Monday, October 25, 2004

Regresso a Tomar - 2 (11/11/1998)



Como que a rastejar pela calçada, imagino hoje ainda o nevoeiro ancestral, tão próprio da urbe de Gualdim Pais, a descer sobre o rio, desde a Rua Everard até ao edifício do Banco de Portugal. É no meio dessa melodia rara que finalmente reentro na Corredoura e dou comigo a olhar para as antigas montras da Havaneza, alheio à figuração dos cisnes que sobem pela fachada de azulejos da livraria.
Por cima, a mata está encoberta por esta massa de água suspensa, saturada, doando ao vale o sortilégio da sua humidade e a liquidez de todo o seu sigilo. Imaginar-me-ia a sorrir. Como se fechasse os olhos, depois de ter encarado mais uma vez a cenografia que cresce entre o edifício da Câmara Municipal e o Castelo dos Templários. Ciprestes, álamos, cedros e plátanos misteriosos recobrem esta vista desmedida com que a rua, em cima, se esfuma ou se transfigura. E assim continuarei a sorrir, porventura do nada, enquanto piso o calcário quase rosa do passeio. As saudades são este rumor sem rosto, este desígnio sem finalidade, este apego sem âncora.
Regresso a Tomar - 1 (12/11/1998)



Volto a subir a ladeira que, por perdição, se apoia no octógono perfeito da capela de S. Gregório. Após a curva, entrego-me a mais uns cinquenta passos até que, à esquerda, lá acabo por dar com a casa. Tomar é uma cidade quase silenciosa, vale de grandes enigmas. Terá o seu nome origem no sabor da água da tâmara, ou tamarmá, como se diz em Árabe. Só Aladino o confessaria ao mais incauto dos Templários, diga-se. Mas a ladeira que conduz a Leiria, confessemo-lo, é um local para o mais prosaico dos hábitos, embora daí se desvende o castelo e, às vezes, seja possível decifrar o fio dos grandes nevoeiros da cidade. Foi nessa Rua de Leiria, mesmo por baixo da casa do Engenheiro Alfredo Maia Pereira e da Senhora Dona Cristina, sua mulher, que morei em Tomar, entre o Outono de 1969 e os inícios de 1972.
Para voltar a descer ao Mouchão, e enquanto regresso pela ladeira de sempre, não deixo escapar a casa amarelada que parece querer confessar a tristeza dos seus próprios olhos. Tê-lo-ei muitas vezes pensado, já que, por cima de cada janela, os vidros abaulados dão a impressão de um olhar cheio da mais antiga melancolia. No quintal, entre sebes selvagens, a vinha continua a escalar com alguma dificuldade através de um mastro de electricidade onde o vento ressoará ainda em noites de temporal.
O silêncio continua a ser algo temerário, como se se diluísse no passado e apenas nele, condensando-se, sob a forma de estigma, na verdura líquida da Várzea Pequena. Depois de breves revisitações, eis, mais abaixo, o retábulo em jeito de díptico do Estado Novo que é o edifício dos Correios. Em frente, imune à objectiva e ao olhar, a imensa nora não interrompe, nem por um segundo, o seu movimento circular. Como se tivesse sido, desde sempre, a imagem de um tempo sem apeadeiros, ou sem portos de abrigo.
O rio, hoje, neste dia imaginário e duradouro, vai espesso, galgando a inapercebida represa, rápido como um jacto de águas verde escuras. No outro lado da ilha, as linhas de queda de água do açude desenham no ar o rumor citadino mais habitual e profundo. Para além da margem, na direcção do hotel, o coreto surge repentinamente pela frente, isolado, no meio desta terra vermelha, argilosa, desenhada entre freixos, cúpulas remotas e o inesperado corpo de uma palmeira.
Há uma parte de mim que é de Tomar. Revê-la é espreitar o enigma sem que o próprio se desvele. É isso, ao fim e ao cabo, a saudade.

Friday, October 22, 2004

Amar (12/10/1985)



Dizem que existe uma idade em que amar e olhar o mar serão coisas parecidas. Feitas em silêncio. Como se os planos de Paul Den Hollander adivinhassem já o perfil de quem assim vier a amar e a olhar: varandas abertas até ao horizonte das dunas e, no limite, aquelas vidraças que protegem o areal do vento e que dão a sensação de um espaço rotundamente vazio. Será o “aberto” de que falou Rilke. Será o repetir do simples movimento das ondas compactas, orgânicas, atravessadas a espaços pelos tons húmidos de El Greco a aproveitarem a luminosidade cega dos anjos. Dizem que esse será o tempo das consoantes líquidas. A ver vamos.
Certeiro (30/7/1986)

A distracção é um móbil literário fundamental.
Romance (12/1995)

Escrever um romance é descobrir o porto de abrigo de onde podem partir, não apenas navios em chamas, mas também figurações e celebrações do espírito até então latentes, adormecidas, por enformar. Escrever um romance é descobrir o porto de abrigo de ondem partem sobretudo fantasmas (para Isidoro de Sevilha, fantasma é toda a imagem que formamos a partir de uma imagem desconhecida, “apariencias de un cuerpo liberadas de la sensación corpórea”) . Escrever um romance é delinear a surpresa que se desenhou há muito, no segredo mais íntimo do pasmo daquele(s) que se descobre(m) a criar. Escrever um romance é enunciar, por palavras, a sede informe que transforma qualquer mundo numa suposição, ou numa possibilidade de aventuras a desenrolar, porventura, num tempo imaginário e ávido por ser preenchido. Escrever um romance é contradizer o lugar comum do olhar que objectiva momentaneamente os mundos que nos são dados; ao invés, escrever um romance é augurar os ínvios itinerários por onde se terão esfumado os factos que não chegaram, num dado momento, a ser. Escrever um romance é construir realidade, reuni-la ou transmutá-la, apesar dos contornos formais e dos limites que (nos) são postos ao ordenar ou desmontar as suas mais variadas peças. Escrever um romance é perder o lume do abismo e acender a sombra mais imperceptível da memória.

Thursday, October 21, 2004

A vista em viagem (1/4/1986)


À minha frente toda a baía de Dahab. A oriente, com alguma névoa pelo meio, a silhueta da Arábia Saudita. Próxima e poderosa pela dimensão dos seus rochedos multicolores, encarniçados, escurecidos. A ocidente, as montanhas do Sinai que atravessei ainda ontem. Os beduínos não escondem uma simpatia deslumbrante. Percebo agora melhor o Gauguin. Bem podia estar aqui comigo. Falaríamos das moscas que pousam por todo o lado.
O traçado (31/3/1990)

Tarde de sol. O quase crepúsculo nas árvores. Senhas da lua ainda nascente e luminosa. Relembro a textura dos granitos adormecidos ao sol. Um corpo a descer antigas ladeiras, mergulhando na imagem a flor perfeita - a rosa. Hei-de regressar em breve à minha terra das oliveiras.
Descobertas (16/8/1984)

De repente ouvia-se em toda a casa a voz de Laurie Anderson. Do quintal à Palmstraat. Foi então que verifiquei que a escrita de ontem já é parte de um prólogo mais abundante e longo para o que quero escrever acerca das actuais e novas mitologias.
Breve prenúncio (22/1/1986)

E parece ter começado a bela ameaça adormecida da Primavera. Eu e a trepadeira do meu quintal sabemos dos nomes que existem entre nós.
Fugaz (19/7/1985)

Entrei no autocarro e sei que não olhei para ti, mas antes para a cor dos teus olhos. Essa coisa salgada e azul onde me detive longamente. Quando cheguei à Estação Central, bendita entre tantas mulheres, vi-te sair e tive saudades do que estaria para vir. Até hoje.
Idas e voltas (29/06/1984)

É na hora da partida que o espírito sedentário mais é adulado e afagado. E de repente a insatisfação torna-se em algo que é anterior à tragédia à moda de Tennessee Williams.
Arts (24-08-1983)

A minha ligação com a arte é, para além de uma questão de sobrevivência, a minha real e derradeira cisterna.

Tuesday, October 19, 2004

Retomando caminhos

Acabei de criar este novo blogue, depois de alguma reflexão. Acho que vai valer a pena. Funcionará como uma camada subcutânea do Miniscente. Baptizo-o solenemente com o nome "Minitempo" (talvez por trilhar e augurar os doces tempos da evocação proustiana) e passará a acolher textos meus das últimas duas décadas. No fundo, coisas dispersas e dispersamente aprumadas. Nem apenas literárias, políticas ou lúdicas. De tudo um pouco como se verá. Pretende-se fazer raiar a luz que já foi a luz de um indefinido presente. Começaremos em breve. Por agora, apenas a apresentação. E, já agora, obrigado pela vossa visita.