transmissor - o “Râwí”), a verdade é que muitas tradições (hadít) foram forjadas, ao longo da história do Islão. O intertexto dessas tradições forjadas é imenso. Sem aprofundar muito este aspecto, parece claro que a maleabilidade da ortodoxia, de que a ijmâ' é alicerce, parece ser razoável, o que quer dizer que, no campo estrito da tradição, há - e houve, de facto, no decorrer dos séculos - espaço para a produção de profecias, apesar, muitas vezes, da sua ilegitimidade (aliás muito bem definida pelo próprio Ibn Khaldún). Como T.Fahd referiu, "No Islão, a afirmação constante da tradição resume-se a este princípio: ‘Lâ Kihâna ba'da n-nubuwwa’ (não há) mais adivinhação após o profeta" (1966:64). O parecer de Ibn Khaldún parece, com efeito, harmonizar-se com o desígnio da própria ortodoxia.
Um olhar sobre algumas suras do Livro sagrado confirma-o. Neste âmbito, a legitimidade de desvelar algum detalhe do futuro, ou do próprio plano divino, é, claramente, reservado a Deus: "Não vos antecipeis a Deus nem ao seu Profeta” (49,1). Sobre a autenticidade do que é formulado, incluindo naturalmente possíveis enunciações proféticas, a mensagem apela ao cuidado: "Se chegar junto de vós um pecador com uma informação, examinai-a, para não prejudicardes alguém por ignorância” (49,6). Além disso, várias são as suras onde é notório o intuito de dissociar a poesia (ou as "histórias frívolas") do conteúdo da revelação
[22], sobretudo porque, como G.von Grunebaum referiu, os adversários do profeta, no seu tempo, sempre se esforçaram por “confundir as noções de adivinhação e revelação, por um lado, com as de produção poética, por outro” (1955:7). A afirmação de Maomé como profeta terá, assim, exigido essa demarcação. É por isso que toda a literatura (de foro puramente humano) não é tradicionalmente olhada com bons olhos no seio do Islão. Esse é, também, o motivo que consegue explicar o facto de uma explosão “tão forte quanto terá sido (historicamente) a conversão ao Islão não ter provocado ecos literários importantes” (P.Heath,1989:197). A sura 69 põe mesmo em pé de igualdade o adivinho e o poeta, contrapondo-os à figura do profeta, numa antinomia que separa a verdade da quase futilidade: "Não é a palavra de um adivinho. Como é pouco aquilo em que reflectis !” (69,42); e: "Não é a palavra de um poeta. Como é pouco aquilo em que credes !” (69,41).
Esta delimitação entre ambos os campos parece, de facto, ser definitiva. A conclusão, mais uma vez, pode ser atestada pela fonte sagrada, através da sura 5 (versículo 101): "Ó crentes ! Não façais perguntas a respeito das coisas que, se fossem manifestadas, poderiam afligir-vos”. No entanto, é também aqui nesta sura que, ao evocar-se a misericórdia divina, é possível desvendar uma certa atenuação da ilegitimidade radical do próprio acto de profetizar :"Deus perdoará a vossa curiosidade, porque Ele é indulgente e misericordioso”. O Alcorão aconselha, portanto, neste passo, o crente a não ultrapassar o que lhe está destinado; contudo, a infidelidade não é imputada ao homem - de forma absoluta - sempre que os limites da sua curiosidade forem superados.
O mesmo tom de limitada condenação, ou na expressão de T.Fahd, de "reticência do Profeta em negar todo o valor intrínseco ao conteúdo da adivinhação” (1966:68) é traduzido numa tradição (hadít) da responsabilidade de Wahb b. Munabbih (primeiro transmissor do isnâd relativo a relatos bíblicos
[23]): "Deus disse a Moise b. Manassa b. Yúsuf para dizer ao seu povo: nada tenho a ver (anâ barí') com quem pratique a magia ou com quem se dirige a um mágico, ou com quem pratique a adivinhação”(...)“aquele que se afastar de mim e que depois deposite a sua confiança noutro; a esse, devolver-lhe-ei a oração que me tenha feito e confiá-la-ei, depois, àquele em quem acreditou”[24]. Parece, pois, agora claro que as práticas premonitórias, ainda que condenadas pelas fontes da ortodoxia, sempre tiveram espaço no Islão para se manifestarem. Ibn Khaldún, mais uma vez na sua Muqqadima, parece conclusivamente admitir este aparente paradoxo: "(...) essas práticas estão muito espalhadas em todas as cidades. A lei religiosa proíbe-as"(1967-I:679).
Divórcio entre o real quotidiano e a prescrição da ortodoxia, ou antes compatibilidade entre o real quotidiano e a ambiguidade da ortodoxia - tal parece ser o eixo duplo de implicações decorrentes da prática premonitória e daquilo que, no grande código, a legitima ou não.
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3 - O caso ibérico no século XVI: ortodoxias, profecias e Islão vs cristianismo.
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Pode dizer-se que a adivinhação e práticas correlativas sempre mereceram, no quadro islâmico, uma determinada credibilidade. A origem do fenómeno remonta a tempos pré-islâmicos e, na época em que teve lugar a revelação de Maomé, é mesmo normal que a profecia tenha sido enquadrada numa lógica de continuidade face a essa tradição. A ausência de um sacerdócio organizado na Arábia dos séculos VI e VII "reduzia o pessoal de culto aos adivinhos, no sentido mais largo do termo, e em todas as especialidades possíveis” (T.Fahd,1966:79). As teorias difundidas no Islão que entrevêem na profecia uma espécie de prolongamento da adivinhação e, ao mesmo tempo, o seu estado superior (opinião de Mas'údí, Ibn Khaldún e, por vias diferentes, de alguns filósofos e também de Al-Ghazâlí[25]) terão origem nessa credibilidade prática do premonitório, isto é, do elementar fruto da adivinhação, ou da simples oralidade profética popular.
A ambiguidade face à adivinhação tem aqui possivelmente a sua origem. A própria noção de ortodoxia, não dependendo de um centralismo de autoridade, acaba por atribuir ao crente a interiorização e até a difusão da fé. Esta fluidez codificada deixa também, por sua vez, a porta aberta à realidade da ortopráxis premonitório-profética e tem mesmo consequências reais entre os mouriscos ibéricos do sec. XVI. Assim, e como refere L.Cardaillac (1977:62), "Não dispondo o Islão de clero, é a cada crente que cabe o papel de propagar a fé. Mesmo assim, certas personalidades, devido ao seu saber, ou à sua santidade de vida” (...)” sempre acabaram por assumir esse papel. Trata-se de pessoas que tinham a reputação de adivino y profeta”, o que apenas comprova a ambiguidade a que nos temos vindo a referir e que reflecte, ao mesmo tempo, quer os “preceitos corânicos”, quer as “superstições populares” (ibid.:62).

É preciso não esquecer que estes cristãos-novos de origem islâmica, os mouriscos, são, entre o século XVI e o início do século XVII - data da sua expulsão definitiva da Península - uma unidade sincrética, rodeada física e culturalmente pelo meio cristão. Como Ottavia Niccoli referiu, este meio cultural dominante, no reverso das grandes viagens oceânicas e de algum experimentalismo nascente, vive verdadeiramente imerso num ambiente cultural que a autora designou por “divinatio popularis” (1990:13). Tal significa que a manipulação das ocorrências reais, quer levada a cabo pela "baixa cultura” (“low culture", quer pelas elites (ibid.:13) - caso do próprio papado até 1530
[26] -, constitui um sistema de signos essencial da identidade da época. A sua origem, enquanto tal, é medieval mas prolonga-se para além da considerada “Idade Moderna”, segundo O.Niccoli, em Itália, até 1530 e, na Grã-Bretanha e França, até ao início do Sec.XVII - o que é apanágio, igualmente, das terras ibéricas[27].
Esta cultura, caracterizada pelo divinatio popularis, coexiste com a da produção de valores humanistas e renascentistas, no século XVI. Porém, a debilidade destes últimos na Península Ibérica, no que M.Herrero García considera "a propensão espanhola para hacer descompasado em relação ao resto do ocidente" (1966:16), contribuiu para que as práticas proféticas se constituíssem como autênticos signos dos tempos em terras hispânicas. Juan de Horozco y Covarrubias (ed.1588-XII:fol.30r)
[28] refere que "casos de falsos Messias e de falsos Cristos se han dado repetidas vezes" e que muitos outros "milagres fingidos" e "oráculos falsos" (ibid.:XIII,fol.36r) dominavam nesses tempos de "abominação profetizada" (J.C.Baroja,1978:39). A inflação profética chega a atingir tais dimensões, na Península Ibérica, que a exigência de critérios, capazes de distinguir o premonitório legítimo daquele que o não é, acaba por tornar-se numa das tarefas mais urgentes do próprio poder. A necessidade de actualizar a lei, de a definir, entra, pois, na ordem do dia como veremos. Antes, no entanto, é importante situar os domínios da própria ortodoxia, no caso cristão.
Segundo a tradição medieval, a autoridade sobrenatural pertence não apenas à Igreja, mas igualmente à monarquia nacional. Como N. Cohn refere (1970:233), "o monarca era o representante dos poderes que governam o cosmos, uma encarnação da lei moral e da divina intenção". Esta herança sagrada da monarquia, aliás ligada à figura profética do último imperador (como contsta, por exemplo, na famosa Sibila Tiburtina), está directamente ligada aos "prophetae com o seu séquito de miseráveis, dispostos a carrear o levantamento até à batalha apocalíptica" (ibid.:233), de que o monarca é o arquétipo do grande vencedor. Este legado medieval apresenta diversas matizes de continuidade, em pleno século XVI. John Bossy, em A Cristandade no Ocidente(1990
[29]), refere-se-lhes deste modo: quando, em França, "Francisco I subiu ao trono, no ano de 1515, já era bastante banal falar do rei de França como um Deus corpóreo". Esta prática é institucionalizada na década de setenta por Jean Bodin (ibid.:181) e, depois de algo modificada no século seguinte, acabaria por tornar-se na “teoria política oficial da monarquia francesa até ao século dezoito" (ibid.:183). Em Inglaterra, para os católicos, na tradição de More, a subalternização da Igreja constituía "uma profanação do santuário que contagiava toda a comunidade" (ibid.:185). Este divórcio entre o sagrado e o social acabaria mesmo por investir-se de "garantia constitucional" com Lutero, ao "repudiar a encarnação da santidade"(ibid.:180).
No caso espanhol - e especificamente referindo-se a Filipe II - o autor considera que, apesar do carácter providencial de que os soberanos se sentem investidos
[30], "nenhum dos atributos do sagrado poderia ser reconhecido como fazendo parte dos atributos da monarquia" (ibid.:183). John Bossy conclui: "minando as pretensões dos monarcas ingleses, lançando a dúvida sobre a ortodoxia"(...)"dos franceses, refutando o que consideravam posições luteranas", para a monarquia espanhola, quer os bispos, quer o papa, eram "os inexpugnáveis guardiões do santuário"(ibid.:184). E isto, apesar da "fragrância de santidade" que os reis católicos anteriormente haviam projectado. Como adianta F.Braudel (1984-II:187), a Espanha, enquanto unidade política, só se "pode conceber, no século XVI, com uma unidade religiosa". De um lado, o guardião do sagrado, o poder papal; do outro o agente militante da providência de Deus, o imperador, ambos sedimentando uma ortodoxia que se edificará na Contra-Reforma, nas diversas expansões além-mar, nas inquisições e no retomar tardio do espírito de cruzada. É sob este pano de fundo que os critérios de legitimação da inflacionada prática profética vão ser definidos. Vejamos, então, quais as posições da ortodoxia quanto a essa prática.
Convirá, em primeiro lugar, situar algumas manifestações particulares, directa ou indirectamente ligadas ao premonitório-profético que são combatidas, na época, pela ortodoxia. Este termo designará um poder - ou uma autoridade - cujos agentes são diversificados, mas que partilham a interpretação de uma unidade religiosa, de acordo com a noção de F. Braudel (disposições régias, bulas papais, índices da inquisição, escritores oficiais ou oficiosos, etc.). A astrologia, embora com uma tradição específica, era um fenómeno corrente susceptível de se associar ao premonitório-profético. Um exemplo paradigmático, do início do século XVI, é o da previsão da conjunção planetária de 1524 (pela primeira vez registada por Johann Stofller em 1499
[31]), e que originou um intertexto profético denso e variado de cariz catastrófico. Como O. Niccoli demonstrou, a própria Igreja contribuiu, e muito, para a difusão destas profecias que prediziam um dilúvio definitivo, motivado por um castigo divino à própria Igreja (devido à sua corrupção) e ainda pela rebelião luterana. Passada, no entanto, a fatídica data de 1524, "a figura do astrólogo apareceu subitamente diminuída, sobretudo pelo modo como a cultura popular havia recebido (durante duas décadas) o suposto dilúvio” (O. Niccoli:167).
A par da manifestação astrológica que parece merecer condenação da ortodoxia, todas as manifestações que, na época, parecem sair fora do quadro considerado normal não são menos susceptíveis de perseguição oficial. É o caso dos místicos e do próprio Santo Inácio de Loyola. Como J.C.Baroja afirma, "a acusação mais fácil, contra a piedade daquele que reforma é a de ser alumbrado" (1978:471). Pedro de Rivadeneira, no seu Tratado de la tribulación (1877:371), refere-se às deambulações, em pleno século XVI, de "apóstolos falsos e forasteiros que cruzavam a Espanha, predicando pelas aldeias, e que davam a entender, nas suas confissões, que os pecados que ouviam lhes haviam sido revelados por Deus". Casos de mulheres dominadas pelo demónio ou iluminadas subitamente, como Magdalena de la Cruz de Córdova
[32] ou Sor Patrocínio, são paradigmáticos deste ambiente de fervor milagroso colectivo.
Noutro âmbito ainda, o fenómeno da bruxaria também encarnava uma velha tradição de heresia. J. Bossy (1990:100) refere que, após 1400, surge uma "profunda convicção de que as bruxas não eram simples inimigas particulares de determinado cristão, mas (que) estavam (antes) ligadas a uma conspiração geral que tinha por objectivo derrubar todo o Reino Cristão". Por outras razões, decerto mais profundas, a posição da ortodoxia face aos mouriscos - e também aos judeus - é a da progressiva (ou imediata) anulação. Cumpre-se a prescrição, segundo a qual, no século XVI, toda a comunidade deve integrar a família do Rei e participar da unidade religiosa, piedosa e militante que este prefigura. Tudo o que escapa a esta ordem natural das coisas passa a ser designado por “segno”
[33] e deve, por consequência, ser perseguido.
A emergência da Reforma vem, por outro lado, criar na Igreja católica a necessidade de um cerrar de fileiras contra a propagação de heresias. Muitas das práticas que, até então, eram características da própria vida religiosa - ainda que marginal - são, agora, postas em causa. Exemplos disso são os diversos casos de manipulação profética do papado de Leão X e de Clemente VII
[34], além do papel da igreja nas já referidas profecias da conjunção de 1524: "um número de fenómenos que tinha sido característico da vida religiosa nos cinquenta anos que decorrem entre 1480 e 1530, ou diminuíram, ou foram mesmo sufocados” (O.Niccoli,1990: 193). Esta "imposição da ortodoxia", como J. Elliott a designa (1963:216), traduz-se pela perseguição de humanistas, "iluministas e erasmistas" (ibid.:224), pela reprodução dos autos de fé da inquisição e pela aceitação geral do conceito de limpeza. Os últimos anos do reinado de Carlos V, sobretudo antes do final do Concílio de Trento (1563), constituíram a consumação desta nova política. O percurso, em Portugal, é paralelo: centralização do reino sob D.João II, em finais do século XV, e nova política virada contra as heterodoxias, já com D.João III, a partir dos primeiros anos da década de trinta do século XVI.
Um exemplo hispânico de uma obra de profecias, simultaneamente proibida e aplaudida neste ambiente austero, é o das Trovas de Bandarra, sapateiro de Trancoso (a quem Juan de Horozco y Covarrubias, no cap.XX do seu Tratado de la verdadera y falsa prophecia, se refere). As profecias de Gonçalo Annes, o Bandarra (m.1545 ou 1560), são redigidas e transladadas (não tipograficamente, portanto) durante a década de trinta. A rápida divulgação do texto, composto por três sonhos premonitórios e messiânicos e um intróito sobre "as maldades do mundo e particularmente as de Portugal", leva Bandarra ao segundo auto de fé inquisitorial, realizado em Lisboa, em 1541. Aí, o sapateiro Bandarra é ilibado da suspeição de judaísmo, mas, por outro lado, é obrigado a perjurar os seus erros e "a nunca mais escrever, ler ou divulgar assuntos referentes à Bíblia" (A.Carvalho,1990:21). As Trovas, curiosamente dedicadas ao Bispo da Guarda, serão sucessivamente proibidas pela inquisição (até ao século XVIII), tendo o auto de fé de 1541 sublinhado que "qualquer pessoa que tiver as ditas Trovas as apresente à Santa Inquisição, dentro de três dias que vier a sua notícia e o que puder fazer" (ibid.:22).
O outro lado destas Trovas é o da sua relação com o rumo da própria história de Portugal. Perdida a independência para Espanha, em 1580, na sequência da derrota do rei português, D.Sebastião, em Alcácer Quibir (1578), cria-se no país a lenda segundo a qual o rei não teria morrido e que, qual Frederico II, haveria de regressar numa manhã de nevoeiro. Estas prescrições são como que desveladas nas Trovas e os seus defensores, D. João de Castro (neto de um importante vice-Rei da Índia Portuguesa) e, posteriormente, o Padre António Vieira, tornam a leitura da profecia num acto da sua real efectivação. Com efeito, a Restauração portuguesa, em 1640, será associada a este auto-cumprimento profético e o messianismo português, conhecido como Sebastianismo, acabará por tornar-se devedor da lenta hermenêutica das Trovas. É curioso que, apesar de proibidas pela Inquisição, as profecias de Bandarra acabaram por ser bastante divulgadas e até pregadas "do alto dos púlpitos", como refere A. Neves (1990:43). Sujeitas a um intuito colectivo, as Trovas acabam assim por resistir à ilegitimidade e o próprio Vieira chegaria até a conceder-lhes a verdade profética, na sua obra, Esperanças de Portugal, quinto império do Mundo
[35]: "por nenhuma ciência, nem humana, nem diabólica, nem angélica, podia conjecturar Bandarra a mínima parte do que disse, quanto mais afirmá-lo com tanta certeza" (...) "é certo que só Deus podia dizer e revelar ao Bandarra todos estes futuros e qualquer deles, e com a mesma certeza se deve ter e afirmar que foi Bandarra verdadeiro profeta".
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4 - A cartilha de Horozco y Covarrubias.
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Em 1588, surge uma obra fundamental que se propõe separar as águas. Trata-se de uma cartilha destinada a colocar, de um lado, as profecias legalmente válidas e, de outro lado, as que a ortodoxia, ou poder, deveria proibir. A obra é da autoria de Horozco y Covarrubias e tem como título, o Tratado de la verdadera y falsa prophecia. O seu prefaciador, o franciscano Fray Juan de Colmenares, refere-se do seguinte modo às intenções da edição: "desengano das invenções e enredos do demónio nas falsas revelações que em diversas partes ha sembrado estos dias..."[36]. O autor enfatiza o objectivo hermenêutico da obra, até porque os enganos e “desenganos” da época obrigavam inevitavelmente à fixação de um corpo rigoroso de regras: "se em todas as nações antigas existiram falsas profecias sob várias formas, la luta seguía".
É entre os Capítulos XV e XX que Covarrubias acaba por estabelecer uma série de critérios, tentando, assim, criar uma codificação mais ou menos lógica para a difundida e ambígua prática profética. São os seguintes os parâmetros que então se instituem:

a) Constatação do "fruto da profecia"(XV-fol.43r-44v), ou seja, a observação dos impactos do enunciado no real;
b) Verificação da verdade da profecia "con respecto a la voz divina" (XVI-fol.44v-45v). Aqui retoma-se um dos aspectos modalizadores do género, mais vincados: o diálogo com a divindade. A interpretação do sentido da providência divina virá a constituir o método de aferição deste segundo parâmetro;
c) Três outras regras se condensam num terceiro parâmetro, respectivamente "las costumbres del que revela, la respectabilidad y la pertinencia de lo revelado" (XVII-fol.45v-47r). O quadro de legitimação tende aqui a excluir tudo o que seja marginal à comunidade. Entenda-se marginal como nocivo à noção de "unidade religiosa" que F. Braudel (1984-II:187) configura como indissociável da identidade Ibérica da Contra-Reforma. Assim, a tradição, ou os "costumes" (cristãos), idealizam um passado referencial que se actualiza no agora-aqui da enunciação profética, sob a forma de "respeitabilidade" que, por sua vez, surge como responsável pela "pertinência" do conteúdo das profecias em observação. Um último parâmetro diz ainda respeito ao modo e acto de enunciação da profecia;
d) "...El carácter y el modo de decir"(...)"de suerte que el que tenga algo de alocado, soberbio, o inquieto, no ha de ser seguido"(XVIII-fol.47r-48r). Neste parâmetro, é claro que se põem de parte as premonições vindas de consciências religiosas mais extremadas e visionárias, próprias da massa dos que eram acusados de ser, entre outras coisas, alumbrados.

São estas as regras que acabariam por, de algum modo, sintetizar a codificação da ortodoxia cristã ibérica, na época em causa. Podemos dizer que são algo maleáveis e susceptíveis de ambivalência interpretativa (porventura intencional). No entanto, Horozco y Covarrubias, insiste "en lo frequentes que son los casos de profetismo en que tiene que intervenir la Inquisición"(XV-fol.42r-42v), como havíamos visto com o caso exemplar (de ambivalência) das Trovas do nosso conhecido Bandarra. A imensa produção profética na Península Ibérica do século XVI faz-nos, porém, entrever uma situação algo similar à codificada pelo Islão: por um lado, divórcio entre o real quotidiano e a prescrição geral da ortodoxia; por outro lado, a compatibilidade prática entre o mesmo real quotidiano e a ambiguidade (às vezes permissiva) da ortodoxia.
Decerto que, para os cristãos-novos de origem islâmica, os mouriscos, esta ambivalência e estes parâmetros de Covarrubias hão-de ter tido uma única implicação: a falsidade e, por conseguinte, a condenação da heresia presente nos seus correntes aljofores
[37]. Além de escritos com grafemas proibidos e de serem oriundos de uma casta, como então se dizia, não só não correspondiam aos critérios descritos por Covarrubias, como os seus conteúdos eram frontalmente contrários aos desígnios da própria ortodoxia cristã.
e
[1]Dicorsi sopra la prima deca di Tito Livio (cit. in The Discourses, trad. de L.Walker, 1970:249).
[2]"L'un d'eux, appelé Agabus, fit alors savoir, éclairé par l'Esprit, qu'une grande famine allait régner dans le monde entier..."
[3]Por exemplo, as profecias ligadas ao Montanismo e aos Milenarismos nascentes.
[4]"Elle avait deux cornes comme un agneau, mais elle parlait comme un dragon" - referência metafórica aos falsos profetas que, em Ap 16,13 - são referidos como espíritos impuros e, portanto, referidos como "des faux prophètes".
[5]In J.P.Machado (1980:505).
[6]H.Halm refere-se à permanência destes grupos no seio de uma remota ortodoxia até que são, definitivamente, dados como heréticos:"La sharí`a conçue comme un fardeau pesant, son abolition conçue comme un acte de grâce divine, pour un bon musulman de telles idées devaient avoir quelque chose de monstrueux. Cependant, des mouvements ou courants antinomistes de ce genre ne sont pas en Islam aussi rares qu'on pourrait le supposer au premier abbord. Ils n'ont seulement pas pu se maintenir contre les attaques des juristes qui, à partir du IIe/VIIIe siècle, sont sortis vanqueurs de la lutte: les antinomistes furent donc forcés d'abandonner le terrain" (1985:135).
[7]São seitas shi'itas que recusam a Lei (a sharí'a) e que deíficam os imames. Um dos exemplos é a seita dos Aluítas da Síria. Não têm mesquitas e o seu livro sagrado é o Livro das sombras, onde pode ler-se: "Il y a une foule d'hommes sur la terre, auxquels vous parlez et qui vous parlent don Dieu a déjà enlevé les chaines et les liens sans que vous les connaissiez" (cit.in H.Halm,1985:138/9).
[8]O movimento surge com o cisma, no seio do Shi'ismo (após a morte do sexto Imame, Ja`far Sâdiq, em 765), daí tendo surgido o Imamismo "duodécimain"e o Ismaelismo "septimanien" (H.Corbin,1986:115 e sqqs.). De certa forma, a Lei é, no caso ismaelita, o obstáculo à visão directa de Deus e, dets modo, a Sua futura abolição não será acabará por consubstanciar o restabelecimento da religião primordial. H.Halm (1985:140) considera que, neste tipo de casos, estamos perante o "antinomisme latent des ismailiens".
[9]A seita data do séc.XI e declara o tanzíl e o ta'wíl ultrapassados (ou seja, o Islão sunita e o Ismaelismo), proclamando o surgimento do novo e terceiro período, o Tawhíd, que pressupunha a abolição da Lei e, portanto, a visão e adoração directa de Deus criador (H.Halm,1985:140-141).
[10]H.Corbin,1986:265 (Cap.V, sobre o Sufismo) - "...à travers les siècles, la très grande majorité des soufis se trouve dans le monde sunnite".
[11]Trata-se de um artigo, onde o Kitâb al-Tawhíd de al-Maturídi é apresentado, pela primeira vez, à comunidade científica (New sources for the history of Muhammadan theology in Studia Islamica,1953:23-42, Oxford). De salientar que esse importante documento, depois entretanto publicado (organização e tradução de F. Kholeif - 1970 e 1982), foi primeiro tornado público por J.Schacht dois anos antes da publicação do referido artigo, nomeadamente em 1951, numa comunicação apresentada na Universidade de Bruxelas.
[12]Ash`arí and the Ash`arites in Islamic Religious History,in SI,19,1964:18- e sqqs., e, L'Islam Hanbalisant,in REI,42,1974-I,II:211 e sqqs.,III:45 e sqqs..
[13]A escola Zahirita não é aqui mencionada devido à sua existência efémera, de acordo com o método de G.Makdisi (1964 e 1974). Fundada por Dâwúd Ibn Khalaf al-Isfahâní, o literalista (819-855 ou 910). A esta escola pertenceu Ibn Hazm (1064) e o próprio Ibn `Arabí.
[14]Formada na Síria com al-Auzâ`í(m.774) e, depois, no Iraque através de uma outra escola, teve como representante mais famoso Abú-Hanífa (m.767). Influenciou a escola maturidista (embora existissem no seu seio, igualmente, influências mu'tazilitas) e, após a vinda progressiva dos turcos para ocidente, passa a ter crescente implantação, não só na Ásia central, mas também na actual Turquia (Madelung,W./1968-71).
[15]Le Malikisme "bases its doctrine on the Qur`ân, The Sunna and ijmâ'"(...)"For Mâlik, hadít is thus not the most important source, and personal judgement, ra`y, is to be used in parallel, when ijmâ'cannot provide the answer to a question and only if this procedure does not injure the public good (maslaha)" (EI,1991-VI:279). Os Maliquitas apoiados por 'Abd al Rahmãn III, como refere M. Fierro (1991:129), "quienes lo utilizaron como elementos legitimadores de sus pretensiones califales, se constituyen en escuela oficial de al-Andalus durante el s. IV/X".
[16]M.Khadduri (1961:32-40) sintetiza as ideias fundmentais da Risâla de Shâfi'í (m.820), o fundador da escola de direito em questão, afirmando: "The Qur`ân, Shafi'í points out, is the basis of legal knowledge.". Referindo-se ao segundo capítulo da Risâla, o autor dá atenção à noçãoo de al-bayân: "Shafi'í says is a collective term which includes general principles of law as well detailed rules"(ibid:33). A divisão de al-bayân, feita em cinco categorias, é a seguinte: "The first consists of a specific legal provision in the text of the Qur`ân"(...)"the second includes certain provisions, whose odes of observance are specified by an order of the prophet Muhammad"(..)"the third consists of broad legal provisions which Muhammad particularized. The fourth includes all the legal provisions laid by Muhammad in absence of a specific Quranic text. The fifth and final category is comprised of ijtihâd (personal reasoning) by means of qiyâs (analogy)"(ibid.:34). Acrescenta ainda M.Khadduri: "Shafi'í's method of reconciliation, called at-ta`wíl (interpretation), encouraged the acceptance of many a tradition which otherwise would have been in danger of being rejected"(...)"The latter part of the Risâla deals briefly with ijmâ´ (consensus), qiyâs (analogy), ijtihâd (personal reasoning), istihsân (juristic preference) and ikhtilâf (disagreement). Although these are important jurisprudential subjects, Shâfi'í devotes much less space to them thna to the Qur`ân and sunna" (ibid:37).
[17]Fundada por Ahmad b.Hanbal (m.855) e sobretudo integrada por tradicionalistas, defende princípios de não inovação, cingindo-se às fontes da lei mais originais, o Alcorão e a sunna.
[18]Partidários de Jahm Ibn afwân Abú Muri (m.745) e defensores da inexistência de quaisquer atributos divinos, bem como de um determinismo extremo. Para os partidários da Jahmiyya, não cabia ao homem qualquer tipo de comportamento que pudesse contribuir para a sua salvação.
[19]Da Muqadimma, cit. in T.Fahd,1966:50.
[20]Ibid:45.
[21]Reunida por Khatíb al-Bagdâdí, cit. in Goldziher,1952:171.
[22]Por exemplo, nas suras 21,5; 26,223; 69,41-42 e 31,5.
[23]Tradicionalista da primeira geração (m.732), judeu convertido ao Islão, "dépendant de Ka'b al-Ahbâr"(ibid.:67), que é o primeiro "chainon de l'isnâd dans les récits relatifs à l'histoire biblique".
[24]Cit in T.Fahd (1966:67-68).
[25]Tal é a opinião de Mas'údí (ibid.:63); para Ibn Khaldún há uma implicação simétrica: adivinhação é "imperfection du contraire relativement à son contraire parfait" ( ibid.: 45-a revelação profética divina). Na VI Muqaddima, Ibn Khaldún refere, entre outras, as posições dos filósofos e de al-Ghazâlí. Assim, para Ibn Rushd, premonição e profecia situam-se ao mesmo nível, pois Deus conhece os seres tal como são. Por isso, se um profeta ou adivinho conhece por Deus o futuro, é porque a natureza do ser está conforme o próprio conhecimento eterno. Esta revelação pode ter intermediário angélico, ou mesmo outros, caso do sonho e até da epilepsia. Para Maimonedes, seu discípulo, a profecia é emanação divina e expande-se através do intelecto activo; é a manifestação mais alta e nobre da espécie humana. O sonho e a prática premonitória, em geral, constituem um fruto abortivo da profecia revelada por Deus aos homens. Para al-Ghazâlí, embora o seu combate aos filósofos seja conhecido, o que é certo é que, neste ponto, parece haver verificar-se um acordo formal. Para o autor, tudo tem uma causa e, se se conhecerem as causas também se determinarão as, naturamente as suas consequências. A natureza humana, porém, não pode determinar todas as causas, devido às suas limitações. Assim sendo, o acto de adivinhação torna-se possível, já que existe uma precognição divina que o permite. É nesta última condição que o autor difere dos filósofos.
[26]"prophetic signs"(...)"used even for political ends - as can be seen repeatedly under Leo X"(ibid.:12).
[27]A data de limite de 1530, para a época de divinatio popularis, é o próprio objecto do estudo da autora.
[28]In Tratado de la Verdadera y falsa prophecia. Hecho por Don Iuan de Horozco Y Covarrubias. Arcediano de Cuellar en la Santa Yglesia de Segovia, Segovia. Por Iuan de la Cuesta. Año 1588 (no que respeita às citações, ver de J.C.Baroja,1978,37-42).
[29] O autor chega-nos a falar acerca em “realeza sagrada” (1990:181).
[30]Sobre este aspecto, ver M. Herrero Garcia (1966:Cap.1, acerca do auto-conceito de Espanha) e, para o caso Português, ver Monarquia Lusitana (III, Livro 10, Cap.2), onde o carácter predestinado e providencial do primeiro rei de Portugal é teorizado através do seu diálogo com Deus, na batalha de Ourique contra os mouros.
[31]Ephemerides, reeditado em Veneza, no ano de 1522 (O.Niccoli,1990:140).
[32]Sobre Magdalena de la Cruz, ver J.C.Baroja (1978:40, nota 84).
[33]A palavra “segno” exprime, no fim do século XV e no século seguinte, todo o conjunto de alterações - no mundo da natureza e também humano - no que é, então, considerado como o "curso natural das coisas" (O.Niccoli,1990:31).
[34]“...The classical and Ciceronian culture that flourished at the papal court and in the circles around it during the years of Leo X's papacy and the early years of Clement VII favored this habit. Interest in the world of classical antiquity brought with it a renewed fascination with the monstra, prodigia and portenta, a fascination that popular divination, for its part, pursued indefatigably" (O.Niccoli,1990;193).
[35](1955, Vol.VI)
[36]Cit. in J.C.Baroja (1978:37-42).
[37]A obra do Jesuíta Benito Pereira, Adversus astrólogos de Astromantia dirige-se particularmente a Aragão, Valência e Catalunha onde, à data, existiam imensos cultores da astrologia judiciária (J.C.Baroja,1978:237).

Sunday, November 27, 2005

Há dez anos

Foi há dez anos: dia 28/11/1995, às 12.45, na Universidade de Utreque. Um doutoramento que começava assim:
É objecto do presente estudo dar conta do real representado em textos proféticos, enunciados no seio das comunidades moriscas de Aragão, durante o segundo e terceiro quartel do século XVI. O real então vivido pelos moriscos corresponde a um real terminal (no sentido da prefiguraçäo de um fim colectivo), não só de uma comunidade cultural específica, mas sobretudo de toda uma civilização, a islâmica, em terras ibéricas.
Para além de o género profético constituir um "signo dos tempos"[1], enquanto modalidade epistemológica, ele é particularmente adequado a uma tal radiografia, já que, nos seus textos, se espelha o real mais imediato (ainda que sujeito a vaticínios post eventum) e, sobretudo, se projecta, de um modo ideal, os desejos, as obsessões e as ansiedades colectivas de uma comunidade (que os enuncia, num mundo literário ainda liberto, em grande parte, da voz própria e específica de um sujeito que se assuma como autor ou escritor).
A desconstrução semiótica destes textos (no sentido do acesso ao real que, veículado pela enunciação, neles persiste em estrutura profunda) pode, assim, por vias diferentes mas complementares das habituais, contribuir para um enriquecimento do nosso saber sobre a realidade terminal dos moriscos (e, sobretudo, dos que, em Aragão, e dada a não-arabofonia que os caracteriza, iniciam a sua própria morte, de modo lento, antes ainda da expulsão definitiva e legalmente imposta).
Como se refere no intróito metodológico do Cap.V (o capítulo onde se analisa o corpus prescrito), real e representação constituem noções anteriores a todas as outras. No entanto, e tendo em conta um aparelho conceptual onde se complementam a filosofia das formas simbólicas e a construção semiótica textual, situamos o real como um processo complexo que envolve e transcende o homem (W.Iser,1978:68[2]) e a representação, por seu lado, como um conjunto ordenado de interpretantes[3] que, em nós, traduz, através de imagens mentais, esse mesmo processo complexo e envolvente (e que, por sua vez se re-traduz ou comunica para o exterior, por via das capacidades discursivas humanas, incluindo a textual).
Os anónimos enunciadores dos textos aqui analisados, e que constituem a expressão de uma voz e de um querer colectivos, são moriscos aragoneses. Consideram-se moriscos os descendentes dos mudéjares ibéricos, ou seja, das comunidades islâmicas que, mediante capitulações diversas, permaneceram na Península já cristã, e no seio das suas mourarias, após as várias vagas de reconquista conhecidas. Os moriscos, nesse sentido, designarão essas mesmas comunidades, mas instituindo-se, enquanto tal, a partir do momento histórico em que as conversões e os baptismos obrigatórios se tornaram um facto. Tal viria a ocorrer em Granada em 1501, em Castela no ano seguinte e, por fim, em Aragão, apenas depois de Dezembro de 1525.
A maior comunidade não arabófona de moriscos ibéricos é precisamente a aragonesa (cerca de 20% da população total de Aragão). Tendo perdido a língua mãe, o Árabe, ao nível da sua forma dominante de expressão, os moriscos aragoneses passaram a articular o código grafemático árabe (que souberam, mesmo assim, preservar) com um vernáculo românico, no que constitui um entre vários outros sintomas da sua própria hibridez cultural. Esse processo textual (e inter-semiótico) de comunicação é tecnicamente designado por aljamia.
Para além de toda a geneologia ritual (ligada à ortopráxis diária) que os moriscos aragoneses tentarão manter, num mundo que lhes é progressivamente hostil, a denominada literatura aljamiada acabará por converter-se num dos seus marcos identitários (apesar de esta literatura, sobretudo ao nível da ambiguidade com que se codifica, acabar igualmente por espelhar a degenerescência e a errância - mesmo intelectual - dos seus enunciadores, dramaticamente colocados entre dois mundos: um mundo ascendente, o islâmico, com o qual perdem inexoravelmente a ligação e, por outro lado, um mundo descendente, o cristão, ao qual se manterão insistentemente, e até ao fim, inassimiláveis). Mesmo assim, a comunidade morisca de Aragão é, em toda a Península Ibérica, de longe, a mais relevante na produção desta literatura aljamiada que, por ser clandestina, na época, se viria a transformar, a partir do século XIX, numa súbita arqueologia delicada e fascinante.

*

O estádio morisco é, em suma, o epílogo (mais ou menos breve) da longa presença islâmica na Península ibérica. É essa a expressão mais profunda do seu significado: o consumar de nove séculos de história. A expulsão definitiva dos moriscos viria a consumar-se em 1609, quando a lógica da política externa dos Filipes tornou possível a depuração interna tão desejada e profeticamente anunciada (e reiterada) pelos adivinhos da corte daqueles (como, curiosamente, segundo tradições islâmicas, a invasäo de Târiq b. Ziyâd havia também já sido objecto de uma premonição onírica[4]). É que a história da alteridade islamo-cristã, em terras ibéricas, tem grandes tradições no campo do Divinatio. Acrescente-se que essas mesmas tradições não viriam, igualmente, a ser imunes ao próprio drama morisco, naquilo que foi o seu confronto último com o poder cristão, ao longo de três a quatro gerações.
Mas se o drama morisco tem o significado histórico que tem, aparentemente limitado ao termo de um legado civilizacional em terras ibéricas, ele não pode, no entanto, ser observado fora de contextos mais vastos. F.Braudel, nas conclusões à sua obra sobre o Mediterrâneo, refere que o século XVI (e parte do século seguinte) se liga, inevitavelmente, às "múltiplas decadências em cadeia da Turquia, do Islão, da Itália, da primazia ibérica" (1984-II:621). Ou seja, enquanto mundos novos florescem em continentes agora redescobertos e, por outro lado, enquanto a primazia europeia se desloca para norte, é o Mediterrâneo (nas suas duas margens) que agora inicia uma agonia lenta, explicada, por uns, através da lógica cíclica do Verfall ou, como Braudel prefere, através de uma pluralidade de modelos a sistematizar (ibid:621). Nesta óptica, o caso morisco não é um caso radicalmente distinto do espanhol ou do português ou do otomano, ou seja - e mantendo as devidas diferenças -, embora todos estes casos estejam ligados a modelos históricos específicos, pertencem, igualmente todos, a um mesmo comungado sentido de mutação histórica global.
Por um lado, a reflexão precedente recontextualiza o objecto que nos propomos atingir neste estudo, na medida em que o real terminal dos moriscos partilha, metonimicamente, de todo o real ibérico mais geral. Por outro lado há que, inevitavelmente, ter também em consideração a própria lógica específica de colisão civilizacional entre a maioria cristã e os moriscos. Essa lógica é, aparentemente, diferente das que se teceram, durante séculos de convivência, entre o Islão e os moçárabes ou, mais tarde, entre cristãos e mudéjares (com as excepções de períodos dos reinos Taifas, dos episódios imoladores de Eulogio e Paulo Alvaro, etc...). No entanto, o drama morisco pode ser interpretado como o consumar final de uma irredutibilidade primeira e profunda, caracterizada por que M. Hagerty como oriunda de "sentimentos nascidos da escatologia" (1978:278). No fundo, a própria ideia de fins últimos constituirá, na época, a razão de ser mais vital da existência; é, pois, da salvação, irredutível e insubstituível em cada um dos campos, que depende a natureza da alteridade dos homens neste mundo terreno. Por isso, poder-se-á dizer que esta ruptura final, ligada ao próprio lexema morisco, se constitui como uma espécie de metáfora histórica decisiva para os nove séculos de convivência islamo-cristã. Ou seja, uma tal ruptura, latente e potencial, sempre existiu desde o alvor de Taríq ; adquire, contudo, agora, com os moriscos, uma forma concreta, visível, de fragilidade absoluta, e, por isso mesmo, recolocada subitamente à superfície, se transforma em fenómeno histórico singular e claramente denotativo.
Neste mundo pré-científico, a escatologia regula (ainda) todo o destino e o devir humanos, ordena o sentido do tempo e das realizações do homem na terra e, por isso, faz da profecia um mecanismo por excelência do saber (sobre o futuro e, virtualmente, sobre o querer da própria Divindade). Mais tarde, no mesmo século da expulsão dos moriscos, a racionalidade começará a impôr-se e a delinear-se. Afastando-se da Divindade, a ocidente, os homens irão lentamente transformar as utopias em sucessoras da escatologia. Abandonado o saber revelatório, é a axiomática objectiva da ciência que passará a presidir ao grande inquérito da natureza (pelo menos, à superfície). Curioso é, todavia, que os mesmos mitos (entendidos como a manifestação dramatúrgica das origens, ou dos arquétipos originais) continuem, em ambos os tempos, a postular obsessões similares ao homem, nomeadamente as que se referem ao fim dos tempos. A finitude, interrogada sob um pano de fundo escatológico ou ideológico, ontem ou hoje, continua a ser o enigmático fechamento que as origens (veículadas pelos mitos e também pelos símbolos) projectam sobre a humanidade.
É esta mesma questão que, conclusivamente, surgirá neste estudo, transposta, no entanto, para um espaço e para um tempo concretos. Por outras palavras, tentaremos responder, ao longo das próximas páginas, à seguinte questão (de acordo com a nossa análise sobre a representação do real, vivido e pressentido pelos moriscos): - Que visão tem uma comunidade, na História (como a dos moriscos), da sua identidade e da sua existência (enquanto relação com o tempo), quando confrontada com a prefiguração, senão a certeza de um fim?


2- Método.


Uma análise semiótica terá sempre como objecto a anatomia de uma ou várias linguagens, veiculadas por um enunciado, e tendo como corolário o facto de o(s) sentido(s) aí produzido(s) procederem de um dispositivo interno a essa mesmo enunciado, que, por fim, se pretenderá situar e explicar. Por outras palavras, cabe à análise semiótica determinar as condições internas de produção de sentido(s), num dado enunciado, neste caso textual (porque basicamente composto por signos linguísticos). Esta incursão ao dispositivo, a partir do qual todo o texto irradia e ganha corpo (M.Riffaterre,1982:97) será, no caso vertente, associada às formas simbólicas, igualmente presentes no texto. A função dessas formas simbólicas é unir o imaginário naqueles representado com os signos linguísticos que os compõem (segundo uma metodologoia de E.Cassirer). Entende-se, neste quadro, por imaginário, a representação primeira que os enunciadores do texto tiveram do real e que, fragmentária e (in)voluntariamente, fizeram entrar no texto, através da organização discursiva, aí persistindo em estrutura de fundo - dispersa e latente - entre a rede de signos linguísticos (que integram e materializam o texto em causa).
A procura do real é, assim, num primeiro momento, a anatomia do próprio texto (a procura das estruturas internas que o constituem); em segundo lugar, a localização de uma ou várias matrizes (o dispositivo interno), a partir de onde todo o texto e os seus sentidos irradiam (sendo uma dessas matrizes, segundo M.Riffaterre, de natureza simbólica - ibid.:97); em terceiro lugar, a reconstrução do real, antes incrustado no texto de modo fragmentário - no momento da sua enunciação -, e, aí, arrumado no seio das formas simbólicas presentes (mas anteriores ao próprio texto, de natureza extra-linguística).
Este (ou outro) tipo de pesquisa da área semiótica, recorrente nos últimos anos, não é comum às literaturas aljamiadas. Além de alguns esparsos artigos[5], directa ou indirectamente sustentados em metodologias semióticas, o campo destas literaturas tem sido sujeito, de modo dominante, a tratamentos de índole linguística (transliteração, tradução e análise das formações linguísticas), literária (temática e interpretativa), histórica (relacionada, também, com as mentalidades), sociológica (muitas vezes articulada com uma abordagem relativa à alteridade islamo-cristã) e religiosa (pondo em função questões culturais ou ligadas ao ensimesmamento do dogma[6]). Tem sido, de facto, grande, neste quadro, o desenvolvimento do estudo das literaturas aljamiadas nos últimos anos. L.Cardaillac (1977:388-90), autor de um dos estudos fundamentais sobre as interacções entre moriscos e cristãos, refere, nesse sentido, e citando Domínguez Ortiz, que os moriscos não têm propriamente história, já que a noção de História pressupõe a existência de "um grupo humano em evolução"; daí que o problema morisco, para além do método histórico, exija inevitavelmente outros complementares e, entre eles, como refere o autor, o sociológico. O nosso tratamento de prospecção semiótico-textual, nesse contexto, poderá, por seu lado, contribuir para situar ainda outras e novas modalidades de representação do real que, eventualmente, venham a enriquecer a "moriscologia" (M. de Epalza, 1983:32). Um facto próximo que nos entusiasmou para o presente estudo decorreu de uma análise próxima da que aqui propomos, mas aplicada ao conto medieval ibérico (português). Também aí uma voz colectiva enuncia textos fragmentários que evocam um dado real que o autor, no caso concreto Nuno Júdice (1991), semiologicamente transpõe e descreve. No nosso caso, há outros aliciantes a ponderar: o estado terminal da comunidade que os enuncia, a vocação representativa do género profético, a própria realidade da aljamia (a hibridez cultural) e a carência de estudos semióticos no campo da moriscologia.
É também evidente que a semiótica se caracteriza como sendo um campo interdisciplinar de investigação. Como refere C.Teodoro Pais, "a riqueza e a complexidade do seu objecto impõem a interdisciplinaridade, antes de tudo, como uma atitude de prudência" (s/d:131). É por isso que, além de articularmos a teorização da simbólica de E.Cassirer com uma interpretação flexível das metodologias semiológicas de M.Riffaterre ou ainda do Groupe d'Entrevernes (mas não entrando nos campos lógicos da gramática do texto), recusamos a imanência textual e recorreremos, com o cuidado e as limitações contextuais requeridas, a outras áreas do saber, tais como a história, a teoria literária (teoria hermenêutica e a questão téorica dos géneros), a teologia, a filosofia escritural islâmica, o kalâm (no estudo da modalização do género profético e no contraste entre os mundos islâmico e cristão), e, por fim, a própria moriscologia (referindo-nos às temáticas e formas dominantes nessa literatura). Estas áreas, complementares, fornecer-nos-ão o material dos capítulos contextuais, bem como nos emprestarão informações suplementares para a determinação do real representado no corpus e, nomeadamente, o(s) momento(s) do real histórico em que este terá sido enunciado.

*

A razão de escolha do corpus, que, no final deste trabalho, sujeitamos a análise, deve-se às questões previamente descritas. Por outras palavras: verificados os aliciantes que acima referimos e que determinam a pertinência de uma análise semiótica - fundada na representaçäo do real (vivido ou imaginado pelos moriscos) e filtrado por textos de natureza profética (já que projectam relações vitais entre o ser e o tempo) - procedemos, depois, a uma procura de textos do género que assumissem relevância e, portanto, representatividade.
Uma primeira característica dos textos aljamiados é o seu carácter miscelâneo. Grande parte dos manuscritos da literatura aljamiada integra, deste modo, amálgamas fragmentárias de diferentes naturezas temáticas (notas sobre heranças, lendas maravilhosas, instruções ligadas à prática de dissimulação ritual, a taqiyya; sumários religiosos, catecismos, traduções parciais do Alcorão, descodificação de preceitos árabes, admoestações, tradições, curas mágicas e também profecias). São exemplos destes verdadeiros corpus antológicos, onde parece querer traduzir-se desesperadamente toda uma cultura condenada, o Manuscrito nº3 da Junta[7] (pertencente ao Instituto de Filología del CSIC, Madrid - Manuscritos árabes de la Junta- R.Kontzi,1974), o Manuscrito 4953 da Biblioteca Nacional de Madrid[8] (O.Hegyi,1981) e o Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris[9] (M.Sánchez Alvarez,1982). Este intuito antológico-miscelâneo é, muitas vezes, assumido pelo próprio copista, ou autor morisco, como dá conta C.López Morillas na sua análise a uma tradução da Fâtiha, no Ms.5252 BNM: "...había declarado el tratadista morisco que su obra sería una complicación de datos sacados de varios textos". A literatura aljamiada, encerra, em suma, no seu seio, intertextualides congénitas - à imagem dos seus próprios enunciadores, também eles produtos culturais miscelâneos e híbridos.
Num destes Manuscritos de cariz antológico, acabámos por encontrar aquilo que viria a constituir-se como o corpus desta investigação. É evidente que, na ausência de uma obra compiladora de textos proféticos moriscos - completa, unida, e consistente - foi no entrecruzar miscelâneo dos Manuscritos que tentámos encontrar a produção profética adequada à nossa própria análise. De facto, no Ms. BNP 774, viríamos a encontrar um conjunto de quatro profecias, delimitando um espaço genérico autónomo e, decerto, enunciado com uma intencionalidade específica, evidenciada pela sintaxe e pelas articulações intertextuais isotópicas e simbólicas existentes entre esses quatro textos proféticos, como veremos no Capítulo V. Intencionalidade na arrumação e disposição dessas profecias; intencionalidade (do único copista) do manuscrito[10], ao seleccionar, entre essas profecias, perspectivas enunciadoras diferentes (uma delas de clara orientação cristã); intencionalidade, ao reunirem-se nestas profecias características gerais do próprio género (o que as distingue dos restantes textos do Ms.774 BNP) que, por sua vez, se transacionam entre si, numa meada coerente que não é imune a significados profundos (sobretudo de natureza simbólica). Tendo aprofundado e sistematizado estas implicações de ordem formal, à luz do aparelho conceptual que desenvolvemos, numa primeira fase, viríamos, seguidamente, a confirmar a pertinência do corpus como susceptível de representar facetas do real morisco metonimicamente relevantes (a partir da parte prefigurando, por contiguidade, a ideia de um todo caracterizável e descritível).
O espaço genérico destas quatro profecias foi, deste modo, por nós seleccionado como um enunciado-fragmento à parte, no quadro do Ms. BNP 774. Dotado de uma mensagem própria, veiculando marcas de uma linguagem específica (a nível discursivo e actancial) - e que procedem do próprio género -, constituindo-se, enfim, como um só enunciado, susceptível de ser semioticamente decomposto e analisado.
A delimitação de um corpus fragmentário não é, contudo, um problema original. Nesse sentido, tentámos enveredar por uma perspectiva que, embora requeira um suporte teórico autónomo, não deixasse, também, de encontrar relações homológicas com outras pesquisas de índole semiótica. Um exemplo-chave deste tipo de escolhas encontra-se numa análise do Groupe d'Entrevernes (1977) a alguns textos evangélicos. Na breve exposição metodológica inicial refere-se, a este propósito: "Les fragments choisis ne l'ont pas été au hasard. Nous avons retenu des paraboles et des récits de miracles parce que le problème de la signification s'y pose dans toute son acuité" (ibid.:11). O mesmo processo seguimos, ao recortar o Ms.774 tendo como critério fundamental um género determinado, no caso concreto - o profético (como ocorrera, no caso do Groupe d'Entrevernes com as parábolas e os milagres - definidos como “géneros” autónomos no estudo em questão). A acuidade da significação decorre, por seu lado, no caso do nosso estudo - onde o objecto é a representação do real num estado civilizacional terminal - da presença do próprio género profético (voltaremos a esse facto). Outro exemplo é o do estudo já referido de Nuno Júdice, sobre o espaço do conto no texto medieval (1991), onde o recorte fragmentário do corpus assenta no "cânone de narrativa curta, a que se poderá chamar conto" (ibid.:11).
Em todos estes casos estamos, embora de modos diferentes, no quadro do que G.Genette caracterizou como sendo os arquitextos genéricos (1982:14-15), ou seja "une classe de textes qui englobe entièrement certains genres canoniques (quoique mineurs) (...) et qui traverse d'autres - probablement tous les autres". Arquitextos genéricos são, portanto, e por outras palavras, unidades textuais que, apesar de integrarem enunciações mais vastas e diferenciadas (ainda que miscelâneas), possuem aptidões e marcas genéricas específicas que lhes garantem uma autonomia, ou melhor, uma unidade específica. E é esta unidade, própria do arquitexto genérico, que possibilita (teoricamente) que aquilo que (formalmente) se apresenta como um fragmento, possa, ao mesmo tempo, constituir-se como um todo e, portanto, como um corpus independente. Roland Barthes, no seu S/Z (1970:18), justifica a segmentação do corpus, a que recorre, de modo ainda mais abrangente, já que, para o autor, o critério deverá assentar numa arbitrariedade em relação ao significante, pelo facto de a análise proposta se efectuar "unicamente (ou em última análise) sobre o significado". No nosso caso, é também na estrutura profunda do corpus profético (ao nível do que M.Riffaterre designa por significância) que tentaremos encontrar o resíduo do real (ou o imaginário), transposto para o texto através da (e durante a) enunciação.
Mas a representatividade do corpus, no nosso caso, procede, não tanto da legitimação da sua natureza fragmentária - prática semioticamente corrente e sustentada sob ponto de vista teórico -, mas mais do género que o enforma. Dissémos, mesmo, atrás, que a escolha do nosso corpus decorreu de uma prospecção prévia, onde acabámos por confirmar a sua pertinência para representar facetas do real morisco metonimicamente relevantes. Esta relevância particular está, no caso do nosso corpus, naturalmente ligado ao género profético e à sua acuidade significativa (retomando a expressão do Groupe d'Entrevernes). Para melhor clarificar este aspecto, devemos responder à seguinte pergunta: qual é a vocação do género profético para representar o real de uma comunidade em estado terminal (podendo, a partir da sua singularidade, enquanto género, espelhar a situação mais geral da comunidade que o enuncia) ?
Dividiremos a nossa resposta em nove pontos distintos:

a) O género profético e a escatologia sempre se articularam, estabelecendo pontes entre a primeira fase do fim dos tempos, a História presente e a História imediatamente futura. Nestas relações pode descodificar-se a visão real que os enunciadores proféticos têm do (seu) presente e das ansiedades ou esperanças com que encaram o futuro (Cf.Cap.V.1).
b) O género espelha, amiúde, a falta de domínio dos seus enunciadores sobre o próprio curso do tempo e, igualmente, o desejo (colectivo) de o dominar e dirigir. Este tipo de relações, existentes entre uma comunidade e o próprio curso do tempo (e o devir), poderão traduzir o real em que aquela referencia a sua própria existência (na História).
c) O género profético, para além de um género literário (ou arquitexto genérico), insere-se e é matriz de toda uma cultura, que O.Niccoli designou por Divinatio popularis (1990:13). O século XVI ibérico, na continuidade de um longo processo de florescimento do género - Cf. Cap.II) é particularmente permeável a esta cultura do profético. Neste âmbito, o profético é também um saber, através do qual, é possível interpretar o próprio devir humano - mediado pelas manifestações da natureza (também humana) - onde se revê o discurso da Divindade (o emissor surpremo). As relações entre homem-comunidade (destinatário), os signos da natureza e o seu emissor (a Divindade) dar-nos-ão informações acrescidads sobre o real (das crenças, das perspetivas de salvação, etc...) representado no nosso corpus.
d) O género profético é objecto de dialogismo entre comunidades distintas, nomeadamente cristãs e islâmicas, no momento histórico em questão. Deste modo, as profecias moriscas e cristãs coexistem e disputam actantes e designadores simbólicos comuns, caso do Encoberto valenciano que surge, com intencionalidades distintas, em profecias de ambos os campos e também em Portugal (cF.Cap.V.3.3.1.1). A visão do outro é o aspecto funcional que, neste caso, nos é útil para melhor delimitarmos um real dos moriscos enunciadores das profecias do Ms.BNP.774 (cf. corpus).
e) O género profético espelha a curiosidade humana perante o plano de salvação da Divindade, por natureza secreto, não no seu anúncio (revelação), mas no seu cronograma último. Os argumentos ao serviço desta curiosidade humana (Cf.Cap.IV.3.2) podem traduzir visões do mundo de quem os enuncia em textos de natureza profética.
f) Os textos proféticos são, igualmente, veículos privilegiados de propaganda, convertendo-se, portanto, em autênticas armas de guerra, no período em causa. Tal é um facto no quadro das guerras religiosas que assolam a Europa, no séc.XVI. Como refere Luis de Mármol Carvajal[11], o papel das profecias moriscas não foge a esses desígnios já que, por exemplo, foi importante na preparação da própria guerra de Alpujarras (sendo levadas a sério e tendo grande eficácia na mobilizaçäo e empenho moriscos). Neste quadro, poderemos penetrar melhor noutras facetas do real morisco, nomeadamente a sua consciência de campo, a sua noção (prática) de alteridade e a sua motivação de resistência.
g) Como toda a narrativa, o género profético decorre da representação da ordenação diacrónica do tempo e das ocorrências nele situadas (e descritas). Por outro lado, e é essa a sua espeficidade, o género profético disputa, simultaneamente, o próprio sentido do tempo e das ocorrências, chegando a manipulá-las post eventum. Esta manipulação do sentido do tempo (e da História) corresponde sempre a desejos e ansiedades reais de quem os enuncia (e constitui um abundante mapa de signos dos textos proféticos
h) Nos textos proféticos, a transgressão da narrativa baseia-se, não apenas na historização do ainda-não, mas também na simulação da história passada, onde tudo, de facto, adquire um fundamento primeiro, ainda que forjado. Tal característica adicional do profético (ligada à anterior) situa os parâmetros (ou as referências), a partir de onde os enuncidadores de profecias pretendem construir um passado e um futuro, ao sabor das suas carências ou desesperos contingentes e presentes. Deste modo, o real do presente revê-se (ainda que em diagonal) nas outras temporalidades forjadas ou ficcionadas.
i) Para concluir, e segundo G. Genette (1972:226), embora transgrida a narrativa (remetendo para o futuro, para a escatologia, ao contrário dos mitos que remetem para as origens, para as cosmogenias), todo o "récit préditif" é impar devido à autonomia com que representa a categoria do tempo. Ou seja, embora enunciado no tempo (verbal) futuro, o que o género profético representa - melhor do que nenhum outro - são as condições vitais e sujectivas do presente (geralmente instável e irrespondível), onde o seu texto particular é produzido (Cf.Cap.VI.2.2). Tal facto é determinante para sondar o real de uma comunidade em estado terminal, quando esta traduz, em literatutra do género profético, as suas últimas memórias.

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O manuscrito, onde se integra o nosso corpus, havia já sido referido e catalogado por E. Saavedra Y Moragas (1878:143-4) nos Discursos leídos ante la Real Academia Española el 29 de diciembre de 1878[12]. Posteriormente, os textos particulares do nosso corpus foram publicados por J.Lincoln, sob o título Aljamiado Prophecies em Publications of the Modern Language Association (1937)[13]. Em 1980, L.López Baralt publicou dois estimulantes artigos sobre as profecias do nosso corpus, numa perspectiva de determinação do momento histórico da sua enunciação e, no caso da última das profecias (1980-1), centrando a sua análise numa configuração discursiva aí presente: o ideal paradisíaco das terras ibéricas. Nesses artigos, acoplou a autora à sua análise uma nova transliteração das profecias. Por fim, já em 1982, publica-se integralmente o texto aljamiado do Manuscrito 774 BNP[14], incluindo-se-lhe, naturalmente, os textos do nosso corpus. Esta publicação é acompanhada de um sistemático estudo linguístico do manuscrito, investigação da autoria de M. Sánchez Alvarez, no que constitui "uma versão" da tese de Doutoramento da autora (orientado pelo Prof. A.Galmés de Fuentes). No seu preâmbulo, refere M.Sánchez Alvarez: "El manuscrito objeto del presente estudio fue registrado en el Catálogo de Ochoa con el número 3. Su signatura corresponde al Ms. 290 de Saint Germain des Prés y actualmente pertenence a la Bibioteca Nacional de París, Ms.774" (ibid.:9).
Não sendo o nosso trabalho de prospecção da matéria dos manuscritos originais, nem tão pouco de incidência linguística, decidimos trabalhar, de modo sistemático, a partir do texto estabelecido por M.Sánchez Alvarez (situando-se, aí, o nosso corpus, entre os fols. 278r e 308v). Porque o código grafemático dos textos em causa apenas nos interessa como um sintoma da hibridez dos seus enunciadores (uma das suas realidades, assim representada), o corpus estabelecido e transliterado por M.Sánchez Alvarez confere-nos, pois, toda a funcionalidade para a análise semiótica que nos propomos levar a cabo. O nosso objecto prende-se, já o vimos, com a dissecação da mensagem profética e com a determinação das matrizes que lhe geram os sentidos e onde, por outro lado, se deposita o (vestígio do) real dos seus enunciadores. O que não significa que os decalques semânticos e sintácticos ou os próprios arabismos não se incorporem, enquanto signos, nos caminhos da nossa análise. Mas tal não invalida que o texto fixado por M.Sánchez Alvarez, com caracteres latinos (embora com sinaléticas adicionais que remetem para o registo do aljamiado), não cumpra todos os requisitos para o objecto específico que determinámos para este trabalho.

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Passamos de seguida a descrever as vias metodológicas que percorreremos, ao longo do presente trabalho. Nele, a sintaxe dos capítulos obedece a um esquema simples: numa primeira metade do trabalho (Capítulos II, III e IV) organizámos o contexto que achámos necessário para preparar a análise propriamente dita; numa segunda parte (Capítulo V) procederemos, então, a análise em si. Finalmente, nas conclusões, recuperaremos todo o material anteriormente aflorado, para sistematizar os conteúdos proposto pelo nosso objecto.
No campo dos capítulos contextuais, dedicaremos o Capítulo II a uma breve descrição da evolução do género literário profético. Iniciaremos pela tradição profética hebraica (apenas referindo, lateralmente a Eloísta e a Deuteronomista) e veremos, de seguida, como, após o período exílico, as características do género se adensam e renovam. Integraremos, depois, a fase dos Apocalipses hebraicos (a partir do séc.II A.C.) onde surgem novos modelos literários que enriquecerão a tradição anterior do género. Nesse contexto, referir-nos-emos, também, aos textos de Daniel. Passaremos, ainda, revista à renovação do género, empreendido pela revelação cristã e, suncintamente, ao longo da sua história, antes e depois de Joaquim de Flora (até ao séc. XVI). O mesmo faremos em relação ao mundo islâmico onde, brevemente, tentaremos ilustrar as inovações do profético trazidas pela revelação corânica. Situaremos, depois, e em linhas muito gerais, as marcas específicas que o género adquirirá em meio islâmico. Este traçado contextual é importante para clarificar a compreensão das linhas gerais identificadoras do género profético, no século XVI. Toda a história anterior, proveniente da tradição judaico-cristã-muçulmana, integra os ingredientes de que o mundo ibérico, de que nos ocupamos, será destinatário (é por isso que, por outro lado, optámos em não incluir outras tradições proféticas nesta descrição). A bibliografia seguida é, na sua maior parte, secundária - de acordo com o traçado sintético e contextual que se pretende para este capítulo. Por outro lado, seguimos, neste capítulo, como eixo central de desenvolvimento, uma teoria da modalização do género (onde ligamos suportes teóricos de G.Genette-1982, T.Todorov-1979-1 e A.Fowler-1982). Este mesma orientação foi, recentemente, e de modo global, aplicada numa tese de Doutoramento, no caso sobre o género épico (A.Leite-1988).
Neste capítulo II, apreendemos, em suma, os atributos que integram, em termos gerais, o género profético até ao séc. XVI (de acordo com uma visão retrospectiva da sua evolução histórica). No capítulo III, por seu lado, tentaremos provar que a literatura de profecias se enquadra, na época, no horizonte de expectativas do leitor (ou auditório) morisco. Por outras palavras, trata-se, agora, de demonstrar que o profético é um género familiar, praticado e exequível, para além de reconhecível e conhecido. Seguimos, para esse fim, basicamente, como suporte operatório, a teoria da recepção de Hans Robert Jauss. Neste contexto, para que uma obra (ou um género determinado) se integre no horizonte de expectativas de uma época e meio, é necessário apurar: (a) o conhecimento que, na respectiva comunidade, existe das formas e temáticas literárias dominantes; (b) a oposição existente entre mundo imaginário e a realidade quotidiana (H.Jauss,1978:49; 1988:430). Passamos revista, neste capítulo, a esses quatro factores, ou seja, às temáticas da literatura aljamiada, às formas que lhe são inerentes, para, de seguida, procedermos a uma breve descrição histórica do quotidiano morisco (traçando linhas de fundo) e a um apuramento (através de interpretação de textos aljamiados e de factos históricos contextuais) das expectativas de futuro dos moriscos. Esta breve reposição dos quatro factores hermenêuticos levar-nos-á, no final, a concluir sobre a pertinência de um género como o profético, entre os moriscos (nosso único objecto neste capítulo). A bibliografia seguida basear-se-á em textos antológicos aljamiados referenciados (com uma ou outra excepção), já que o intuito desta prospecção hermenêutica é essencialmente contextual.
Finalmente, no Cap.IV, o último dos capítulos contextuais, analisaremos as condicionantes que se põem à prática do profético e, por outro lado, os factores que legitimam a sua persistência. Em primeiro lugar, veremos como é que a codificação imprimida pelas escatologias cristã e islâmica condiciona (ou não) a prática do profético. Em segundo lugar, definiremos o âmbito da noção de ortodoxia em ambos os universos, o cristão e o islâmico, e tentaremos descortinar como é que, uma e outra, condicionam a prática do profético. Dada a natureza morisca de minoria, analisaremos a noção islâmica de ortodoxia como um conjunto de prescrições (que delimitaremos), herdadas ou interiorizadas pelos próprios moriscos, no quotidiano ibérico do séc. XVI. No caso cristão, cingir-nos-emos às codificações (às regras) mais ou menos rígidas que regulam a prática profética, no tempo. Depois da análise da modalização do género (Cap.II), da verificação da sua pertinência na época e meio, de que nos ocupamos (Cap.III), acabamos, aqui, os capítulos contextuais, traçando um quadro geral das condicionantes que se interpõem à prática do profético.

O aparelho conceptual que rege o tratamento semiótico do nosso corpus, já resumido no início desta secção, encontra-se, por motivo de funcionalidade da própria análise, detalhadamente explicitado na Introdução que configuramos no início do próprio Cap.V (de 1 a 1.3).


3- Contribuição.


Embora exterior ao campo de estudos específicos da moriscologia, esta abordagem acaba por nele confluir. Já atrás, a este propósito, referimos a necessidade de novas vias de prospecção, para que melhor se possa aceder ao real terminal dos próprios moriscos. No caso concreto do nosso corpus, (ou do seu género) queríamos salientar, contudo, que a predisposição para o seu estudo aprofundado e continuado procede, também, de autores intimamente ligados às literatura aljamiado-morisca e, portanto, à moriscologia.
Incidindo no Manuscrito BNP 774, A.Vespertino Rodríguez considera-o "una especie de biblioteca de lo que debería ser una biblioteca morisca" e crê que a ediçäo de 1982 (de M.Sánchez Alvarez, acima referida) "ha puesto al alcance de los especialistas una importante documentación en torno de los estudios aljamiados" (1985:581-4). L.López Baralt, autora já citada de artigos sobre os textos do nosso corpus, refere que estamos perante textos "parmi les plus beaux et les plus authentiquement émouvants de tous ceux qui soudèrent les morisques du XVIe siècle" (1980-1:201) - enquanto M.Fierro os considera como “l´une des plus importantes collections e traditions eschatologiques”(1994:54). L.López Baralt avança, num outro artigo acerca da tradição de cariz manipulador do futuro (de que as profecias aljamiadas em questão são arquétipo), o seguinte: "...il s'agit d'une tradition dont la complexité mériterait en étude à part entière" (1980-2:68-9). L.Cardaillac, por seu lado, na conclusão da sua obra sobre os conteúdos da polémica morisco-cristã (onde insere, numa secção do capítulo inicial, uma parte sobre o papel das profecias) refere-se, do seguinte modo, à relevância do profético: "Ces manuscrits méritraient d'être étudiés: ils sont l'expression d'une communauté et de ses problèmes" (1977:389). Embora, de maneira nenhuma reivindicando a efectivação dos estudos suscitados por estes autores, pensamos que a presente abordagem, decerto limitada, se poderá inserir, mesmo assim, no quadro de contribuição suplementar por eles sugerida.
O segundo nível de contribuição desta abordagem (teórica e já não tanto do âmbito da moriscologia), diz respeito ao que designaríamos por desafio do real. Ou seja: na procura de um aparelho conceptual que, partindo de pressupostos semióticos,onde se pudessem, mesmo assim, estabelecer ligações de facto entre aquilo que é um texto e a realidade exterior (a que este se referirá ou no seio da qual terá sido enunciado). Para a semiótica de C. Peirce, o real decorre de representações sucessivas (os chamados representamen), nunca se atingido, neste percurso ilimitado, o exterior (ou seja, o próprio real)[15]. No caso da semiologia saussureana, não se pode afirmar, por razões diferentes, que também se prescreva uma ligação factual entre a linguagem e o real (a que ela se refere), porque a relação entre significante e significado é, segundo o autor, interior e inerente ao próprio signo (acabando este por ser devedor de uma visão puramente mentalista). Embora, para M.Riffaterre, esta relação entre um qualquer texto e o real decorra de uma ilusão (referencial), o facto é que, através do seu princípio do "double parcours", o autor acaba por assumir que todo o texto "est perçu comme variation sur une structure thématique, symbolique ou autre, et c'est cela qui constitui la signifiance" (1982:97).
Ao situar esta estrutura (também) simbólica, M.Rifaterre permitiu-nos ligar a construção semiótica do texto com algo "que pré-existe" aos próprios enunciados linguísticos: o símbolo (J.Kristeva,1969:117). Se, como refere A.Kremer-Marietti (1982:163-4), "c'est en nous que nous trouvons le Symbolisme, sur lequel le principe de réalité se strucuture", também, no seio dos enunciados linguísticos, as formas simbólicas são igualmente garantes da unidade com que representamos (em nós) o real exterior. Ou seja, os símbolos estabelecem a ponte entre a "consciência total" (E.Cassirer,1982:54) de um enunciador e os signos (neste caso linguísticos) que enformam a mensagem contingente por aquele produzida. É aqui que reside o desafio do real, desta nossa abordagem: compatibilizar este papel particular dos símbolos (que nos levam à realidade exterior ao texto, isto é, à "consciência total" do seu enunciador) com o papel que, segundo M.Riffaterre, os símbolos desempenham (enquanto matrizes, a partir de onde todo um texto irradia, ou se constrói). Esta compatibilização está no centro do nosso aparelho conceptual de análise (Cf.capítulo V.1) e pressupõe, entre outras variantes da nossa pesquisa, a identificação e interpretação (ainda que, muitas vezes, necessariamente subjectiva) da sintaxe das formas simbólicas existentes no nosso corpus (e, decerto, muitas vezes involuntariamente neste transpostas pelos seus enunciadores).
O último nível de contribuição, que queremos referir nesta Introdução, diz respeito à ordenação (ou categorização) do conteúdo concreto do real que iremos pesquisar neste trabalho. Articulando o aparelho conceptual da nossa análise com o texto profético enunciado pelos moriscos aragoneses, propomo-nos desvendar diversas facetas do real, vividas (interior ou exteriormente) por estes. Mas cumpre-nos, metodologicamente, definir orientações quanto a esse real, sob pena de incorrermos em ambiguidades. Assim sendo, encaminharemos a nossa pesquisa - sobretudo na organização das nossas conclusões finais - no sentido de darmos conta de três dimensões distintas do real (representado nas profecias do Ms.774 BNP):

a) a primeira prende-se com a identidade dos moriscos enunciadores (tentando responder à seguinte questão: o que nos define como ser colectivo, como comunidade ?);
b) a segunda diz respeito à questão da existência (tentando responder à seguinte questão: que relaçäo existe entre o nosso ser colectivo - a nossa comunidade - e o tempo? - perduraremos no tempo ou, pelo contrário, vivemos já o nosso fim dos tempos?);
c) a terceira dimensão do real, a pesquisar, põe a interrogação mais profunda de uma comunidade em estado terminal: onde encontrar respostas para as questões anteriores, relativas ao ser e à existência ? - Por outras palavras: como é que, olhando para o mundo exterior - como entidade significante -, poderemos encontrar o significado que nos permita atribuir sentido, quer à nossa identidade, quer à nossa própria existência (enquanto comunidade e, também, enquanto parte de uma civilização mais geral) ?

Esta última questão, sobretudo, põe um problema de natureza ontológica - talvez o mais profundo e decisivo de toda a questão morisca. Estamos, nesse sentido, perante um ser (neste caso, um ser colectivo) que se interroga acerca do desfasamento entre as esferas divina e terrena, e que, por outro lado, alimentará, progressivamente, as perplexidades de quem se sente a sós com um destino trágico pela frente (e sem o compreender). Como atrás se referiu, é este embate com a finitude - enquadrado num âmbito mais vasto de natureza histórica (onde as terras ibéricas surgem, após o século de ouro, mergulhadas na sua grande regressão) - que fundamenta o próprio objecto a que, neste trabalho, nos propomos.
A.Shepheard (1986:64) observou que - "poser la question: Comment savoir l'avenir?, c'est en somme s'interroger sur toute forme de connaissance humaine". E o saber, no tempo, espaço e meio ibéricos de que nos ocupamos, é, regido por códigos epistemológicos (que regem as relações entre o objecto a conhecer e o sujeito que o interroga) ainda assentes na cultura do Divinatio. É, neste contexto, que os textos proféticos acabam por ser o maior depositário potencial de informações (muitas ambíguas ou simbólicas - o que corresponde também a regras intrínsecas do género[16]), dispostas com uma sintaxe e um afloramento decerto irregulares, mas capazes de nos dar uma das últimas imagens reais dos moriscos aragoneses. Por outras palavras, ainda: uma das últimas imagens de toda uma civilização, na Península ibérica.

[1]-A expressão é de L.Cardaillac (1977:57).
[2]-Remetemos esta brevíssima delimitação da noção de real para Wolfgang Iser,1978:68 (The act of reading - A theory of aesthetic response, London), onde se lê: "Events are a paradigm of reality in that they designate a process, and are not merely a discrete entity. Each event represents the intersecting point of a variety of circumstances, but circumstances also change the event as soon as it has taken on a shape. As a shape, it marks off certain borderlines, so that these may then be transcended in the continuous process of realization that constitutes reality.". W. Iser prescreve esta noção a partir do raciocínio de A. Whitehead (1938:113-114) que passamos a citar no seu todo (consultamos a edição de 1938, e não a de 1953, citada na obra de W.Iser): "One all-pervasive fact inherent in the very character of what is real is the transition of things, the passage one to another. This passage is not a mere linear procession of discrete entities. However we fix a determinate entity, there is always a narrower determination of something which is pressupposed in our first choice. Also there is always a wider determination into which our first choice fades by transition beyond itself. The general aspect of nature is that evolutionary expansiveness. these unities which I call events, are the emergence into actuality of something. How are we to characterise the something which emerges ? The name event given to such a unity draws attention to inherent transitoriness, combined with the actual unity. But this abstract word cannot be sufficient to characterise what the fact of the reality of an event is in itself. A moment's thought shows us that no one idea can in itself be sufficient. For every idea which finds its significance in each event must represent something which contributes to what realisation is in itself. Thus no one word can be adequate. But conversely, nothing must be left out"(...)"Aesthetic attainement is interwoven in the texture of realisation. The endurance of an entity represents the attainment of a limited aesthetic sucess, though if we look beyond it to its external effects, it may represent an aesthetic failure".
[3]-Componente sígnica da teoria semiótica de C.S.Peirce, designando a imagem mental que reconstitui (ou representa) o(s) objecto(s) do real que, por sua vez, nos são veiculado(s) sob a forma de representamen (cf..Cap.V.1,-1978,I:303/1.564): "A representation is that character of a thing by virtue of which, for the production of a certain mental effect, it may stand in place of another thing. The thing having this caracter I term a representamen, the mental effect, or thought, its interpretant, the thing for which it stands, its object." (cf. nota 15).
[4]-T.Fahd (1966:298).
[5] Como exemplos de artigos de raíz semiótica refiram-se D.Cardaillac (1981:174-183), onde se assume, em nota 2 - ibid.:174, o recurso “à des principes de sémiologie”, nomeadamente de A. Greimas e do Grupo de Entrevernes e J.Hawkins (1988:199-217), onde o recurso não é assumidamente semiótico, embora sejam operatoriamente claras as noções greimasianas de “percurso figurativo” e de “configuração discursiva”.
[6] Para acompanhar a bibliografia secundária sobre a moriscologia, cf. revista Aljamia (nº-1-1989 a nº6-1994 - Universidad de Oviedo), na secção “Noticias” e “Mudéjares y Moriscos”. Assinale-se também o artigo de M.García-Arenal: Últimos estudios sobre Moriscos; estado de la cuestión in Al-Qantara, Vol.IV, fasc.1 e 2,1983:101-114.
[7]-Conhecidos como Manuscritos de la Junta, encontram-se, hoje em dia, no Inst. De Filología del CSIC, Madrid - Ms.Árabes de la Junta - R.Kontzi,1981. Originariamente, foram descobertos em Aragão, em Almonacid de la Sierra, no ano de 1884. Neste trabalho passaremos a designá-los pela incial J, acompanhado com o número correspondente.
[8]-Os Manuscritos da Biblioteca Nacional de Madrid, catalogados por F.Guillén Robles (Catálogo de Manuscritos Árabes), intregram, na sua maioria, manuscritos aragoneses anteriores aos da Junta, Referenciamos, neste trabalho, tais Manuscritos pelas siglas Ms.BNM, acompanhados do número correspondente.
[9]-Manuscrito aljamiado (excepto entre os fol. 88v e 189r, em Árabe) já referenciado por Saavedra no apêndice aos Discursos leídos ante la Academia Española el 29 de Deciembre de 1878, Madrid, e catalogado pelo autor como número sessenta. O Manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris corresponde ao manuscrito número 290 de Saint Germain de Près. Passaremos a designá-lo através da sigla e cota seguintes: Ms.BNP 774.
[10]-L López Baralt, 1980-II:357.
[11]-No seu livro Rebelión y Castigo de los Moriscos de Granada (Historiadores de Sucesos Particulares, B.A.E., Tomo XXI:169-174). Cit in L.Cardaillac, 1977:50.
[12]-M. Sánchez Alvarez,1982:9.
[13]-Edição de Baltimore, no número LII da referida publicação.
[14]-El Manuscrito Misceláneo 774 de La Biblioteca Nacional de Paris, 1982, da Editorial Gredos (na colecção de Literatura espanhola aljamiado-morisca, dirigida por Álvaro Galmés de Fuentes).
[15] "A representamen is a subject of a triadic relation to a second, called its object, for a third, called its interpretant" (C.Peirce, 1978,I:285/1.541), isto é, o "representamen" conduz permanentemente até nós o objecto sob a forma de "interpretante".
[16]-Cf. Simbólica do cronotopo (Cap.V.3.3.1)