Thursday, November 17, 2005

"Qualquer um pode escrever ?
Técnica ou imaginação ?"
e
Tentando responder à segunda questão que foi sugerida para esta conferência "técnica ou imaginação ?", prefiro subtrair o factor da construção propriamente retórica da escrita literária - tema para um livro - ao factor imaginativo e passo, de seguida, a desenvolver a ideia de que a literatura é basicamente, na sua origem formativa, uma fábrica imaginativa, cuja linguagem e corpo de regras se inventaram a si próprios.
A literatura, tal como a entendemos durante o século XIX e XX, não é uma ideia muito antiga e suscitou, sobretudo no último século, uma acesa discussão teórica acerca dos seus limites, atributos e identidade(s) possível(eis).
Sobre este tema, convém sintetizar alguns aspectos:
a) Trata-se de uma comunicação escrita que se distancia de um contexto empírico e pragmático, ou seja, que habita numa arena de ficcionalidade pura;
b) Os mundos que na literatura se enunciam e o que, no seu seio, se solicitam ou se representam dependem apenas de um espaço e de um tempo que a ficcionalidade, a partir da sua própria descrição e indução narrativa, constrói;
c) Como acontece nas demais artes modernas pós-românticas, o universo expresso através dos textos literários é dotado de autonomia específica e, ainda que filtrado por realidades que o impregnam das mais variadas linhas de fuga, a verdade é que vive de uma realidade que a própria literatura cria. À receita teológica que constituiu o âmago da codificação das escritas pré-modernas, sucedia, há dois séculos, uma autonomia expressiva e formativa que é também a da redescoberta de um novo sujeito que efabula e delira por si mesmo, sem perímetros imanentes, ou, pelo menos, apenas sujeito aos perímetros que ele próprio, racionalmente ou não, define para si.
d) Na comunicação literária, estes perímetros, melhor, estas regras estão, em princípio, devidamente interiorizadas pela complexidade do auditório-receptor e, por outro lado, pelos emissores, que se desdobram numa amálgama que pressupõe a interacção entre personagens, autor e outras instâncias. Esta partilha de um código literário deve, contudo, ser entendida como uma espécie de substância volátil e deslizante, cheia de atrito e de diferimento do sentido. O mais abjecto e o mais clássico dos textos podem, subitamente, recair, ou não, no horizonte onde o literário se evidencia, assim como o mais artificioso e kitsch - tanto na moda, hoje em dia - podem exigir, reivindicar ou disputar o atributo literário. Todo este jogo é, na actualidade, por paradoxo, um jogo de silêncios, de mutismos; de adesões e de repulsas; de insinuações e amiúde, aqui e ali, de pequenos prazeres.
e) De facto, a crítica deixou de ser, nos últimos anos, um universo - também autónomo e judicativo, por natureza - tal como durante uns bons dois séculos se propôs ser, no âmbito de uma tarefa, aliás constitutiva da própria noção de literatura moderna. Como referiu Jean-Luc Nancy, acerca do Athenaeum de 1798-1800, a literatura e a crítica passaram, na época, a ser ideias novas e muito ligadas entre si. À mimesis, mundo das representações da natureza, sucedia agora a poeiesis, o que pressupunha a linguagem a inventar-se a si própria, reinventando novas figuras e coreografias imaginárias e combatendo, por outrolado, a rigidez dos géneros clássicos e neo-clássicos. Do mesmo modo, e como disse Schlegel, "a poesia" passou apenas a poder ser "criticada pela poesia", posição que ilustra o que, nos dois últimos séculos, acabou por constitur o círculo criativo e comunicante - literatura-crítica-público, transformado num verdadeiro pilar vertical de edificação de valores, de referências e de filtros do viver quotidiano. Nos últimos anos, a entrada em cena da instantaneidade tecnológica, a rotação dos grandes códigos sociais e a nova sociabilização do globário actual acabariam por devolver à literatura a sua nova condição de nicho, de retábulo lateral, de locus ameno, situado na novíssima horizontalidade plural de fragmentos, linguagens e valores em que vivemos.
Conclusão: a literatura - tal como a temos entendido há dois séculos - é sobretudo uma fábrica imaginativa, cuja origem mais próxima remonta ao final do século XVIII, quando a autonomização dos sujeitos se interpôs decisivamente às interpretações teológicas do mundo. O seu caracter valorativo e imaginativo foi, durante muito tempo, essencial, ao lado de outras escritas e da novidade fotográfica e cinematográfica. A maior parte dos ícones e símbolos do século XIX e XX nasceram nestes berços comunicacionais. Nos últimos anos, estas construções entraram progressivamente em falência e, em contra-partida, a actual relação global entre auditórios e poli-emissores adquiriu uma complexidade nova de tipo rizomático.
Tentando responder à segunda questão - "qualquer um pode escrever ?" - é evidente que respondo, desde logo, que sim. Até porque as capacidade humanas correspondem a universos potenciais que, em equidade mínima, diga-se, estão sempre aptas a transformar-se em acto, através do respectivo esforço, vontade e desejo.
Contudo, nem todos nós estamos aptos a actualizar potencialidades que não perseguimos, ou que, pura e simplesmente, escapam ao limiar da nossa atenção, vontade e desejo. E diga-se, de verdade, que não há instituição reguladora - Tal como a CNVM que regula a bolsa - que separe as águas e nos diga quem é e quem não é sujeito-escritor. É por isso que todas as tentativas teóricas que tentaram, à partida, separar conceptualmente literatura e não-literatura, tal como a ideia de literariedade, falharam. Isto não quer dizer que não existam textos que são literários e textos que o não são. Contudo, o aferimento, a inferência, a decisão pertence mais a um círculo hermeneûtico e social, onde interagem, de modo eclético, o texto por si mesmo, o texto da crítica por si mesmo e a ambiguidade da consciência de cada um; isto é, do público. O resultado acabará por ser, mais uma vez, uma amálgama, uma soma de diferendos, um espaço aberto de possibilidades. É por isso que a Margarida Pinto Correia e o Mário Cláudio recortam, nesse círculo hermenêutico e social, interesses e paixões diferenciadas; e é por isso, que uma bela quadra de gosto popular e uma passagem do Ulisses de Joyce recortam, nesse círculo hermenêutico e social, interesses e paixões completamente diferenciadas.
Para terminar, queria ainda referir, nesta linha que subtrai o factor da construção retórica da escrita - tema para um livro, repito - ao factor imaginativo que, se há dúvidas e ambiguidade no que toca à ideia precedente, o mesmo já não acontece quando nos referimos explicitamente à imaginação.
Para o exemplificar, centro-me nas investigações do neurocientista António Damásio, para quem o cérebro é um exemplar contador de histórias. Com efeito, no seio da verdadeira rede de relatos com que concebe o diálogo dentro dos vários níveis da consciência e seus sis, ou seja, da antecâmara que designa por "proto-si" à "consciência nuclear" e desta ao topo da "consciência alargada", António Damásio conclui que "contar histórias precede a linguagem", o que é até, "afinal, uma condição para a (própria) linguagem"(...)"que pode ocorrer não apenas no córtex cerebral, mas noutros locais do cérebro, quer no hemisfério direito, quer no esquerdo" (ibid.:221).
António Damásio (1) vai mesmo mais longe e conclui que toda a tradição, baseada na filosofia da consciência e que sublinha o importante papel da intencionalidade (Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas, etc) - para além de outras formas de ênfase à intencionalidade, enquanto prática filosófica - não passa de uma consequência desta verificação simples: a capacidade do cérebro em contar histórias. Diz o autor: esse "dizer respeito a", exterior ao cérebro, tem exactamente "como base a tendência natural do cérebro para contar histórias, o que ocorre sempre da "forma mais espontânea possível" (ibid.:221). Aliás, na discussão que as Luzes empreenderam, no século XVIII, em torno do problema da representação (De David Hume a Kant), já a figura da imaginação surgia como uma entidade decisiva, autónoma e transformadora das interacções entre o representado e o representante.
C.Giannetti, referido por Damásio em O Sentimento de Si, também sublinhou o facto biológico e comunicacional que, ao fim e ao cabo, alicerça este auto-narração humana silenciosa que se arrasta imparavelmente na mente: "Enquanto o corpo permanece imóvel, a mente pode empreender as mais surpreendentes viagens."(...)"A investigação desta capacidade de abstracção do cérebro humano constitui um dos objectivos fundamentais da neurociência."(...)"Para isso, as células criaram um sistema de comunicação baseado em fibras conectoras que estabelecem o nexo de cada neurónio com um número de células vizinhas que pode chegar até dez mil. Estes nós poderiam alcançar a incrível quantidade de mil biliões de conexões interneurais em cada cérebro".
Isto significa que o ser humano é um ser, não só para tomar conta do mundo como adiantou Heidegger, não só para a sobrevivência pura como admite Damásio na sua última obra, mas é também, e desde a origem, um ser com e para a imaginação. Neste quadro, poder-se-ia concluir que a literatura, enquanto exclusiva arte que fala, enquanto extensão possível do cérebro que pensa, é a única forma de delírio e de "loucura" que a modernidade social e legalmente autorizou, não a condenando, portanto, à fronteira racional do hospício.
e
Notas
(1) - A. Damásio, O Sentimento de Si, Europa-América, Lisboa, Lisboa, 2000.
(2) - C. Giannetti, 'Trespassar a pele: o teletrânsito' in Ars telemática, Relógio d´água,Lisboa, 1998:120/1
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1 Comments:

Blogger Alberto Magalhães said...

A proposta [do psicólogo Robert Trivers - (1985)Social Evolution, Menlo Park, Cal.: Benjamim/Cummings] é que o cérebro humano é, em larga medida, uma máquina de argumentar, uma máquina para convencer os outros de que o seu dono tem a razão do seu lado –
e, portanto, uma máquina para convencer o seu dono da mesma
coisa. O cérebro é como um bom advogado: dado um qualquer
conjunto de interesses a defender, trata de convencer o mundo do
seu valor moral e lógico, independentemente de eles possuírem um ou outro. Como um advogado, o cérebro humano quer a
vitória e não a verdade e, por vezes, é mais admirável pela
habilidade que pela virtude". [citação de Robert Wright (1994). The Moral Animal, N.Y., Vintage Books, pag.280].

10:44 AM  

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