Thursday, November 25, 2004

Nefertiti (2)

Continua aqui a publicação das árias da ópera Nefertiti de José Júlio Lopes, de que fui autor do libretto. Hoje publico a quarta, a quinta e a sexta árias. Nefertiti esteve em cena no Teatro da Trindade, em Fevereiro de 2000, e o texto foi por mim escrito em Março de 1999.

4.1DIÁLOGO (durante o cortejo do casamento / analepse)


NEFERTITI
Que âmbar enfeitiçou o inebriado dia do nosso amor ?
Por que nos atraiu o sol como cometas do mesmo ar ?

AKHENATON
Ó minha raínha da flor de lótus,
Porque é do sangue do húmus que nasce a lúcia-lima !
porque é nos teus olhos que a nova cidade se revelou !

NEFERTITI
Que ouro trouxe até nós estas duas serpentes sagradas ?
Por qual barco atraiu o fundo do rio esta quilha do desejo ?

AKHENATON
Ó minha raínha dos ares de ibis,
Porque é nos teus seios que a corrente alimenta as raízes !
porque é só da tua fonte que o círculo do sol se anunciou !

NEFERTITI
Que delírio me fere o peito como se fossem hastes de Ísis ?
Por que lua cheia sou possuída e por teu louvor apaixonada ?

AKHENATON
Ó minha doce raínha visionária,
porque o eclipse do mundo em ti se finou na aurora anunciada
porque enlaçaste o rio luminoso entre Tebas e Menfis sagrada

NEFERTITI
Que fio de seda me abraça neste destino de júbilo e de mirra ?
Por que sou bendita entre as mulheres e a Nefertiti escolhida ?

AKHENATON
Ó raínha do princípio do mundo,
porque os magos correram dunas seguindo os nossos cometas !
porque para nós uma cidade só de éter criaremos em Amarna !

NEFERTITI
Que presságios são estes que me fazem ver os teus olhos roxos ?
Por que serei eu a eleita neste casamento entre os céus e a terra ?

AKHENATON
Ó raínha do paraíso anunciado,
porque é dentro de ti que vai nascer o fortúnio do novo tempo !
porque és a oferenda dos braços de Ré e a portadora da chave !

NEFERTITI
Que chave é essa, meu noivo amado e concebido por Atom ?

AKHENATON
É a chave da terra ideal onde os jardins são a balança do cosmos !

NEFERTITI
Que sigiloso escaravelho em fogo nos dará a forma dessa terra ?

AKHENATON
É entre dois leões que se abrirá em luz o véu do grande horizonte !



4.2 DIÁLOGO (quando ficam sós, após o cortejo; cena 03))



NEFERTITI
Por que sonhei eu que eras um pássaro de barro, Akhenaton ?

AKHENATON
Talvez o voo fosse a virtude e de barro fosse feito o corpo
Que pronuncias por trás desses olhos alucinados, Nefertiti ?

NEFERTITI (em êxtase súbito)
1
Vi-te moldado pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras de Samuel na boca de David
vi reinos divididos em dois
após Salomão
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio no Líbano e na Pérsia
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton

e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão

2
Vi-te moldado homem pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras da Sibila na boca de Circe
vi reinos divididos em dois
após Ulisses
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio na Núbia e no Delta
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton

e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão

AKHENATON
O que dizes, Nefertiti, desse sonho antigo agora acordado ?

NEFERTITI
Não sei, meu amado, não sei.
Nada sei a não ser o amor
que gera a obra de ouro, Akhenaton !

AKHENATON
Foi em jovem que ouviste tais signos, minha raínha ?

NEFERTITI
Foi sim, Akhenaton. Ouvi que o mundo desaguava em nós
vi a foz que reentrava entre os nossos olhos predestinados
vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !

AKHENATON
Repete-o, minha raínha de ouros,
repete-o alto para que no Olimpo
te ouça a tua rival águia de Atena !

NEFERTITI
Vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !

AKHENATON
Deixa-me concluir esta secreta visão,
deixa-me concluir o teu velho oráculo !

NEFERTITI
Sim, meu amado, sim
pronuncia-o bem alto
e liberta o verbo ao rio

que Cristo já te escuta
sobre as águas agitadas
por onde a lava desliza

AKHENATON
Sigamos até à magnífica cidade do mundo !
Sigamos pelos arcos da cidade do cosmos !
Sigamos até à cidade da perfeita aparição !
Sigamos pela nova aura de Tell-el-Amarna !

NEFERTITI
Sigamos, sim, meu amado. Sigamos !



5 ESCRIBA (CENA 04)




ESCRIBA
Reconheces-me, raínha do universo e da beleza ?

NEFERTITI
Escriba, eu não sou como a prudente Penélope ou como a virtuosa Madalena que não reconhecem o seu Ulisses ou o seu Romeiro ! Sei bem quem és, ó escriba do primeiro scriptorium de Tell-el-Amarna !

ESCRIBA
Em que pensas, raínha do universo e da beleza ?

NEFERTITI
Penso na nossa cidade de Amarna, no nosso projecto ideal;
penso na paixão do novo mundo, na nossa perfeita criação !
E tu, escriba, o que viste nesta magnífica cidade do sol ?

ESCRIBA
Eu vi Campanela sorrindo na Calábria;
Eu vi mil coisas de que vos digo dez,
minha raínha do universo e da beleza :

1
Eu vi o monstro de Ravenna que anunciava es trois estatz du monde e que tinha pernas com escamas, um pé de ave gigante e um corno na cabeça;
2
Eu vi a moura de Ubeda gritar que a Andalusia era uma terra que dormia em cima de quatro das portas do paraíso;
3
Eu vi os lábios do senhor Leroux pronunciar socialismo e acrescentar que a matéria será temperada como se fosse preciosa escrava;
4
Eu vi pela boca de Tomás os utopianos converterem os cereais em pão e beberem água fervida com mel e alçacuz;
5
Eu vi o eminente Boaistuau dizer que as bestas de forma bizarra são também filhos de Eva e irão ressuscitar na cidade do paraíso;

CORO

Sob o aro excelente da sua luz
enviou o Sol
o raro eflúvio da paixão
e com Nefertiti fundou
a cidade perfumada de Akhenaton

ESCRIBA (continuando imperturbável)

6
Eu vi o senhor Proudhon elevar a voz e dizer que o logos será manisfesto e que os trabalhadores serão mais belos e livres do que o foram os Gregos;
7
Eu vi nas letras de Cristóvão Colombo a fé no paraíso que haveria de elevar-se num cume como se fora doce mamilo sobre pêra;
8
Eu vi nos mapas de Andrea Bianco um imenso rio que separava o país de Gog e Magog do nosso paraíso terrestre;
9
Eu vi o jovem Marx sorrir e dizer que a livre associação de cada um é condição da livre realização de todos;
10
Eu vi as rugas de Preste João diante do seu mar arenoso sem água, diante da areia em movimento que se enfuna em vagas como o mar;

CORO

Sob o anel redondo da sua luz
enviou o Sol
a força nua da perdição
e com Nefertiti fundou
a utópica cidade de Akhenaton

NEFERTITI
Escriba, como renuncias a ver a harmonia da nossa cidade !
Vê bem que...
Na nossa cidade não há escamas, não há sono, nem há escravos;
Na nossa cidade não há alçacuz, nem bestas com dotes bizarros;
Na nossa cidade não há cumes, não há Gog e Magog, nem logos;
Na nossa cidade, de barba não há jovens, nem as vagas são de pó !

ESCRIBA
De pó são os mortais, minha raínha do universo e da beleza !

NEFERTITI
Muitos hão-de morrer, mas o ideal persiste !
Há que saber dar a vida pelo voo do Fausto,
que, para tal desígnio, o anjo me anunciou !

ESCRIBA
E quem compõe os dias de hoje,
pois não será o futuro uma ilusão ?

Que fazer a Bianco, a Marx, a S.Francisco,
a Leroux e à Moura sonhadora de Ubeda ?

Que direi, a todos eles,
depois de vos escutar ?

NEFERTITI
Dir-lhe-eis sins e que persistam sempre !
Que lutem, e que divulguem a boa nova !

Dir-lhe-eis sins que sou Rosa Luxemburgo em chamas !
Dir-lhe-eis que sou Circe imune às ameaças de Atenas !
Que sou... maior que o universo e que a própria beleza !

Sou eu mesma o ideal !

ESCRIBA (antes de sair)
Eu vi tanta coisa, raínha do universo e da beleza, que...

NEFERTITI
O quê ?

ESCRIBA
Que... pensaria três vezes... em tudo isso

CORO

Sob a roda insaciada da sua luz
enviou o Sol
as sete setas do coração
e com Nefertiti iluminou
a esbelta cidade de Akhenaton



6.DIÁLOGO COM TYI



NEFERTITI
Olá, menina do cogito que não acredita em milagres...

TYI
Devias pelo menos ouvir o escriba, já que poucos te ouvem !

NEFERTITI
Que dizes, ó deusa dos artefactos e da rigorosa anatomia ?

TYI
Digo-te que ciência divina não há.

NEFERTITI
Minha menina herege,
não vês por esta janela
o que eu estou a ver ?

TYI
Não sou cega, raínha dos exilados de Tebas.

NEFERTITI
Como te atreves a chamar-me exilada ?

TYI
É o que se diz nesta cidade quase fantasma !

NEFERTITI
Não vês ali ao longe
a barca entre ventos,
bem perto da margem
de Cafarnaum ?

Não vês Cristo de pé,
sobre o lago a andar
doando mil espantos
aos camaradas ?

Não vês que o vento
parou e Pedro andou
até Jesus marinheiro
do futuro ideal ?

TYI
Apenas vejo chuva e vento
sobre esse teu grande lago !

NEFERTITI
E eu digo que só
vês as equações
dos teus modelos
que são reinvenção
da alma esquecida

TYI
Não é alma... é só a razão.
É essa a divina proporção.

NEFERTITI
Achas que deveria desistir deste projecto utópico ?

TYI
Por que o perguntas, já duvidas da tua própia fé ?

NEFERTITI
Quem encarna o Sol não escuta todos os vaticínios !

TYI
Deverias ouvir a pura razão,
deverias temer os sacerdotes !

NEFERTITI
Achas mesmo, deusa dos artefactos e da rigorosa anatomia ?

TYI
Acho que irás ainda perder o futuro, se não te escutares.
Ou seja, minha raínha da beleza, se não escutares a razão.

CORO
Sob o círculo divino da sua luz
implorou o Sol
ao arrojo perturbado da razão
e com Nefertiti fundou
a cidade inaudita de Akhenaton

Tuesday, November 23, 2004

As Primeiras quatro árias de Nefertiti
(Ópera de José Júlio Lopes de que fui autor do libretto. Esteve em cena no Trindade em Fevereiro de 2000 e o texto foi escrito em Março de 1999)

NARRADOR (cena 01)

1
É eterno aquilo que está fora do tempo
ou é eterno o que no tempo se dilata ?
É eterno aquilo que é próprio do tempo
ou é eterno o que do tempo se separa ?
Eis as perguntas sagradas desta trama.
Eis as perguntas da princesa da fama.

2
À primeira, diz suma Nefertiti que não;
à segunda, deixa sorrir um prodígio puro;
pela terceira, não nutre qualquer paixão;
à quarta, só se se prendesse num muro;
eis o que pensa a princeza da iniciação.
Eis o que a faz pensar em predestinação

3
Um dia, o destino fugiu ao grito do bardo;
no olhar de Nefertiti fez-se a grande fobia
e, nesse eco criado, a visão revelada surgiu.
Efémero, o mundo disparou o grande arco
e na flecha advinha já a voragem da utopia,
como presságio seu que viu Nefertiti no rio.

4
Por Akhenaton, de raro amor foi possuída;
pelo império, fez o eterno dilatar o tempo;
pela utopia, mandou gerar Tell-el-Amarna;
pela pureza, ordenou aos deuses a sua ira
e apenas o disco solar dirigiu o firmamento;
eis o que foi o Egipto durante quinze idades.

5
Sabe a raínha o que a colocará fora do tempo ?
Saberá segredos dos deuses que a não calam ?
Saberá Nefertiti o que é um sonho intemporal ?
E por que correrá o cisne branco ?Por lamento ?
Sabe Nefertiti que cisne e sonho não agoiram ?
Que espera a raínha que se funde com o ideal ?


Eis as muitas perguntas sagradas desta trama.
Eis as muitas respostas da doce princesa fama.


1.NEFERTITI (cena 02)

1
Ó cidade de Amarna !
Não devolvas as tuas sementes ao rio,
nem esqueças o linho branco e vivo
do meu corpo em chamas !

Que neste pátio de segredos
se erguiam as facas e os cedros
do teu prodígio, Akhenaton !

2
Ó cidade das tâmaras !
Não encolerizes os nautas da morte,
nem deixes escorrer estas lágrimas
que humedecem o deserto !

Que nos meus olhos pintados
se escreviam as noites e as romãs
do teu prodígio, Akhenaton !

3
Ó cidade dos palácios !
Não arranques ao abismo a flor do céu,
nem deixes voar sobre os teus jardins
esta sombra que me ofusca !

Que no meu rio florido e mudo
se cativavam os dardos e as lanças
do teu encanto, Akhenaton !

4
Ó terra do amor perdido !
Não esqueças a luz que sustenta a íris,
nem deixes o meu olhar esvair-se
no bálsamo da tua esperança !

Que nestas áleas de Amarna
se criaram os amantes e as abelhas
do teu encanto, Akhenaton !

5
Ó terra do rio obscuro !
Não mates as margens férteis da vida,
nem deixes que os frutos sequem
na ruína da minha desventura !

Que nestas casas de éter
se criaram os seios e as harpas
do teu prodígio, Akhenaton !

6
Ó terra do único Deus !
Não lamentes este meu perpétuo luto,
nem deixes que sobre Tebas caia
o relâmpago do astro perfeito !

Que no meu sigilo de amor
se criaram seis filhas e seis luas
do teu prodígio, Akhenaton !

7
Ó destino turvo e cego !
Não silencies o meu oráculo sagrado,
nem deixes ouvir a voz do ganso
entre as nuvens da noite !

Que no crispar desse rumor
se levantaram as iras e venenos
do teu desencanto, Akhenaton !


2.CORO


1
Sob o círculo divino da sua luz
enviou o Sol
o ímpeto distante do falcão
e connosco desceu
à cidade inaudita de Akhenaton

2
Sob o aro excelente da sua luz
enviou o Sol
o raro eflúvio da paixão
e connosco partilhou
a cidade perfumada de Akhenaton

3
Sob a roda insaciada da sua luz
enviou o Sol
as sete setas do coração
e connosco iluminou
a esbelta cidade de Akhenaton

4
Sob o anel redondo da sua luz
enviou o Sol
a força nua da perdição
e connosco fundou
a utópica cidade de Akhenaton


NEFERTITI (cena 3)


1
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me ao entrar nas águas
que se abrem atrás do crocodilo agitado;

Olha-me nos olhos
que se abrem em rugido no meu coração.

Olha-me Akhenaton,
eis-me destemida na nossa cidade do ouro !

2
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me ao entrar na imensa praça
que se abre como a folha nobre da palma;

Olha-me nos olhos
que se abrem como mandrágoras imortais.

Olha-me Akhenaton,
eis-me pronta à divina e nova lei de Amarna !

3
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me de braços no ar no limite do rio
que se levanta em duas partes para eu passar;

Olha-me na minha alma
depois de cruzar o leito iniciado de Amarna.

Olha-me Akhenaton,
eis-me face ao destino prodigioso da história !

4
Olha-me belo filho do sol,
encarnação de Aton !

Olha-me ao entrar nos teus olhos
que se abrem para além do cristal e do tempo;

Olha-me nos olhos
que se abrem em mim no bosque do firmamento.

Olha-me Akhenaton,
eis-me face a ti neste paraíso que é o nosso !


DIÁLOGO (cena 4)


NEFERTITI
Que âmbar enfeitiçou o inebriado dia do nosso amor ?
Por que nos atraiu o sol como cometas do mesmo ar ?

AKHENATON
Ó minha raínha da flor de lótus,
Porque é do sangue do húmus que nasce a lúcia-lima !
porque é nos teus olhos que a nova cidade se revelou !

NEFERTITI
Que ouro trouxe até nós estas duas serpentes sagradas ?
Por qual barco atraiu o fundo do rio esta quilha do desejo ?

AKHENATON
Ó minha raínha dos ares de ibis,
Porque é nos teus seios que a corrente alimenta as raízes !
porque é só da tua fonte que o círculo do sol se anunciou !

NEFERTITI
Que delírio me fere o peito como se fossem hastes de Ísis ?
Por que lua cheia sou possuída e por teu louvor apaixonada ?

AKHENATON
Ó minha doce raínha visionária,
porque o eclipse do mundo em ti se finou na aurora anunciada
porque enlaçaste o rio luminoso entre Tebas e Menfis sagrada

NEFERTITI
Que fio de seda me abraça neste destino de júbilo e de mirra ?
Por que sou bendita entre as mulheres e a Nefertiti escolhida ?

AKHENATON
Ó raínha do princípio do mundo,
porque os magos correram dunas seguindo os nossos cometas !
porque para nós uma cidade só de éter criaremos em Amarna !

NEFERTITI
Que presságios são estes que me fazem ver os teus olhos roxos ?
Por que serei eu a eleita neste casamento entre os céus e a terra ?

AKHENATON
Ó raínha do paraíso anunciado,
porque é dentro de ti que vai nascer o fortúnio do novo tempo !
porque és a oferenda dos braços de Ré e a portadora da chave !

NEFERTITI
Que chave é essa, meu noivo amado e concebido por Atom ?

AKHENATON
É a chave da terra ideal onde os jardins são a balança do cosmos !

NEFERTITI
Que sigiloso escaravelho em fogo nos dará a forma dessa terra ?

AKHENATON
É entre dois leões que se abrirá em luz o véu do grande horizonte !



4.2 DIÁLOGO (quando ficam sós, após o cortejo; cena 03))



NEFERTITI
Por que sonhei eu que eras um pássaro de barro, Akhenaton ?

AKHENATON
Talvez o voo fosse a virtude e de barro fosse feito o corpo
Que pronuncias por trás desses olhos alucinados, Nefertiti ?

NEFERTITI (em êxtase súbito)
1
Vi-te moldado pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras de Samuel na boca de David
vi reinos divididos em dois
após Salomão
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio no Líbano e na Pérsia
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton

e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão

2
Vi-te moldado homem pelo sol
e de asas sobre as montanhas falésias e colinas
vi gazelas pombos e patriarcas
vi faunos sábios
e nas flores da vinha vi amores perfeitos
vi palavras da Sibila na boca de Circe
vi reinos divididos em dois
após Ulisses
e ouvi panteras fontes e ventos
ouvi chacais em fuga
e nascentes de rio na Núbia e no Delta
vi oásis de mel e cânfora
senti o nardo o açafrão e a pele
os lábios de areia e a lua
nos olhos da gazela
sobre a qual pousavas em barro,
Akhenaton

e de pássaro te transformaste na flor de Damasco
do fragor dessa flor te transformaste em lírio
e do lírio vi-te nascer como homem
e como homem
o Sol te tomou pela mão

AKHENATON
O que dizes, Nefertiti, desse sonho antigo agora acordado ?

NEFERTITI
Não sei, meu amado, não sei.
Nada sei a não ser o amor
que gera a obra de ouro, Akhenaton !

AKHENATON
Foi em jovem que ouviste tais signos, minha raínha ?

NEFERTITI
Foi sim, Akhenaton. Ouvi que o mundo desaguava em nós
vi a foz que reentrava entre os nossos olhos predestinados
vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !

AKHENATON
Repete-o, minha raínha de ouros,
repete-o alto para que no Olimpo
te ouça a tua rival águia de Atena !

NEFERTITI
Vi que tomavas como tua esta carne e esta alma de Maria !

AKHENATON
Deixa-me concluir esta secreta visão,
deixa-me concluir o teu velho oráculo !

NEFERTITI
Sim, meu amado, sim
pronuncia-o bem alto
e liberta o verbo ao rio

que Cristo já te escuta
sobre as águas agitadas
por onde a lava desliza

AKHENATON
Sigamos até à magnífica cidade do mundo !
Sigamos pelos arcos da cidade do cosmos !
Sigamos até à cidade da perfeita aparição !
Sigamos pela nova aura de Tell-el-Amarna !

NEFERTITI
Sigamos, sim, meu amado. Sigamos !

Saturday, November 06, 2004

Uma literatura para além do compromisso ético (08/1997)

Nas narrativas mitológicas e nas narrativas literárias modernas, digamos pós-iluministas, as grandes gestas e as deslumbrantes caminhadas humanas eram motivadas, quando não profundamente codificadas, por histórias modelares, ou por leitmotivs ligados a grandes e nobres causas colectivas.Nas flutuações do tempo contemporâneo, a ficcionalidade literária tem-se tornado muito mais aberta, policentrada e permeável até a um certo despojamento e, portanto, quase naturalmente que se tem apeado desses portos de abrigo de origem extra-literária e de raiz fundamentalmente ética.Toshihizo Izutsu - que além de tradutor é também, curiosamente, um estudioso do Islão - referiu, no seu livro The Concept of Belief in Islamic Theology, a existência de uma “relação ética” entre Deus e o Homem que seria, afinal, a base de todas as religiões do Livro. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer que toda a literatura verdadeiramente heróica criada na era moderna das grandes ideologias (pós-1850 até, mais ao menos, à Segunda Grande Guerra Mundial) enveredou estruturalmente pelo modelar, pelo arquétipo, pelo grandes valores salvíficos do homem, de tal modo que o antigo Deus “ético” apareceria agora como que substituído e literariamente transposto pelo grande desígnio também “ético” que a humanidade teria, por si só, cientificamente inventado ou recriado. Nas literaturas actuais que aparecem despidas da tradição que fez a literatura ser a literatura tal como hoje ainda de certa forma a recordamos e entendemos, os sentidos de legitimação totalizante da própria espécie humana, assentes em fundamentos que se reflectem em “grandes narrativas”, ou em relatos exemplares, terão cada vez mais tendência a esvair-se.Ficará porventura talvez a grande história, ou o simples enredo paródico e intertextual, mas decerto sem aquela bengala essencialmente explicativa, anterior e matricial dos actos, dos gestos e das desmedidas causas humanas. Ficará a grande história ou o elementar enredo irónico, a sós, talvez algo depurado, mas decerto à procura das vozes e da poética desse ser que fala e que se expande na e através da literatura.Uma literatura marcadamente actual, e não saudosa das inflexíveis arquitecturas escatológicas de toda a natureza, não se poderá assumir apenas - no seu vinco mais profundo e “saramaguês” (a interessante expressão é de Eugénio Lisboa) - como uma legitimação, ou como uma pura consagração do déjà vécu, filtrado pelo unanimismo correcto das mais variadas integrações e explicabilidades sociais - sejam elas mitológicas, ideológicas, políticas ou relativas a causas e valores tidos como singularizadamente “éticos”.É possível que nos tenhamos já aproximado do tempo em que abertura e até a indefinição da codificação literária nos apareça como um enigma amigo e não tanto como uma imagem saturada, esquemática e poluída de outras codificações de origem não literária. Por outras palavras, é possível que uma nova ecologia literária venha a definir, a breve trecho, um novo modo de pensar, de ler e de escrever literatura. E talvez assim ainda continue a existir literatura neste mundo que já não é mais dotado dos instrumentos, das leis e das sociabilidades que viram justamente nascer e datar a literatura, enquanto prática estética codificada por uma poiesis analógica moderna.Uma nova literatura pode ainda vir a ser uma verdade ou um facto entre verdades e factos, neste mar, ou neste nosso globário de identidades flutuantes, de mil navegações e de disputas sempre acentradas, digitais e rizomáticas. Digo-o, repito, com algum moderado optimismo, apesar da vaga muito em voga do hipertexto, do zapping textual e do logomapping muito próprio do cibermundo, mas também das micromensagens fragmentárias.Milenarmente, Deus e o homem fecharam-se no ciclo ético da teodiceia, conspirando punições e inventando a natureza (boa e má) dos actos praticados. Secularmente, as ideologias e o homem fecharam-se no ciclo ético dos julgamentos finais no planeta terra (e já não no além), através de mil paraísos e miragens quasi científicos. Desse mesmo modo, também a literatura se fechou, desde as suas muitas origens, num pacto quase irrevogável entre esses variados ciclos éticos, profundos e marcantes, e a respiração à superfície do que deveria ser e é o essencial: o labor ficcional e o exercício da retórica (passe a metáfora maniqueísta da alma e corpo literários).Seguindo ainda o interessante raciocínio de Toshihizo Izutsu, poder-se-ia afirmar que toda a relação fundamentalmente “ética” - no sentido em que o autor utilizou o atributo - acabará por se esvair na medida em que o dogma (o Livro) também se esvair. Para a literatura, esse facto constituirá uma libertação como terá sido, noutras circunstâncias pragmáticas, a romântica, a simbolista, a da pós-Primeira Grande Guerra (Proust, James, Pessoa, Joyce, etc), ou mesmo a que gerou e viu gerar o nouveau roman. Quando cederem os pactos que ligam ainda muita da nossa literatura e da sua pesada hermenêutica - de modo vertical e rígido - ao hermetismo dos ciclos éticos, então a própria literatura deixará de se confundir com a anamorfose e a deformação da sua imagem mais comum e verosímil.
(God and Man in the Koran - Semantics of the Koranic Weltanschavung,The Keyo Institute of Culture and Linguistic Studies, Tokyo, 1964)

Tuesday, November 02, 2004

O tempo contado (17/12/1999)

Foi nos anos vinte do século VI, que o Papa João I pediu a Dionísio o Exíguo que estabelecesse um novo calendário, baseado no nascimento de Cristo. Após muitas consultas e leituras, Dionísio concluiu que Jesus deveria te nascido a 753 A.U.B (ad urbe condita - data contada a partir da presumível fundação de Roma, confirmada ou legitimada, já há séculos, pelo designado ‘código juliano’).
Nesse sentido, segundo as notações de Dionísio o Exíguo, Cristo teria nascido a 25 de Dezembro de 753 A.U.C., embora o primeiro ano da Cristandade só devesse ser contado a partir do primeiro de Janeiro do ano seguinte, isto é, de 754 A.U.B (momento da circuncisão de Jesús, após a sua primeira semana de vida). Acontece que, por não dispor do número e sobretudo do conceito de zero (criação indiana e depois islâmica dos séculos VIII para IX, segundo Stephen Gould), Dionísio não pôde baptizar o ano de 754 como ano 0, acabando antes por designá-lo, para a posteridade, como se fosse o verdadeiro ano 1.
Esse facto viria criar inusitados embaraços nas passagens festivas dos séculos, sobretudo quando, a partir dos anos oitenta do século XVI, com o plano reorganizador de Gregório XIII, a cronologia temporal cristã se ajustou em todo o Ocidente cristão (até aí os anos iniciavam-se, na Europa, nos meses mais diversos, sobretudo em Março, mas também em Janeiro e em Setembro). O mais curioso - e tal constitui um reconhecimento tardio por parte dos historiadores pós-românticos - é que Dionísio o Exíguo teve ainda outro engano mais pesado, apenas provado pelo facto de se saber historicamente que Herodes terá morrido a 750 A.U.B. (ou seja, no ano 4 a.C.). É conhecido - e as fontes histórico-evangélicas são, nesse ponto, óbvias - que Jesus e Herodes tiveram que coexistir, em vida, pelo menos durante uns dias, razão pela qual o ano 0 real deveria ter sido considerado quatro anos antes do apontado por Exíguo. Se somarmos a toda esta demanda aritmética que os anos bissextos, considerados já no código juliano de 46/45 a.C., nunca bastaram, para contar - e sobretudo para logicamente conter - o tempo real ‘que corre’ (em 1582, o desfasamento era já de doze dias o que conduziu a ‘reparações’ em Outubro desse mesmo ano, por iniciativa de Gregório XIII; hoje é-o de 24,96 segundos), concluiremos que o cálculo do nosso Anno Domini (a partir do nascimento de Cristo) é, no mínimo, mais do que problemático.
É por isso que o ano mil, certamente, nem começou, ao mesmo tempo, em todo o lado; nem terá sido, em muitos outros lados ainda, um ano do género “d.C.”, tal como o entendemos hoje. Mais: a própria designação da era a.C./d.C., talvez ainda fosse, na altura do ano mil, em vastas regiões europeias e não só, concorrente da primeira de todas as eras cristãs - a ‘era dos mártires’ -, contada a partir da data das perseguições de Diocleciano, dois séculos e meio antes de o próprio Dionísio ter posto mãos à sua generosa obra de contagem. Por tudo isto, enquanto a memória de todos nós não desenterrar novos factos desaparecidos ou nunca provados, o milénio do ano mil e o actual continuarão a ser tema nobre para novelas. E só. Até porque a história, já o soletrava Ricoeur, é uma ficção criada pela ordem da modernidade.