Nefertiti (2)
Continua aqui a publicação das árias da ópera Nefertiti de José Júlio Lopes, de que fui autor do libretto. Hoje publico a quarta, a quinta e a sexta árias. Nefertiti esteve em cena no Teatro da Trindade, em Fevereiro de 2000, e o texto foi por mim escrito em Março de 1999.
4.1DIÁLOGO (durante o cortejo do casamento / analepse)
NEFERTITI
Que âmbar enfeitiçou o inebriado dia do nosso amor ?
Por que nos atraiu o sol como cometas do mesmo ar ?
AKHENATON
Ó minha raínha da flor de lótus,
Porque é do sangue do húmus que nasce a lúcia-lima !
porque é nos teus olhos que a nova cidade se revelou !
NEFERTITI
Que ouro trouxe até nós estas duas serpentes sagradas ?
Por qual barco atraiu o fundo do rio esta quilha do desejo ?
AKHENATON
Ó minha raínha dos ares de ibis,
Porque é nos teus seios que a corrente alimenta as raízes !
porque é só da tua fonte que o círculo do sol se anunciou !
NEFERTITI
Que delírio me fere o peito como se fossem hastes de Ísis ?
Por que lua cheia sou possuída e por teu louvor apaixonada ?
AKHENATON
Ó minha doce raínha visionária,
porque o eclipse do mundo em ti se finou na aurora anunciada
porque enlaçaste o rio luminoso entre Tebas e Menfis sagrada
NEFERTITI
Que fio de seda me abraça neste destino de júbilo e de mirra ?
Por que sou bendita entre as mulheres e a Nefertiti escolhida ?
AKHENATON
Ó raínha do princípio do mundo,
porque os magos correram dunas seguindo os nossos cometas !
porque para nós uma cidade só de éter criaremos em Amarna !
NEFERTITI
Que presságios são estes que me fazem ver os teus olhos roxos ?
Por que serei eu a eleita neste casamento entre os céus e a terra ?
AKHENATON
Ó raínha do paraíso anunciado,
porque é dentro de ti que vai nascer o fortúnio do novo tempo !
porque és a oferenda dos braços de Ré e a portadora da chave !
NEFERTITI
Que chave é essa, meu noivo amado e concebido por Atom ?
AKHENATON
É a chave da terra ideal onde os jardins são a balança do cosmos !
NEFERTITI
Que sigiloso escaravelho em fogo nos dará a forma dessa terra ?
AKHENATON
É entre dois leões que se abrirá em luz o véu do grande horizonte !
4.2 DIÁLOGO (quando ficam sós, após o cortejo; cena 03))
NEFERTITI
Por que sonhei eu que eras um pássaro de barro, Akhenaton ?
AKHENATON
Talvez o voo fosse a virtude e de barro fosse feito o corpo
Que pronuncias por trás desses olhos alucinados, Nefertiti ?
NEFERTITI (em êxtase súbito)
1
Vi-te moldado pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras de Samuel na boca de David
vi reinos divididos em dois
após Salomão
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio no Líbano e na Pérsia
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton
e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão
2
Vi-te moldado homem pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras da Sibila na boca de Circe
vi reinos divididos em dois
após Ulisses
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio na Núbia e no Delta
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton
e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão
AKHENATON
O que dizes, Nefertiti, desse sonho antigo agora acordado ?
NEFERTITI
Não sei, meu amado, não sei.
Nada sei a não ser o amor
que gera a obra de ouro, Akhenaton !
AKHENATON
Foi em jovem que ouviste tais signos, minha raínha ?
NEFERTITI
Foi sim, Akhenaton. Ouvi que o mundo desaguava em nós
vi a foz que reentrava entre os nossos olhos predestinados
vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !
AKHENATON
Repete-o, minha raínha de ouros,
repete-o alto para que no Olimpo
te ouça a tua rival águia de Atena !
NEFERTITI
Vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !
AKHENATON
Deixa-me concluir esta secreta visão,
deixa-me concluir o teu velho oráculo !
NEFERTITI
Sim, meu amado, sim
pronuncia-o bem alto
e liberta o verbo ao rio
que Cristo já te escuta
sobre as águas agitadas
por onde a lava desliza
AKHENATON
Sigamos até à magnífica cidade do mundo !
Sigamos pelos arcos da cidade do cosmos !
Sigamos até à cidade da perfeita aparição !
Sigamos pela nova aura de Tell-el-Amarna !
NEFERTITI
Sigamos, sim, meu amado. Sigamos !
5 ESCRIBA (CENA 04)
ESCRIBA
Reconheces-me, raínha do universo e da beleza ?
NEFERTITI
Escriba, eu não sou como a prudente Penélope ou como a virtuosa Madalena que não reconhecem o seu Ulisses ou o seu Romeiro ! Sei bem quem és, ó escriba do primeiro scriptorium de Tell-el-Amarna !
ESCRIBA
Em que pensas, raínha do universo e da beleza ?
NEFERTITI
Penso na nossa cidade de Amarna, no nosso projecto ideal;
penso na paixão do novo mundo, na nossa perfeita criação !
E tu, escriba, o que viste nesta magnífica cidade do sol ?
ESCRIBA
Eu vi Campanela sorrindo na Calábria;
Eu vi mil coisas de que vos digo dez,
minha raínha do universo e da beleza :
1
Eu vi o monstro de Ravenna que anunciava es trois estatz du monde e que tinha pernas com escamas, um pé de ave gigante e um corno na cabeça;
2
Eu vi a moura de Ubeda gritar que a Andalusia era uma terra que dormia em cima de quatro das portas do paraíso;
3
Eu vi os lábios do senhor Leroux pronunciar socialismo e acrescentar que a matéria será temperada como se fosse preciosa escrava;
4
Eu vi pela boca de Tomás os utopianos converterem os cereais em pão e beberem água fervida com mel e alçacuz;
5
Eu vi o eminente Boaistuau dizer que as bestas de forma bizarra são também filhos de Eva e irão ressuscitar na cidade do paraíso;
CORO
Sob o aro excelente da sua luz
enviou o Sol
o raro eflúvio da paixão
e com Nefertiti fundou
a cidade perfumada de Akhenaton
ESCRIBA (continuando imperturbável)
6
Eu vi o senhor Proudhon elevar a voz e dizer que o logos será manisfesto e que os trabalhadores serão mais belos e livres do que o foram os Gregos;
7
Eu vi nas letras de Cristóvão Colombo a fé no paraíso que haveria de elevar-se num cume como se fora doce mamilo sobre pêra;
8
Eu vi nos mapas de Andrea Bianco um imenso rio que separava o país de Gog e Magog do nosso paraíso terrestre;
9
Eu vi o jovem Marx sorrir e dizer que a livre associação de cada um é condição da livre realização de todos;
10
Eu vi as rugas de Preste João diante do seu mar arenoso sem água, diante da areia em movimento que se enfuna em vagas como o mar;
CORO
Sob o anel redondo da sua luz
enviou o Sol
a força nua da perdição
e com Nefertiti fundou
a utópica cidade de Akhenaton
NEFERTITI
Escriba, como renuncias a ver a harmonia da nossa cidade !
Vê bem que...
Na nossa cidade não há escamas, não há sono, nem há escravos;
Na nossa cidade não há alçacuz, nem bestas com dotes bizarros;
Na nossa cidade não há cumes, não há Gog e Magog, nem logos;
Na nossa cidade, de barba não há jovens, nem as vagas são de pó !
ESCRIBA
De pó são os mortais, minha raínha do universo e da beleza !
NEFERTITI
Muitos hão-de morrer, mas o ideal persiste !
Há que saber dar a vida pelo voo do Fausto,
que, para tal desígnio, o anjo me anunciou !
ESCRIBA
E quem compõe os dias de hoje,
pois não será o futuro uma ilusão ?
Que fazer a Bianco, a Marx, a S.Francisco,
a Leroux e à Moura sonhadora de Ubeda ?
Que direi, a todos eles,
depois de vos escutar ?
NEFERTITI
Dir-lhe-eis sins e que persistam sempre !
Que lutem, e que divulguem a boa nova !
Dir-lhe-eis sins que sou Rosa Luxemburgo em chamas !
Dir-lhe-eis que sou Circe imune às ameaças de Atenas !
Que sou... maior que o universo e que a própria beleza !
Sou eu mesma o ideal !
ESCRIBA (antes de sair)
Eu vi tanta coisa, raínha do universo e da beleza, que...
NEFERTITI
O quê ?
ESCRIBA
Que... pensaria três vezes... em tudo isso
CORO
Sob a roda insaciada da sua luz
enviou o Sol
as sete setas do coração
e com Nefertiti iluminou
a esbelta cidade de Akhenaton
6.DIÁLOGO COM TYI
NEFERTITI
Olá, menina do cogito que não acredita em milagres...
TYI
Devias pelo menos ouvir o escriba, já que poucos te ouvem !
NEFERTITI
Que dizes, ó deusa dos artefactos e da rigorosa anatomia ?
TYI
Digo-te que ciência divina não há.
NEFERTITI
Minha menina herege,
não vês por esta janela
o que eu estou a ver ?
TYI
Não sou cega, raínha dos exilados de Tebas.
NEFERTITI
Como te atreves a chamar-me exilada ?
TYI
É o que se diz nesta cidade quase fantasma !
NEFERTITI
Não vês ali ao longe
a barca entre ventos,
bem perto da margem
de Cafarnaum ?
Não vês Cristo de pé,
sobre o lago a andar
doando mil espantos
aos camaradas ?
Não vês que o vento
parou e Pedro andou
até Jesus marinheiro
do futuro ideal ?
TYI
Apenas vejo chuva e vento
sobre esse teu grande lago !
NEFERTITI
E eu digo que só
vês as equações
dos teus modelos
que são reinvenção
da alma esquecida
TYI
Não é alma... é só a razão.
É essa a divina proporção.
NEFERTITI
Achas que deveria desistir deste projecto utópico ?
TYI
Por que o perguntas, já duvidas da tua própia fé ?
NEFERTITI
Quem encarna o Sol não escuta todos os vaticínios !
TYI
Deverias ouvir a pura razão,
deverias temer os sacerdotes !
NEFERTITI
Achas mesmo, deusa dos artefactos e da rigorosa anatomia ?
TYI
Acho que irás ainda perder o futuro, se não te escutares.
Ou seja, minha raínha da beleza, se não escutares a razão.
CORO
Sob o círculo divino da sua luz
implorou o Sol
ao arrojo perturbado da razão
e com Nefertiti fundou
a cidade inaudita de Akhenaton
Continua aqui a publicação das árias da ópera Nefertiti de José Júlio Lopes, de que fui autor do libretto. Hoje publico a quarta, a quinta e a sexta árias. Nefertiti esteve em cena no Teatro da Trindade, em Fevereiro de 2000, e o texto foi por mim escrito em Março de 1999.
4.1DIÁLOGO (durante o cortejo do casamento / analepse)
NEFERTITI
Que âmbar enfeitiçou o inebriado dia do nosso amor ?
Por que nos atraiu o sol como cometas do mesmo ar ?
AKHENATON
Ó minha raínha da flor de lótus,
Porque é do sangue do húmus que nasce a lúcia-lima !
porque é nos teus olhos que a nova cidade se revelou !
NEFERTITI
Que ouro trouxe até nós estas duas serpentes sagradas ?
Por qual barco atraiu o fundo do rio esta quilha do desejo ?
AKHENATON
Ó minha raínha dos ares de ibis,
Porque é nos teus seios que a corrente alimenta as raízes !
porque é só da tua fonte que o círculo do sol se anunciou !
NEFERTITI
Que delírio me fere o peito como se fossem hastes de Ísis ?
Por que lua cheia sou possuída e por teu louvor apaixonada ?
AKHENATON
Ó minha doce raínha visionária,
porque o eclipse do mundo em ti se finou na aurora anunciada
porque enlaçaste o rio luminoso entre Tebas e Menfis sagrada
NEFERTITI
Que fio de seda me abraça neste destino de júbilo e de mirra ?
Por que sou bendita entre as mulheres e a Nefertiti escolhida ?
AKHENATON
Ó raínha do princípio do mundo,
porque os magos correram dunas seguindo os nossos cometas !
porque para nós uma cidade só de éter criaremos em Amarna !
NEFERTITI
Que presságios são estes que me fazem ver os teus olhos roxos ?
Por que serei eu a eleita neste casamento entre os céus e a terra ?
AKHENATON
Ó raínha do paraíso anunciado,
porque é dentro de ti que vai nascer o fortúnio do novo tempo !
porque és a oferenda dos braços de Ré e a portadora da chave !
NEFERTITI
Que chave é essa, meu noivo amado e concebido por Atom ?
AKHENATON
É a chave da terra ideal onde os jardins são a balança do cosmos !
NEFERTITI
Que sigiloso escaravelho em fogo nos dará a forma dessa terra ?
AKHENATON
É entre dois leões que se abrirá em luz o véu do grande horizonte !
4.2 DIÁLOGO (quando ficam sós, após o cortejo; cena 03))
NEFERTITI
Por que sonhei eu que eras um pássaro de barro, Akhenaton ?
AKHENATON
Talvez o voo fosse a virtude e de barro fosse feito o corpo
Que pronuncias por trás desses olhos alucinados, Nefertiti ?
NEFERTITI (em êxtase súbito)
1
Vi-te moldado pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras de Samuel na boca de David
vi reinos divididos em dois
após Salomão
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio no Líbano e na Pérsia
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton
e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão
2
Vi-te moldado homem pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras da Sibila na boca de Circe
vi reinos divididos em dois
após Ulisses
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio na Núbia e no Delta
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton
e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão
AKHENATON
O que dizes, Nefertiti, desse sonho antigo agora acordado ?
NEFERTITI
Não sei, meu amado, não sei.
Nada sei a não ser o amor
que gera a obra de ouro, Akhenaton !
AKHENATON
Foi em jovem que ouviste tais signos, minha raínha ?
NEFERTITI
Foi sim, Akhenaton. Ouvi que o mundo desaguava em nós
vi a foz que reentrava entre os nossos olhos predestinados
vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !
AKHENATON
Repete-o, minha raínha de ouros,
repete-o alto para que no Olimpo
te ouça a tua rival águia de Atena !
NEFERTITI
Vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !
AKHENATON
Deixa-me concluir esta secreta visão,
deixa-me concluir o teu velho oráculo !
NEFERTITI
Sim, meu amado, sim
pronuncia-o bem alto
e liberta o verbo ao rio
que Cristo já te escuta
sobre as águas agitadas
por onde a lava desliza
AKHENATON
Sigamos até à magnífica cidade do mundo !
Sigamos pelos arcos da cidade do cosmos !
Sigamos até à cidade da perfeita aparição !
Sigamos pela nova aura de Tell-el-Amarna !
NEFERTITI
Sigamos, sim, meu amado. Sigamos !
5 ESCRIBA (CENA 04)
ESCRIBA
Reconheces-me, raínha do universo e da beleza ?
NEFERTITI
Escriba, eu não sou como a prudente Penélope ou como a virtuosa Madalena que não reconhecem o seu Ulisses ou o seu Romeiro ! Sei bem quem és, ó escriba do primeiro scriptorium de Tell-el-Amarna !
ESCRIBA
Em que pensas, raínha do universo e da beleza ?
NEFERTITI
Penso na nossa cidade de Amarna, no nosso projecto ideal;
penso na paixão do novo mundo, na nossa perfeita criação !
E tu, escriba, o que viste nesta magnífica cidade do sol ?
ESCRIBA
Eu vi Campanela sorrindo na Calábria;
Eu vi mil coisas de que vos digo dez,
minha raínha do universo e da beleza :
1
Eu vi o monstro de Ravenna que anunciava es trois estatz du monde e que tinha pernas com escamas, um pé de ave gigante e um corno na cabeça;
2
Eu vi a moura de Ubeda gritar que a Andalusia era uma terra que dormia em cima de quatro das portas do paraíso;
3
Eu vi os lábios do senhor Leroux pronunciar socialismo e acrescentar que a matéria será temperada como se fosse preciosa escrava;
4
Eu vi pela boca de Tomás os utopianos converterem os cereais em pão e beberem água fervida com mel e alçacuz;
5
Eu vi o eminente Boaistuau dizer que as bestas de forma bizarra são também filhos de Eva e irão ressuscitar na cidade do paraíso;
CORO
Sob o aro excelente da sua luz
enviou o Sol
o raro eflúvio da paixão
e com Nefertiti fundou
a cidade perfumada de Akhenaton
ESCRIBA (continuando imperturbável)
6
Eu vi o senhor Proudhon elevar a voz e dizer que o logos será manisfesto e que os trabalhadores serão mais belos e livres do que o foram os Gregos;
7
Eu vi nas letras de Cristóvão Colombo a fé no paraíso que haveria de elevar-se num cume como se fora doce mamilo sobre pêra;
8
Eu vi nos mapas de Andrea Bianco um imenso rio que separava o país de Gog e Magog do nosso paraíso terrestre;
9
Eu vi o jovem Marx sorrir e dizer que a livre associação de cada um é condição da livre realização de todos;
10
Eu vi as rugas de Preste João diante do seu mar arenoso sem água, diante da areia em movimento que se enfuna em vagas como o mar;
CORO
Sob o anel redondo da sua luz
enviou o Sol
a força nua da perdição
e com Nefertiti fundou
a utópica cidade de Akhenaton
NEFERTITI
Escriba, como renuncias a ver a harmonia da nossa cidade !
Vê bem que...
Na nossa cidade não há escamas, não há sono, nem há escravos;
Na nossa cidade não há alçacuz, nem bestas com dotes bizarros;
Na nossa cidade não há cumes, não há Gog e Magog, nem logos;
Na nossa cidade, de barba não há jovens, nem as vagas são de pó !
ESCRIBA
De pó são os mortais, minha raínha do universo e da beleza !
NEFERTITI
Muitos hão-de morrer, mas o ideal persiste !
Há que saber dar a vida pelo voo do Fausto,
que, para tal desígnio, o anjo me anunciou !
ESCRIBA
E quem compõe os dias de hoje,
pois não será o futuro uma ilusão ?
Que fazer a Bianco, a Marx, a S.Francisco,
a Leroux e à Moura sonhadora de Ubeda ?
Que direi, a todos eles,
depois de vos escutar ?
NEFERTITI
Dir-lhe-eis sins e que persistam sempre !
Que lutem, e que divulguem a boa nova !
Dir-lhe-eis sins que sou Rosa Luxemburgo em chamas !
Dir-lhe-eis que sou Circe imune às ameaças de Atenas !
Que sou... maior que o universo e que a própria beleza !
Sou eu mesma o ideal !
ESCRIBA (antes de sair)
Eu vi tanta coisa, raínha do universo e da beleza, que...
NEFERTITI
O quê ?
ESCRIBA
Que... pensaria três vezes... em tudo isso
CORO
Sob a roda insaciada da sua luz
enviou o Sol
as sete setas do coração
e com Nefertiti iluminou
a esbelta cidade de Akhenaton
6.DIÁLOGO COM TYI
NEFERTITI
Olá, menina do cogito que não acredita em milagres...
TYI
Devias pelo menos ouvir o escriba, já que poucos te ouvem !
NEFERTITI
Que dizes, ó deusa dos artefactos e da rigorosa anatomia ?
TYI
Digo-te que ciência divina não há.
NEFERTITI
Minha menina herege,
não vês por esta janela
o que eu estou a ver ?
TYI
Não sou cega, raínha dos exilados de Tebas.
NEFERTITI
Como te atreves a chamar-me exilada ?
TYI
É o que se diz nesta cidade quase fantasma !
NEFERTITI
Não vês ali ao longe
a barca entre ventos,
bem perto da margem
de Cafarnaum ?
Não vês Cristo de pé,
sobre o lago a andar
doando mil espantos
aos camaradas ?
Não vês que o vento
parou e Pedro andou
até Jesus marinheiro
do futuro ideal ?
TYI
Apenas vejo chuva e vento
sobre esse teu grande lago !
NEFERTITI
E eu digo que só
vês as equações
dos teus modelos
que são reinvenção
da alma esquecida
TYI
Não é alma... é só a razão.
É essa a divina proporção.
NEFERTITI
Achas que deveria desistir deste projecto utópico ?
TYI
Por que o perguntas, já duvidas da tua própia fé ?
NEFERTITI
Quem encarna o Sol não escuta todos os vaticínios !
TYI
Deverias ouvir a pura razão,
deverias temer os sacerdotes !
NEFERTITI
Achas mesmo, deusa dos artefactos e da rigorosa anatomia ?
TYI
Acho que irás ainda perder o futuro, se não te escutares.
Ou seja, minha raínha da beleza, se não escutares a razão.
CORO
Sob o círculo divino da sua luz
implorou o Sol
ao arrojo perturbado da razão
e com Nefertiti fundou
a cidade inaudita de Akhenaton