Friday, October 22, 2004

Romance (12/1995)

Escrever um romance é descobrir o porto de abrigo de onde podem partir, não apenas navios em chamas, mas também figurações e celebrações do espírito até então latentes, adormecidas, por enformar. Escrever um romance é descobrir o porto de abrigo de ondem partem sobretudo fantasmas (para Isidoro de Sevilha, fantasma é toda a imagem que formamos a partir de uma imagem desconhecida, “apariencias de un cuerpo liberadas de la sensación corpórea”) . Escrever um romance é delinear a surpresa que se desenhou há muito, no segredo mais íntimo do pasmo daquele(s) que se descobre(m) a criar. Escrever um romance é enunciar, por palavras, a sede informe que transforma qualquer mundo numa suposição, ou numa possibilidade de aventuras a desenrolar, porventura, num tempo imaginário e ávido por ser preenchido. Escrever um romance é contradizer o lugar comum do olhar que objectiva momentaneamente os mundos que nos são dados; ao invés, escrever um romance é augurar os ínvios itinerários por onde se terão esfumado os factos que não chegaram, num dado momento, a ser. Escrever um romance é construir realidade, reuni-la ou transmutá-la, apesar dos contornos formais e dos limites que (nos) são postos ao ordenar ou desmontar as suas mais variadas peças. Escrever um romance é perder o lume do abismo e acender a sombra mais imperceptível da memória.

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