Thursday, November 17, 2005

Uma boca de cena íntima:
Poe, o gótico e o visionarismo
Ao falarmos de gótico estamos a falar de um tipo ficcional obscuro, decerto contíguo à matriz romântica, impregnado de simulacros medievalistas e mergulhado por uma dominante de mistério e de terror. O locus selvagem e ameaçador dos castelos, mosteiros, abadias ou ainda das passagens subterrâneas, labirintos ermos e edificações recônditas que o gótico propõe identifica-se, quase sempre, com a natureza sombria dos seus enredos onde abundam ambientes tempestuosos, fantasmáticos, mórbidos e votados ao ultraje, à superstição, à vingança, quando não ao arrebatamento por vezes elementar e primário. Iniciadas pela pena de Horace Walpole, com Castelo de Otranto (1765), e por Ann Radcliffe, com Os mistérios de Udolpho (1794), o gótico propriamente dito cedo viria a ser depurado do seu excesso de extravagâncias e até simplismo, acabando algumas das suas características por serem retomadas, amalgamadas e até modalizadas por escritores como Edgar Allan Poe, Nataniel Hawthorne, ou ainda pelas irmãs Bronte. O dealbar da chamada ficção científica (retenhamos por exemplo o caso de A ilha do Dr. Moreau de G. Wells) também recebe óbvios contributos do gótico, para já não falar dos verdadeiros estigmas negros de oitocentos, tais como Frankenstein (1818) de Mary Shelley e do já mais tardio Drácula (1897) de Bram Stoker, modelos de futuros e abundantes intertextos literários e fílmicos.Contudo, o fundamental no gótico não é ele mesmo, mas antes a inquietante flutuação que suscita e irradia. A produção de sentido do gótico deve pois ser apreendida na cadeia relacional que o mesmo estabelece e provoca e não tanto no fechamento da sua "mêmeté" ilusória, para utilizar a feliz expressão de Ricoeur de Soi même comme un autre (1990). Um dos casos de hibridismo produtivo mais estimulante de neo-gótico, não só pelo que implicou na sua recepção futura, mas também pelo germe de profetismo e mimese com que provocou a modernidade nascente, foi o de Edgar Allan Poe (1809-1849). O poeta, escritor e crítico de Boston não é apenas sinónimo de ditirambo ao mais puro dos macabros, na tradição linear do gótico puro. Nem o é tão-só ao mundo periférico do álcool e de outros anestesiantes próprios do spleen urbano do início de oitocentos, como muitos dos seus correligionários americanos julgaram. Nem é apenas o resultado de um feitiço apaixonado, encantatório e matricial, tal como Baudelaire o viu e particularmente visionou. Poe é também um poço de reflexão complexa acerca do mundo da poesia e acerca da prática analítica das narrações de acordo com métodos de indução, dedução e conjectura (quase antecipando-se literariamente, já se vê, à célebre abdução de Peirce). Poe é ainda um construtor de subjectividades a várias vozes, capaz de transpor para a literatura a aura de uma liberta e às vezes judicativa homodiegese. Por outro lado, Poe traz ao seu neo-gótico especioso um ingrediente fundamental e por isso mesmo sincrético, que foi justamente a fusão entre o labirinto urbano pré-baudelaireano (predito por aquele, retrodito por este) e o, embora menos usado, cenário tradicional da adulada desolação medieval e gótica.Neste artigo é nosso objectivo problematizar as diferenças de arquitectura significativa que se fazem sentir no diálogo entre personagens humanos e seres ficcionais de ordem fantasmática, tal como se nos apresentam em âmbitos exteriores ou adstritos à modernidade. Para tanto, recorreremos, no primeiro caso e de modo breve, à imagem dos monstros e portenta sobretudo medievais; no segundo caso, recorreremos mais desenvolvidamente à tessitura dos fantasmas e prodígios criados pela enunciação de Edgar Allan Poe.Portenta e monstros: os dois mundos.Os Portenta, também considerados presságios, eram imagens que, até ao limiar de setecentos, estavam sobretudo ligadas aos defeitos invulgares de parto, enquanto que os monstros, propriamente ditos, correspondiam sobretudo a imagens de criaturas que, segundo o mito e as lendas, povoavam a periferia distante e desconhecida do globo. Estamos a falar de um mundo tal como Hereford o desenhou no século XIII, de acordo com o tradicional modelo T-O. Ao centro desse tipo de mapas, por cima do traço horizontal da letra T, surge a Ásia e por baixo desse mesmo traço, surge, à esquerda, o Nilo e, à direita, o Dom. Por sua vez, à esquerda e à direita do traço vertical da letra T - que corresponde ao Mediterrâneo -, surge a Europa e a África, respectivamente. À volta deste T, duas grandes circunferências desenham, não o que poderíamos pensar ser a atmosfera, mas sim o designado e espesso "Oceano". É para além desse desconhecido "Oceano" periférico que, segundo variadas tradições, o mundo andaria povoado por criaturas monstruosas. Para Santo Agostinho, a natureza estava, de facto, dividida em duas partes, a da ordem, a visível, a que permite ler os sinais da divindade e, por outro lado, a do inesperado, a da incompreensível, ou a do maravilhoso. Sabe-se que, ainda no século XVI, a palavra curiositas remetia em grande medida para um certo tom pouco cordato de heresia. Para o caso, portanto, essa outra ordem da periferia do globo, por onde pululavam monstros semelhantes aos descritos nas versões medievais latinas da carta do Preste João das Índias, ou em imagens fortes com as de Ravenna (1557), de Boaistuau (1560) ou, entre mil outras, como as que aparecem na Chronica mundi de Schedel (1493), era uma ordem que não constituía uma ameaça directa da divindade ao homem, sendo antes interpretada como prova da falta de capacidade dos mortais para interpretarem, na sua totalidade, o próprio plano de salvação divino. Esta limitação semiótica, ou, se se preferir, esta restritiva teo-semiose própria do mundo pré-moderno, é um atributo que já não está presente no gótico do final de setecentos e do início de oitocentos. Aí, a disputa do desconhecido, do inesperado, do outro fulgurante aparece traduzido por outras mecanismos de controlo narrativo. Metáforas demoníacas, a expansão lúgubre dos elementos, metonímias de um mundo em que mortos e vivos comungam idêntica respiração, a cor e o ambiente soturno e nocturno das novas paisagens, para além de cultismos já de moda (a reinvenção melancólica de um passado, as ruínas, ou a beleza mortal) integram a nova deificação retórica e, portanto, a novíssima capacidade de inventar autónoma e subjectivamente mundos específicos, normas e redes de efeito, através dos quais as tramas imaginárias se passam a desenrolar (inclua-se aqui a própria estratégia pioneira do policial, tão bem simbolizada, por exemplo, em Os Crimes Da Rue Morgue). José Gil, no seu livro, Monstros (1994), sintetiza, no capítulo III, a lenta travessia empreendida entre o terreno da teo-semiose pura e o da semiose aberta ao próprio conflito de interpretações. Fá-lo curiosamente coincidir com as seguintes condições: 1."Que o sentido da coisa captada numa imagem já não dependa das qualidades (de semelhança, de analogia, etc) intrínsecas da imagem; que se produza uma ruptura entre a imagem como puro signo e o seu sentido"; quer isto dizer que a imagem de uma monstruosidade enquanto coisa dada e significada, numa relação que faz depender todo o mistério de um ser superior e magistralmente informado e sabedor, passa, na interpretação gótica de Poe, a ser um ponto de partida à abertura do sentido e à invenção e mimetismo dos dramas e paixões humanas, no quadro de um cenário pragmático.2. "Que a partir daí se possa constituir um novo instrumento de conhecimento aplicável a todas as coisas, a todos os objectos, independentemente do seu sentido e da sua dignidade"; Quer isto dizer que, nos contos de Poe, é toda a vida e humanidade o que está em jogo e não uma imanência qualquer que as pressupusesse.3. "Que o ser do objecto seja inteiramente restituído através desse instrumento e que o seu conhecimento não remeta já para uma rede de relações entre as coisas, mas, antes de tudo, para uma relação entre signos que são dados dentro do espírito do sujeito - e que constituirão o descodificador das impressões transmitidas pela representação ao intelecto""; quer isto dizer que a literatura é uma coisa que se faz e que se fabrica, através de elementos autónomos e autotélicos que, por sua vez, restituem à linguagem e aos seus filtros sociais o poder de construção dos sentidos, em verdade desligados das coisas na medida em que estas permanecem coisa, apesar da própria linguagem e da sua esteticização mais radical (Locke foi o primeiro, há muito, a teorizá-lo). Por outras palavras, Poe inicia, no seu tempo, o que o segundo Wittgenstein clarificaria como sendo uma pura arena de novos "jogos da linguagem", onde novas regras e "palavras de ordem" passam a estar em jogo na recepção especificamente literária. Os fantasmas de Poe: desconstrução de mundos.Nas narrativas de Poe, está já em curso uma imaginação livre, moderna e poderosa. Há um sujeito que enuncia e há uma linguagem que aparece como diria Foucault. Esta marca de subjectividade torna-se visível por exemplo no conto Silêncio, diálogo curioso entre o Demónio e o narrador, junto ao túmulo deste, e onde se dá conta de um personagem que contempla a sós, e com inquietação física crescente, uma paisagem que, no seu exotismo líbio, se metamorfoseia de modo mágico.Este diálogo com o Demónio, no fundo funcionando como um actante que se situa no mesmo plano plástico e imaginário que os demais personagens, é frutuoso noutros contos, como por exemplo em O Gato preto onde aparece por diversas vezes (GP:14, 28, 34). Entre a vida e a morte, o trânsito descrito é sobretudo terráqueo, directo, assemelhando-se a sua mântica singular a uma espécie de desconstrução das clássicas separações entre o ici-bas e o mundo divino e inacessível. Nas narrativas de Poe, este sujeito desconstrutor aparece como que comandado por uma força (narrativa, da linguagem) que o ultrapassa, de algum modo como no futuro haveria de acontecer a alguns dos mestres do expressionismo cinematográfico alemão, como Fritz Lang ou Murnau. Esta fatalidade implícita, no seu tom de mistério transversal ao quotidiano, parece querer prenunciar uma futura negatividade do sujeito moderno, dentro da crítica que Baudelaire entreabrirá e que se prolongará a Nietzsche, a Ortega Y Gasset, etc. Em contos como Ligeia, Gato preto, O Rei peste, Berenice ou Eleanora, esta fatalidade acompanha toda a trama e é mesmo assinalada pela voz narrativa: "Já não era capaz de me reconhecer. A minha alma original pareceu fugir-me de repente do corpo" (GP:14), ou "Falarei apenas daquele aposento, para sempre amaldiçoado ao qual, num momento de loucura, conduzi como minha esposa - como sucessora da inolvidável Ligeia - a minha loura (...)" (LI:33).Ao contrário dos monstros e portenta que, no imaginário pré-moderno, são sempre habitantes de um alhures legitimado de modo metafísico, aqui, nas narrativas de Poe, a topografia das monstruosidades e fantasmas abre-se já à empatia moderna, porque toda ela fruto do puro jogo da linguagem literária. Tal ocorre, por um lado, através do olhar analítico e, portanto, susceptível de filtrar o ambiente das novas cidades, assim como as novas visibilidades do quotidiano; por outro lado, através de um olhar preso à idealidade romântica e gótica que lisonjeou ruínas medievais e espectros desolados de paisagens tumultuosas. Ambos os cenários atravessam e cruzam as narrativas de Poe. Esta simbiose de olhares, reposta na linguagem literária sob a forma de imaginário, parece mesmo chegar a anunciar, aqui e ali, uma espantosa intuição do tropo fotográfico, fenómeno, também ele, emergente e contemporâneo da obra e vida do autor.Vejamos, no primeiro caso, alguns exemplos: "A cidade estava em grande parte despovoada e, nos bairros horríveis vizinhos ao Tamisa, no meio de um desses becos negros, estreitos e imundos, onde o demónio da peste tinha fixado a sua residência, passeavam à vontade o espanto, o terror e a superstição." (RP: 11); "O ar estava frio e enevoado. As pedras arrancadas da calçada jaziam numa desordem medonha por entre a relva alta e vigorosa" (RP:12); ou ainda: "E toda aquela turba ia com uma actividade ruidosa e desordenada cujas discordâncias mortificavam o ouvido e produziam nos olhos uma sensação dolorosa" (HC:69).Vejamos, no segundo caso, outros tantos exemplos: "(...) restaurei parcialmente uma abadia (...) numa das regiões mais remotas e mais isoladas da bela Inglaterra. A lúgubre e solitária imponência do edifício, o aspecto quase selvagem da propriedade, as muitas melancólicas e queridas recordações de que não me conseguia libertar tinham muito em comum com o sentimento de extremo abandono (...)" (LI:32,33); "Magnífica de ouro e púrpura, desceu sobre nós (...) até que por fim os seus rebordos pousaram nos cumes das montanhas, o seu aspecto sombrio agora convertido em magnificência, encerrando-nos (...) numa prisão esplendorosamente, gloriosamente, mágica" (EL:52); ou ainda: "E sempre que o visitante mudava de posição, via-se cercado por uma infinda série de formas sinistras como as que povoavam as superstições normandas ou os sonos pesados de culpa dos monges. (...) (O) vento por detrás das tapeçarias acentuava o efeito fantasmagórico e proporcionava ao conjunto uma animação medonha e inquietante" (LI:36).Sinais dos tempos.Concluindo, dir-se-ia que Poe enceta uma recriação dos espaços ficcionais, quer anulando a dimensão vertical significativa cara ao mundo platónico das teo-semioses, quer pondo em cena uma lógica móvel e híbrida que dá conta da imaginação e da visibilidade do seu tempo de rupturas e de recomeços. Este caracter decisivo da espacialidade, a que se adicionará também a conquista de um espaço interior, psicológico, egotista e, portanto, aberto às profundas inquietações ou "perversidades" - como referiu Poe - do espírito humano, acentua e enfatiza a dimensão radicalmente outra em que prodígios, fantasmas e monstros surgem em cena. Não mais eles serão apanágio do desconhecido intocável; agora todos os fantasmas e monstros, a par dos que surgirão através da imaterialidade da "photogenie" fotográfica ou dos espectros de futuros percursores do cinema como Méliès ou a chamada escola de Brighton, tornam-se personagens e imagens de um mesmo jogo que passa a ser encenado na mesma, na mais familiar e íntima boca de cena da significação (idêntico jogo de desocultação atravessa as narrativas dos viajantes e exploradores europeus do limiar de oitocentos).Provavelmente é essa uma das novidades do próprio gótico: o visível e o invisível passam a andar de mãos dadas e inquietam pelo contraste, pelo drama arrepiante, pelo jocoso às vezes hilariante do trânsito entre morte e vida, entre ressurreição e palpitação errante, entre suspiro e tragédia pueril. O curioso é também verificar que nada nestes percursos naturalmente se alheia da contemporaneidade romântica, sobretudo no que diz respeito à descoberta do tempo histórico, da modernidade (foi em 1826 que a expressão surgiu com Heine pela primeira vez) e da própria ideia de "cultura", tal como Herder a postulou. Este inevitável não alheamento face às novas codificações acaba também por marcar os espíritos góticos mais iluminados, como o de Poe, no sentido de um pathos defensivo em relação ao progresso, de um pranto saudoso, de um personalismo visionário e da irremediável insatisfação que Schlegel baptizou, no feminino, por "sehnsucht ".Terminaria com uma citação da autoria de Salvato Teles de Menezes, estudioso de Poe: a subtileza da análise do "sofrimento humano" traduz-se no grande "tema da poética de Poe: i.e., Poe fez-se poeta dessa zona claro-escura da história da humanidade." Diria mais: recorrendo à noção deleuzeana de "rizoma", ou de sistema aberto, Poe não apenas navegaria entre esse "claro-escuro" vital como também lhe traçaria as "linhas de fuga" que os seus continuadores de renome acabaram por transformar em verdadeiro sinal dos tempos, nomeadamente o indefectível Baudelaire, Mallarmé e o próprio Pessoa que traduziu, mantendo até as rimas originais, o famoso poema do autor, O Corvo, com que, em leitura parcial, termino esta minha comunicação:

" (...) A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais. (...)".

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