Regresso a Tomar - 1 (12/11/1998)
Volto a subir a ladeira que, por perdição, se apoia no octógono perfeito da capela de S. Gregório. Após a curva, entrego-me a mais uns cinquenta passos até que, à esquerda, lá acabo por dar com a casa. Tomar é uma cidade quase silenciosa, vale de grandes enigmas. Terá o seu nome origem no sabor da água da tâmara, ou tamarmá, como se diz em Árabe. Só Aladino o confessaria ao mais incauto dos Templários, diga-se. Mas a ladeira que conduz a Leiria, confessemo-lo, é um local para o mais prosaico dos hábitos, embora daí se desvende o castelo e, às vezes, seja possível decifrar o fio dos grandes nevoeiros da cidade. Foi nessa Rua de Leiria, mesmo por baixo da casa do Engenheiro Alfredo Maia Pereira e da Senhora Dona Cristina, sua mulher, que morei em Tomar, entre o Outono de 1969 e os inícios de 1972.
Para voltar a descer ao Mouchão, e enquanto regresso pela ladeira de sempre, não deixo escapar a casa amarelada que parece querer confessar a tristeza dos seus próprios olhos. Tê-lo-ei muitas vezes pensado, já que, por cima de cada janela, os vidros abaulados dão a impressão de um olhar cheio da mais antiga melancolia. No quintal, entre sebes selvagens, a vinha continua a escalar com alguma dificuldade através de um mastro de electricidade onde o vento ressoará ainda em noites de temporal.
O silêncio continua a ser algo temerário, como se se diluísse no passado e apenas nele, condensando-se, sob a forma de estigma, na verdura líquida da Várzea Pequena. Depois de breves revisitações, eis, mais abaixo, o retábulo em jeito de díptico do Estado Novo que é o edifício dos Correios. Em frente, imune à objectiva e ao olhar, a imensa nora não interrompe, nem por um segundo, o seu movimento circular. Como se tivesse sido, desde sempre, a imagem de um tempo sem apeadeiros, ou sem portos de abrigo.
O rio, hoje, neste dia imaginário e duradouro, vai espesso, galgando a inapercebida represa, rápido como um jacto de águas verde escuras. No outro lado da ilha, as linhas de queda de água do açude desenham no ar o rumor citadino mais habitual e profundo. Para além da margem, na direcção do hotel, o coreto surge repentinamente pela frente, isolado, no meio desta terra vermelha, argilosa, desenhada entre freixos, cúpulas remotas e o inesperado corpo de uma palmeira.
Há uma parte de mim que é de Tomar. Revê-la é espreitar o enigma sem que o próprio se desvele. É isso, ao fim e ao cabo, a saudade.