Tuesday, November 23, 2004

As Primeiras quatro árias de Nefertiti
(Ópera de José Júlio Lopes de que fui autor do libretto. Esteve em cena no Trindade em Fevereiro de 2000 e o texto foi escrito em Março de 1999)

NARRADOR (cena 01)

1
É eterno aquilo que está fora do tempo
ou é eterno o que no tempo se dilata ?
É eterno aquilo que é próprio do tempo
ou é eterno o que do tempo se separa ?
Eis as perguntas sagradas desta trama.
Eis as perguntas da princesa da fama.

2
À primeira, diz suma Nefertiti que não;
à segunda, deixa sorrir um prodígio puro;
pela terceira, não nutre qualquer paixão;
à quarta, só se se prendesse num muro;
eis o que pensa a princeza da iniciação.
Eis o que a faz pensar em predestinação

3
Um dia, o destino fugiu ao grito do bardo;
no olhar de Nefertiti fez-se a grande fobia
e, nesse eco criado, a visão revelada surgiu.
Efémero, o mundo disparou o grande arco
e na flecha advinha já a voragem da utopia,
como presságio seu que viu Nefertiti no rio.

4
Por Akhenaton, de raro amor foi possuída;
pelo império, fez o eterno dilatar o tempo;
pela utopia, mandou gerar Tell-el-Amarna;
pela pureza, ordenou aos deuses a sua ira
e apenas o disco solar dirigiu o firmamento;
eis o que foi o Egipto durante quinze idades.

5
Sabe a raínha o que a colocará fora do tempo ?
Saberá segredos dos deuses que a não calam ?
Saberá Nefertiti o que é um sonho intemporal ?
E por que correrá o cisne branco ?Por lamento ?
Sabe Nefertiti que cisne e sonho não agoiram ?
Que espera a raínha que se funde com o ideal ?


Eis as muitas perguntas sagradas desta trama.
Eis as muitas respostas da doce princesa fama.


1.NEFERTITI (cena 02)

1
Ó cidade de Amarna !
Não devolvas as tuas sementes ao rio,
nem esqueças o linho branco e vivo
do meu corpo em chamas !

Que neste pátio de segredos
se erguiam as facas e os cedros
do teu prodígio, Akhenaton !

2
Ó cidade das tâmaras !
Não encolerizes os nautas da morte,
nem deixes escorrer estas lágrimas
que humedecem o deserto !

Que nos meus olhos pintados
se escreviam as noites e as romãs
do teu prodígio, Akhenaton !

3
Ó cidade dos palácios !
Não arranques ao abismo a flor do céu,
nem deixes voar sobre os teus jardins
esta sombra que me ofusca !

Que no meu rio florido e mudo
se cativavam os dardos e as lanças
do teu encanto, Akhenaton !

4
Ó terra do amor perdido !
Não esqueças a luz que sustenta a íris,
nem deixes o meu olhar esvair-se
no bálsamo da tua esperança !

Que nestas áleas de Amarna
se criaram os amantes e as abelhas
do teu encanto, Akhenaton !

5
Ó terra do rio obscuro !
Não mates as margens férteis da vida,
nem deixes que os frutos sequem
na ruína da minha desventura !

Que nestas casas de éter
se criaram os seios e as harpas
do teu prodígio, Akhenaton !

6
Ó terra do único Deus !
Não lamentes este meu perpétuo luto,
nem deixes que sobre Tebas caia
o relâmpago do astro perfeito !

Que no meu sigilo de amor
se criaram seis filhas e seis luas
do teu prodígio, Akhenaton !

7
Ó destino turvo e cego !
Não silencies o meu oráculo sagrado,
nem deixes ouvir a voz do ganso
entre as nuvens da noite !

Que no crispar desse rumor
se levantaram as iras e venenos
do teu desencanto, Akhenaton !


2.CORO


1
Sob o círculo divino da sua luz
enviou o Sol
o ímpeto distante do falcão
e connosco desceu
à cidade inaudita de Akhenaton

2
Sob o aro excelente da sua luz
enviou o Sol
o raro eflúvio da paixão
e connosco partilhou
a cidade perfumada de Akhenaton

3
Sob a roda insaciada da sua luz
enviou o Sol
as sete setas do coração
e connosco iluminou
a esbelta cidade de Akhenaton

4
Sob o anel redondo da sua luz
enviou o Sol
a força nua da perdição
e connosco fundou
a utópica cidade de Akhenaton


NEFERTITI (cena 3)


1
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me ao entrar nas águas
que se abrem atrás do crocodilo agitado;

Olha-me nos olhos
que se abrem em rugido no meu coração.

Olha-me Akhenaton,
eis-me destemida na nossa cidade do ouro !

2
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me ao entrar na imensa praça
que se abre como a folha nobre da palma;

Olha-me nos olhos
que se abrem como mandrágoras imortais.

Olha-me Akhenaton,
eis-me pronta à divina e nova lei de Amarna !

3
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me de braços no ar no limite do rio
que se levanta em duas partes para eu passar;

Olha-me na minha alma
depois de cruzar o leito iniciado de Amarna.

Olha-me Akhenaton,
eis-me face ao destino prodigioso da história !

4
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me ao entrar nos teus olhos
que se abrem para além do cristal e do tempo;

Olha-me nos olhos
que se abrem em mim no bosque do firmamento.

Olha-me Akhenaton,
eis-me face a ti neste paraíso que é o nosso !


DIÁLOGO (cena 4)


NEFERTITI
Que âmbar enfeitiçou o inebriado dia do nosso amor ?
Por que nos atraiu o sol como cometas do mesmo ar ?

AKHENATON
Ó minha raínha da flor de lótus,
Porque é do sangue do húmus que nasce a lúcia-lima !
porque é nos teus olhos que a nova cidade se revelou !

NEFERTITI
Que ouro trouxe até nós estas duas serpentes sagradas ?
Por qual barco atraiu o fundo do rio esta quilha do desejo ?

AKHENATON
Ó minha raínha dos ares de ibis,
Porque é nos teus seios que a corrente alimenta as raízes !
porque é só da tua fonte que o círculo do sol se anunciou !

NEFERTITI
Que delírio me fere o peito como se fossem hastes de Ísis ?
Por que lua cheia sou possuída e por teu louvor apaixonada ?

AKHENATON
Ó minha doce raínha visionária,
porque o eclipse do mundo em ti se finou na aurora anunciada
porque enlaçaste o rio luminoso entre Tebas e Menfis sagrada

NEFERTITI
Que fio de seda me abraça neste destino de júbilo e de mirra ?
Por que sou bendita entre as mulheres e a Nefertiti escolhida ?

AKHENATON
Ó raínha do princípio do mundo,
porque os magos correram dunas seguindo os nossos cometas !
porque para nós uma cidade só de éter criaremos em Amarna !

NEFERTITI
Que presságios são estes que me fazem ver os teus olhos roxos ?
Por que serei eu a eleita neste casamento entre os céus e a terra ?

AKHENATON
Ó raínha do paraíso anunciado,
porque é dentro de ti que vai nascer o fortúnio do novo tempo !
porque és a oferenda dos braços de Ré e a portadora da chave !

NEFERTITI
Que chave é essa, meu noivo amado e concebido por Atom ?

AKHENATON
É a chave da terra ideal onde os jardins são a balança do cosmos !

NEFERTITI
Que sigiloso escaravelho em fogo nos dará a forma dessa terra ?

AKHENATON
É entre dois leões que se abrirá em luz o véu do grande horizonte !



4.2 DIÁLOGO (quando ficam sós, após o cortejo; cena 03))



NEFERTITI
Por que sonhei eu que eras um pássaro de barro, Akhenaton ?

AKHENATON
Talvez o voo fosse a virtude e de barro fosse feito o corpo
Que pronuncias por trás desses olhos alucinados, Nefertiti ?

NEFERTITI (em êxtase súbito)
1
Vi-te moldado pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras de Samuel na boca de David
vi reinos divididos em dois
após Salomão
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio no Líbano e na Pérsia
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton

e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão

2
Vi-te moldado homem pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras da Sibila na boca de Circe
vi reinos divididos em dois
após Ulisses
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio na Núbia e no Delta
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton

e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão

AKHENATON
O que dizes, Nefertiti, desse sonho antigo agora acordado ?

NEFERTITI
Não sei, meu amado, não sei.
Nada sei a não ser o amor
que gera a obra de ouro, Akhenaton !

AKHENATON
Foi em jovem que ouviste tais signos, minha raínha ?

NEFERTITI
Foi sim, Akhenaton. Ouvi que o mundo desaguava em nós
vi a foz que reentrava entre os nossos olhos predestinados
vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !

AKHENATON
Repete-o, minha raínha de ouros,
repete-o alto para que no Olimpo
te ouça a tua rival águia de Atena !

NEFERTITI
Vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !

AKHENATON
Deixa-me concluir esta secreta visão,
deixa-me concluir o teu velho oráculo !

NEFERTITI
Sim, meu amado, sim
pronuncia-o bem alto
e liberta o verbo ao rio

que Cristo já te escuta
sobre as águas agitadas
por onde a lava desliza

AKHENATON
Sigamos até à magnífica cidade do mundo !
Sigamos pelos arcos da cidade do cosmos !
Sigamos até à cidade da perfeita aparição !
Sigamos pela nova aura de Tell-el-Amarna !

NEFERTITI
Sigamos, sim, meu amado. Sigamos !

0 Comments:

Post a Comment

<< Home