Uma Caixa de Música Sibilina
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UMA CAIXA DE MÚSICA SIBILINA
REVISITANDO A OBRA DE ALMEIDA FARIA
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(homenagem a Almeida Faria. Montemor-o-Novo. 22 de Junho de 2007)
REVISITANDO A OBRA DE ALMEIDA FARIA
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(homenagem a Almeida Faria. Montemor-o-Novo. 22 de Junho de 2007)
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1. O apelo oracular
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Há vinte anos, estava a escrever uma tese sobre a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria. O trabalho acabou por ser premiado pela APE, mas, curiosamente – uma curiosidade ainda hoje não racionalmente saciada – pouco ou nada fiz para que fosse publicada. Este absurdo tem bastante peso, diria um peso impostulável, na medida em que não sou um autor propriamente económico. Com efeito, em vinte e seis anos de vida literária e ensaística, tenho mais de trinta livros publicados. Mas este volume de 246 páginas sobre a obra de Almeida Faria, que guardo a sete chaves no meu escritório, manteve-se incólume, indiferente ao tempo e à erosão emocional e sobretudo distante de questionações apressadas. Há um enigma nesta decisão, ou melhor, neste espaço de sincera indecibilidade, onde convive o fascínio, um certo apego pela preservação e o apreço pela consistência do objecto estudado e longamente analisado. O certo é que a tentação de editar fez excepção neste meu perene encontro de vida com Almeida Faria. E é a ele que devo, em primeiro lugar, esta palavra confessional.
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Isto significa que o objecto de estudo desencadeou um forte efeito hipnótico sobre o desejo do então sujeito investigador. De facto, sempre houve uma voz que me segredou do meio da malha textual de Almeida Faria. Uma voz que me alertava sibilinamente. Era, digamos, um apelo que parecia reatar um conhecido fragmento (o nº 93) atribuído a Heraclito por Plutarco[1] e onde se podia ler: "O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais". Este elogio a Apolo que relevava a harmonia entre a inscrição e o Logos colocou a nu uma sabedoria que se baseava num tipo de interpretação reversível entre conhecido e desconhecido, visível e invisível entre o dito e o ‘não-dito’. Uma tal circularidade que associa o subterrâneo da alma à geometria mais apolínea e que sabe rescrever o mundo num único esteio, amalgamando o sonho e o real, a efabulação e a experiência, a plenitude e o fragmento, é um dado que sempre me pareceu evidente em toda a obra de Almeida Faria. Aparece em Rumor Branco, atravessa o edifício de Tetralogia Lusitana, inicia O Conquistador, inunda Os Passeios do Sonhador Solitário e o recente Vanitas e revela-se ainda como acaso persistente nas incursões teatrais do autor (Vozes da Paixão e A Reviravolta).
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2. Prenunciando expressões
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Quando hoje se estuda a expressão na rede, e eu tenho um ensaio no prelo sobre o tema, há um conjunto de atributos imediatos que a clarificam. Resumi-los-ia em seis pontos: um texto que se move e que vive de permanentes agenciamentos como se nunca conseguisse estar pronto; um texto feito de muitas entradas – de uma quase sobreposição de entradas e de camadas – naquilo que se designaria por excesso de actualidade; um texto que se gera a partir do seu ininterrupto contexto e que parece querer acabar com a velha separação entre um “de fora” e “um de dentro”; um texto sempre descentrado que recusa ser corpo com princípio meio e fim e que jamais se fechará sobre si próprio; um texto que transpira devido à coexistência de registos que, no seu seio, procedem das mais variadas origens; e um texto que comunica não apenas para dizer, mas também para se representar a si mesmo… como que adiando para sempre o seu aceno denotativo. Eu não quereria dizer que a obra de Almeida Faria é pioneira desta matriz expressiva que hoje pulula criativamente na rede. Mas não deixa de ser verdade que no laboratório do escritor sempre existiu uma arrumação algo prenunciadora. Senão vejamos: a textualidade na Tetralogia é constituída por uma sequência de ecos, uma multitude de entradas que inscrevem (independentemente do fazer-narrativo) o seu “Não”, o seu “Se” e o seu “Já”, não dando nunca ao leitor a ideia de um pátio fechado onde se descansaria, onde se pararia e onde o livro e o seu “de fora” se delimitassem. A própria ideia de coexistência e de absorção de registos muito plurais acaba por atravessar a obra de Almeida Faria desde a cinematografia brusca de Rumor Branco. Por fim, a obra de Almeida Faria fala de si como uma caixa de música e alarga o seu encanto estético a um modelo de paródia que eu creio ser novo entre nós.
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3. A dupla paródia
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Eu explico-me. Ao longo do século passado, tornou-se óbvia a consciência de que o diálogo e a concatenação entre enunciados, textos, mensagens e imagens de todo o tipo constituíam um modo essencial de significar. Este novo tipo de palimpsesto, diferente daquele que na Idade Média recobria autor anónimo e lógica de suporte, recebeu designações diversas, tais como dialogismo, transtextualidade ou paródia que L. Hutcheon, em A Theory of Parody[2] (1985, p. 101), caracterizou, ao mesmo tempo, como “textual doubling (o que unifica e reconcilia) e diferenciação (aquilo que pressupõe uma oposição irreconciliável entre textos e, por outro lado, entre textos e o mundo)”. Um exemplo literário onde convivem duas eras, dois estilos e duas enunciações condensadas numa só surge no romance Cavaleiro Andante (1983), onde o protagonista, João Carlos, durante a revolução portuguesa, celebra, de modo hilariante e a sós, o 10 de Junho, dia de Portugal, através de um curioso monólogo: "Quão diferentes acho teu fado e o meu, quando os cotejo: outra causa nos fez, perdendo o Tejo, encontrar novos aires e desaires; e versos tão diversos escrevemos, os teus famosos e heróicos, a mim cabendo a vez da negativa epopeia; não te imito nos dons da natureza, nem as eras são de igual grandeza, mas ambos regressamos à lusitana praia e hoje penso em ti junto ao teu mar." (p.43). Mas o que me parece novo no modelo de paródia de Almeida Faria é que, na sua obra, incorpora-se e parodia-se simultaneamente, ao contrário da lógica corrente moderna (e pós-moderna) que fez da simples incorporação uma prática de paródia (vejam-se modelos tão diversos como a tradição da Pop Art, o Casablanca em Hélder Macedo ou o mito do Anjo Azul em Fassbinder). Por exemplo, não existirá uma paródia polifónica de Faulkner em Lobo Antunes que é audível até aos confins do horizonte? E não existirá, também, uma paródia rítmica do Padre António Vieira em Saramago que é notória mesmo nas ilhas do cabo do mundo? Eu creio que sim, do mesmo modo que se reencontra em Sollers o espaçamento plástico de Céline, pois é esse, justamente, o modo mais comum de o “Cânon” se desdobrar no tempo e, portanto, se actualizar. Por outras palavras: a maioria destes autores e tendências definiram o seu mapa criativo através de um perímetro paródico reconhecível, absorvendo-o, tendo depois aí inscrito um determinado universo literário. No caso de Almeida Faria, parece-me justamente o contrário, na medida em que, por um lado, o universo criado pela sua obra provém de uma cartografia muitíssimo mais vasta (mitologia clássica, tradição épica, narrativas de cavalaria, romances franceses iluministas, poética expressionista; toda a ruptura do Pós-Primeira Grande Guerra – de Zvevo a Kafka, de Proust a Joyce – e ainda a Nouvelle Vague, o Nouveau Roman, alguma das “travessias” de Guimarães Rosa e múltiplas oralidades) e, por outro lado, na medida em que a incorporação na sua obra é múltipla e permanente, não dando lugar à formação de um perímetro paródico reconhecível e estável. O que se incorpora na obra de Almeida Faria é, com efeito, multiforme e imenso, mas jamais ou raramente se impõe, nos processos de enunciação, aos seus textos como um modelo matricial. Este efeito de caixa de música sugere uma espécie de narcisismo literário – uma obra que parece contemplar-se a si mesma – que tem como base uma dimensão plástica única.
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4. Um design da língua literária
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Quando me refiro a “dimensão plástica” e a “única”, refiro-me a entidades que se geram num sistema literário determinado; aquele que se escreve em língua Portuguesa. Só aí se poderia escutar e perscrutar o que Alzira Seixo designou luminosamente por “sintaxe do som secreto”. A plasticidade na obra de Almeida Faria mereceria um estudo à parte, por ser, ela mesma, uma consequência do modelo de dupla paródia, ou melhor, de ‘incorporação mais paródia’, que, como se viu, estará na base da enunciação de um discurso sempre inacabado e norteado pelo recorte elegante e musical da grande frase. À propriedade plástica e à propriedade sintáctica e sonora de Alzira Seixo, eu preferiria, nos tempos que correm, associar Almeida Faria a um design da língua literária. Um “power of ordering”, nas palavras de Frye, que já anteveria uma ideia de design nos idos de sessenta, não apenas como molde da cultura, mas sobretudo como modo de ver, espelhar e fruir o mundo através da eficácia e do permanente apelo estético.
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A sinestesia, a rima, os hiatos, a aliteração, o hipérbato por vezes desconcertante, os cromatismos, o silêncio, a sucessividade de efeitos e, portanto, a repetição formam parte deste design. Na plástica de Almeida Faria, a repetição – mesmo a fonética – não é nunca um ritual. Se houve um tempo em que os ritos tornavam actuais os mitos, no nosso tempo a repetição apenas torna actual a própria actualidade do texto e das mais diversas mensagens (escute-se: “Mil vezes prefiro o Veronese, esse clássico mesmo. Mas porque os clássicos não te inspiram, compreendo que te excitem mais os riscos de desequilíbrio barroco, os delírios maneiristas, marinistas” – C.A., p.235; ou “Enquanto caminhava ao acaso pela nossa casa, descobri uma porta que antes ali não existia, junto à escada para o quarto das criadas” – L., p.282). Ao contrário do que Nietzsche disse, “Deus” não morreu. Pelo contrário, “Ele” desceu à Terra e transformou a repetição, sob a forma de minimalismo sonoro, na nova “Escritura”. Ao fim e ao cabo, a repetição é o alicerce do estado generalizado de sedução em que o nosso espaço público se tornou. E nesse palco o design é um protagonista central. E já o seria há muitos anos, no campo literário e musical da Tetralogia. Ouçamos estes outros registos:
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“Será na primavera; no princípio de tudo…” (P.,17)
“(...) enterram-se raízes uma a uma, em seguida regaram, regá-las-ão até aos dias sem data”(P,63)
“(...) festejaremos a preparação da Páscoa e após termos comido lavaremos as mãos na água da ribeira e juntos partiremos pela planície.” (P.,16-17)
“Eis que caminha pela manhã da névoa, quando ainda a charneca está cheia dessas aves que cantam como sendo pingos lentos que caem, e, a caminho da missa diária, assalta-o o nevoeiro.” (P.,50)
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Estes registos de A Paixão celebram um advento fertilizador construído através da ressonância dos infinitivos. É a linguagem na sua autonomia a par do evento (neste caso) telúrico que escorre ao longo do cuidado ritmo de longa frase, aqui e ali, evocando o fôlego largo de um Bernardim Ribeiro. A ideia de um design da língua literária advém desta serenidade que une, num único caudal, o “Mito” e o “Logos” como referiu Hans Blumenberg (Arbeit am Mythos, 1979). Por outras palavras: A ideia de um design da língua literária é a ideia de uma eficácia narrativa e de uma clara percepção do “plot”, alicerçado num teor denotativo óbvio e pertinente, que se desenvolve, ao mesmo tempo, que esta cadência poética, sonora, conotativa e plástica edifica o seu próprio mundo encantatório. A sua caixa de música secreta. Como escrevi noutro lado, a história do design terá resultado de uma ideia de criação que acaba por fundir a dupla formulada por Blumenberg: de um lado, a dimensão da poeisis criativa que a arte reivindica desde meados do século XVIII, e, do outro lado, a racionalidade e a eficácia aplicada à expressão da cultura material. Se toda a história da modernidade se fez a partir da separação tida como inevitável da dupla “Mito” - “Logos”, Hans Blumenberg, ao desfazer essa oposição, veio criar (involuntariamente, porventura) condições para o entendimento de novas expressões contemporâneas, entre elas o design. Mas não só. É legítimo inserir neste novo horizonte de compreensão outras obras de arte, nomeadamente literárias, desde que integrem na sua textura discursiva e no seu íntimo jogo de linguagem a aludida dupla. Veja-se como tal é cristalino na escrita de Almeida Faria, até pelo modo como a eficácia do acto narrado convoca uma musicalidade poética que, por sua vez, agrega e ecoa matizes várias do linguajar popular: “De inverno assentava-se nos cômoros da quinta, ao pé da pluvial alcárcova rumorosa e lavada, sob o caramanchão que de chuva pingava, ali ficava horas, de cócoras, formando, paciente, figurinhas de barro, cães, mulheres, cavaleiros, automóveis; amassava a terra com força numa bola, águalmagre corria esguinchando pelos dedos (…)” (A Paixão, início do capítulo 21, p.64).
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5. Deriva crítica
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Quando há dias um crítico divorciava o lado experimental de Almeida Faria da sua capacidade de efabulação, pensei logo na incompreensão mais geral da crítica face ao silêncio numa era de compulsão de imagens, de ruído e de fluxo expressivo contínuo (esquecem-se que Fernando Pessoa, entre nós, e Charles Sanders Peirce, apenas o maior filósofo norte-americano, fundador do pragmatismo e da semiótica tal como a entendemos hoje, se limitaram a escrever um único livro em vida). Eu sei que é mais fácil esquematizar e recorrer a uma espécie de historiografia dominante, ou ir atrás do calendário mediático dos novos enlatados sintético-literários, do que reequacionar pacientemente como se fosse sempre a primeira vez. É por isso que a tipologia do mainstream é tão simples como inócua na sua caracterização. Atente-se ao seu receituário meio futebolístico: Almeida Faria seria um autor que foi genial no início, depois deu corpo a uma obra de fundo (muito pouco estudada entre nós, injustamente), a Tetralogia Lusitana, até que foi encontrado prematuramente morto na praia ocidental onde se inicia O Conquistador. Esta teoria do epitáfio satisfeito, chamo-lhe assim porque faz repousar a impaciência do que ainda resta de crítica, esquece que os 13 anos de suspensão entre A Paixão e Cortes poderão pressupor-se na razão directa da (relativa) paragem pós-O Conquistador. Há vasos comunicantes que têm o seu ritmo próprio e que não acompanham necessariamente o ritmo mediático, aligeirado e judicativo da crítica actual.
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O modo falacioso com que a crítica hoje tenta determinar e validar o que é um “grande escritor” parece decorrer, mais da permanente, sôfrega e inesgotada afirmação (um livro por ano, ou de dois em dois), do que de um olhar actualizável, incessante e sustentado pela leitura e análise do que foi e é escrito e enunciado. Isto quer dizer que a crítica passou há muito a dar cobertura a uma máxima de um meu ex-editor que dizia que “um livro dura três meses no máximo”. É esta óptica de fluxo que foca produtos e não livros, é esta óptica de simulacros que foca voragens e não obra… que gosta amiúde de assumir cenografias próprias de um concurso televisivo de horário nobre. O crítico Fernando Venâncio fazia eco, há dias, deste figurino no seu blogue – o “Aspirina B” –, onde perguntava (como se se dirigisse a concorrentes nervosos e ansiosos): «A história que hoje podemos fazer dos últimos trinta anos dá-te [a Alexandre Pinheiro Torres] razão, pois Almeida Faria não se tornou o grande escritor que Vergílio Ferreira augurara» (Carlos Ceia…); e: «Entre 1965 e 1983, Almeida Faria publicou a sua «tetralogia lusitana» (Paixão, Cortes, Lusitânia e Cavaleiro Andante), que confirmou o vaticínio de Vergílio Ferreira: o de que estávamos perante um 'futuro grande escritor'» (António Guerreiro…). O crítico terminava esta justaposição com a seguinte questão: (face a estas duas opiniões) “Qual é a sua?” Enfim, para o citado crítico Carlos Ceia, que desenvolve as suas ideias a partir de quem leva mais ou menos longe “os experimentalismos”, o caso Almeida Faria resolve-se com eloquência de breviário, isto é: o autor não passaria de um efectivo “aprendiz de Joyce”. Caso arrumado.
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É evidente que o pensamento esquemático e dicotómico serve muitas vezes para conformar afectos e ternuras pessoais (é o caso de Carlos Ceia para com Alexandre Pinheiro Torres, convenhamos). Caber-nos-á ser compreensivos neste tipo de arenas dedicadas e delicadas. Contudo, na maioria das vezes, o esquematismo enclausura o mundo numa redoma sem forma e deixa simplesmente de ver. Eu sei que não é fácil reconhecer e exemplificar na escrita de Almeida Faria o apelo oracular, o pioneirismo expressivo, o aspecto da dupla paródia e ainda a plenitude de um design da língua literária. São vias novas – e a explorar – que redescobri ao pensar esta intervenção e que podiam e deviam ser aprofundadas. Seria mais fácil não reler e não pensar. Também sei que o ruído livresco poderá ofuscar outros factos como o do inquérito às práticas de sentido ao nível de um país. Este tema que, depois do 25 de Abril de 1974, se reinventou sob o vetusto nome de “identidade nacional” é uma isotopia da obra do autor desde o início da Tetralogia. Também sei que o registo fantástico e o discurso onírico (não apenas dos personagens tipificados, Jô e Tiago), ambos fundados numa reversibilidade já sublinhada entre o visível e o ‘não-visível’, ou entre o dito e o ‘não-dito´, constituem instâncias muito singulares de álibi diegético que garantem uma pulsação profunda e ímpar aos enredos de Almeida Faria. Identidade, neste mundo, e onírica, aparentemente noutro mundo, convivem numa geometria arejada onde se pressupõe sempre uma busca, uma “quête”.
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6. O anfitrião persistente
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Quer em Lusitânia e em Cavaleiro Andante, quer no recente Vanitas, a figura do “anfitrião” é recorrente. Em ambos os percursos, alguém sai de casa e parte para algures (independentemente da finalidade). Chega depois a esquecer-se de si e do seu destino, como se comesse uma flor de lótus e a reimaginasse. Encontrar-se-á, a certa altura, com fantasmas. Enfrentará as forças da natureza que ninguém controla. Confrontar-se-á sempre com o imponderável. Por vezes, ficará imobilizado face a alguém do sexo oposto que seduz e subjuga. Inquirirá o mundo dos mortos, o além e o futuro. Transgredirá e enfrentará a adversidade e o destino, desenvolvendo capacidades próprias e reacções desconhecidas. Será acolhido por bons anfitriões, em ambiente benévolo – momento ómega! –, num lugar singular, metafórico e por vezes questionador. Contará a vida a si próprio e aos demais. Regressará ao seu ambiente original (o Nostos), depois de ter mudado muito. Já não é tão certo que seja acolhido sem ser reconhecido. Já não é tão certo que viva intensamente o reencontro com os seus (o mundo dos heróis esvaiu-se!). Nem é nada certo que deseje vingar-se e recuperar o que é seu, a não ser a “quête”, a busca incessante, como única razão a apropriar. Mas é certíssimo que, no fim de tudo, de modo mais ou menos sacrificial (lembro sempre o destino de André no final de Cavaleiro Andante!), alguém regresse à vida comum, à margem da epopeia e da história. O final de Vanitas ilustra-o de modo soberbo: “( …) E as noites de hoje, de amanhã e depois, como serão? Se ouvir passos, ponho tampões nos ouvidos e não ligo. O truque serviu para resistir às sereias de Ulisses; também funcionará contra um fantasma. Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a Vanitas inerente a toda a arte?”
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O anfitrião é – e continua a ser – na obra de Almeida Faria a metáfora da distância, do cosmopolitismo e da abertura ao universo. Mas há uma fractura permanente nesta anunciada, mas nunca cumprida, completude. É como se o regresso de Ulisses, quase no final, fosse sempre prematuro; de tal modo que a voz de Circe ou de Tirésias se continuassem a misturar e a propagar indefinidamente no relato. No fundo, trata-se de um simples reflexo da raiz contemporânea habitada pelo autor e pelas suas circunstâncias que faz conviver, de maneira pendular, a memória, o diferido, o delírio e o iminente.
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A literatura de Almeida Faria realiza-se na curvatura onde o compasso da viagem iniciática se encontra com a sublimação, ou, talvez, com o exacerbar da arte. Neste último território, tão vaticinado por Marta e JC na segunda parte da Tetralogia e entrevisto em Vanitas como pura indagação, o sentido reflecte muitas vezes o desinteresse contemplativo que Kant projectou num primeiro juízo do gosto. Vejam-se as palavras do novo anfitrião e coleccionador de Vanitas: “De cada vez que comprei uma peça, concedi-lhe e concedi-me um período de adaptação para perceber se ela e eu nos pertencíamos”. O olhar entre ambas as matérias, a humana e a que parece ter sacralizado o emergir moderno, é um olhar onde apenas o silêncio se projecta. Um silêncio de ouro que convoca um desejo subliminar e em fúria: um e outro, em oximoro emotivo, a contracenarem com a grande evocação de Marta (na antepenúltima missiva da Tetralogia em que se dirige a JC): “Passou a água alta, esqueço já as solidões passadas, acordo às seis da madrugada quando os proletários de Mestre e de Marghera tomam os primeiros comboios para Veneza, embarcam nos primeiros barcos, enquanto eu posso ficar à janela olhando as águas vermelhas, rosadas, conforme o vagaroso, nevooso sol sempre mais fraco sobre os telhados baixos, sobre os pátios baços de humidade, ouço rumor de motores avançando pelos rios laterais onde as ondas batem na esteira de outros barcos que a golpe de braços lentamente deslizam no canal (…)” (C.A., p.191).
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Bem sei que o tempo literário não é um tempo que se meça do mesmo modo que um higrómetro desvenda os níveis de humidade. Mas há uma coisa que eu sei. É que o tempo irá consolidar a grandeza literária da obra já feita e a vir – espera-se – de Almeida Faria. No fundo, era isto que eu hoje quereria enfatizar nesta homenagem que a cidade de Montemor-o-Novo presta a um dos seus melhores filhos.
1. O apelo oracular
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Há vinte anos, estava a escrever uma tese sobre a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria. O trabalho acabou por ser premiado pela APE, mas, curiosamente – uma curiosidade ainda hoje não racionalmente saciada – pouco ou nada fiz para que fosse publicada. Este absurdo tem bastante peso, diria um peso impostulável, na medida em que não sou um autor propriamente económico. Com efeito, em vinte e seis anos de vida literária e ensaística, tenho mais de trinta livros publicados. Mas este volume de 246 páginas sobre a obra de Almeida Faria, que guardo a sete chaves no meu escritório, manteve-se incólume, indiferente ao tempo e à erosão emocional e sobretudo distante de questionações apressadas. Há um enigma nesta decisão, ou melhor, neste espaço de sincera indecibilidade, onde convive o fascínio, um certo apego pela preservação e o apreço pela consistência do objecto estudado e longamente analisado. O certo é que a tentação de editar fez excepção neste meu perene encontro de vida com Almeida Faria. E é a ele que devo, em primeiro lugar, esta palavra confessional.
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Isto significa que o objecto de estudo desencadeou um forte efeito hipnótico sobre o desejo do então sujeito investigador. De facto, sempre houve uma voz que me segredou do meio da malha textual de Almeida Faria. Uma voz que me alertava sibilinamente. Era, digamos, um apelo que parecia reatar um conhecido fragmento (o nº 93) atribuído a Heraclito por Plutarco[1] e onde se podia ler: "O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais". Este elogio a Apolo que relevava a harmonia entre a inscrição e o Logos colocou a nu uma sabedoria que se baseava num tipo de interpretação reversível entre conhecido e desconhecido, visível e invisível entre o dito e o ‘não-dito’. Uma tal circularidade que associa o subterrâneo da alma à geometria mais apolínea e que sabe rescrever o mundo num único esteio, amalgamando o sonho e o real, a efabulação e a experiência, a plenitude e o fragmento, é um dado que sempre me pareceu evidente em toda a obra de Almeida Faria. Aparece em Rumor Branco, atravessa o edifício de Tetralogia Lusitana, inicia O Conquistador, inunda Os Passeios do Sonhador Solitário e o recente Vanitas e revela-se ainda como acaso persistente nas incursões teatrais do autor (Vozes da Paixão e A Reviravolta).
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2. Prenunciando expressões
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Quando hoje se estuda a expressão na rede, e eu tenho um ensaio no prelo sobre o tema, há um conjunto de atributos imediatos que a clarificam. Resumi-los-ia em seis pontos: um texto que se move e que vive de permanentes agenciamentos como se nunca conseguisse estar pronto; um texto feito de muitas entradas – de uma quase sobreposição de entradas e de camadas – naquilo que se designaria por excesso de actualidade; um texto que se gera a partir do seu ininterrupto contexto e que parece querer acabar com a velha separação entre um “de fora” e “um de dentro”; um texto sempre descentrado que recusa ser corpo com princípio meio e fim e que jamais se fechará sobre si próprio; um texto que transpira devido à coexistência de registos que, no seu seio, procedem das mais variadas origens; e um texto que comunica não apenas para dizer, mas também para se representar a si mesmo… como que adiando para sempre o seu aceno denotativo. Eu não quereria dizer que a obra de Almeida Faria é pioneira desta matriz expressiva que hoje pulula criativamente na rede. Mas não deixa de ser verdade que no laboratório do escritor sempre existiu uma arrumação algo prenunciadora. Senão vejamos: a textualidade na Tetralogia é constituída por uma sequência de ecos, uma multitude de entradas que inscrevem (independentemente do fazer-narrativo) o seu “Não”, o seu “Se” e o seu “Já”, não dando nunca ao leitor a ideia de um pátio fechado onde se descansaria, onde se pararia e onde o livro e o seu “de fora” se delimitassem. A própria ideia de coexistência e de absorção de registos muito plurais acaba por atravessar a obra de Almeida Faria desde a cinematografia brusca de Rumor Branco. Por fim, a obra de Almeida Faria fala de si como uma caixa de música e alarga o seu encanto estético a um modelo de paródia que eu creio ser novo entre nós.
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3. A dupla paródia
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Eu explico-me. Ao longo do século passado, tornou-se óbvia a consciência de que o diálogo e a concatenação entre enunciados, textos, mensagens e imagens de todo o tipo constituíam um modo essencial de significar. Este novo tipo de palimpsesto, diferente daquele que na Idade Média recobria autor anónimo e lógica de suporte, recebeu designações diversas, tais como dialogismo, transtextualidade ou paródia que L. Hutcheon, em A Theory of Parody[2] (1985, p. 101), caracterizou, ao mesmo tempo, como “textual doubling (o que unifica e reconcilia) e diferenciação (aquilo que pressupõe uma oposição irreconciliável entre textos e, por outro lado, entre textos e o mundo)”. Um exemplo literário onde convivem duas eras, dois estilos e duas enunciações condensadas numa só surge no romance Cavaleiro Andante (1983), onde o protagonista, João Carlos, durante a revolução portuguesa, celebra, de modo hilariante e a sós, o 10 de Junho, dia de Portugal, através de um curioso monólogo: "Quão diferentes acho teu fado e o meu, quando os cotejo: outra causa nos fez, perdendo o Tejo, encontrar novos aires e desaires; e versos tão diversos escrevemos, os teus famosos e heróicos, a mim cabendo a vez da negativa epopeia; não te imito nos dons da natureza, nem as eras são de igual grandeza, mas ambos regressamos à lusitana praia e hoje penso em ti junto ao teu mar." (p.43). Mas o que me parece novo no modelo de paródia de Almeida Faria é que, na sua obra, incorpora-se e parodia-se simultaneamente, ao contrário da lógica corrente moderna (e pós-moderna) que fez da simples incorporação uma prática de paródia (vejam-se modelos tão diversos como a tradição da Pop Art, o Casablanca em Hélder Macedo ou o mito do Anjo Azul em Fassbinder). Por exemplo, não existirá uma paródia polifónica de Faulkner em Lobo Antunes que é audível até aos confins do horizonte? E não existirá, também, uma paródia rítmica do Padre António Vieira em Saramago que é notória mesmo nas ilhas do cabo do mundo? Eu creio que sim, do mesmo modo que se reencontra em Sollers o espaçamento plástico de Céline, pois é esse, justamente, o modo mais comum de o “Cânon” se desdobrar no tempo e, portanto, se actualizar. Por outras palavras: a maioria destes autores e tendências definiram o seu mapa criativo através de um perímetro paródico reconhecível, absorvendo-o, tendo depois aí inscrito um determinado universo literário. No caso de Almeida Faria, parece-me justamente o contrário, na medida em que, por um lado, o universo criado pela sua obra provém de uma cartografia muitíssimo mais vasta (mitologia clássica, tradição épica, narrativas de cavalaria, romances franceses iluministas, poética expressionista; toda a ruptura do Pós-Primeira Grande Guerra – de Zvevo a Kafka, de Proust a Joyce – e ainda a Nouvelle Vague, o Nouveau Roman, alguma das “travessias” de Guimarães Rosa e múltiplas oralidades) e, por outro lado, na medida em que a incorporação na sua obra é múltipla e permanente, não dando lugar à formação de um perímetro paródico reconhecível e estável. O que se incorpora na obra de Almeida Faria é, com efeito, multiforme e imenso, mas jamais ou raramente se impõe, nos processos de enunciação, aos seus textos como um modelo matricial. Este efeito de caixa de música sugere uma espécie de narcisismo literário – uma obra que parece contemplar-se a si mesma – que tem como base uma dimensão plástica única.
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4. Um design da língua literária
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Quando me refiro a “dimensão plástica” e a “única”, refiro-me a entidades que se geram num sistema literário determinado; aquele que se escreve em língua Portuguesa. Só aí se poderia escutar e perscrutar o que Alzira Seixo designou luminosamente por “sintaxe do som secreto”. A plasticidade na obra de Almeida Faria mereceria um estudo à parte, por ser, ela mesma, uma consequência do modelo de dupla paródia, ou melhor, de ‘incorporação mais paródia’, que, como se viu, estará na base da enunciação de um discurso sempre inacabado e norteado pelo recorte elegante e musical da grande frase. À propriedade plástica e à propriedade sintáctica e sonora de Alzira Seixo, eu preferiria, nos tempos que correm, associar Almeida Faria a um design da língua literária. Um “power of ordering”, nas palavras de Frye, que já anteveria uma ideia de design nos idos de sessenta, não apenas como molde da cultura, mas sobretudo como modo de ver, espelhar e fruir o mundo através da eficácia e do permanente apelo estético.
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A sinestesia, a rima, os hiatos, a aliteração, o hipérbato por vezes desconcertante, os cromatismos, o silêncio, a sucessividade de efeitos e, portanto, a repetição formam parte deste design. Na plástica de Almeida Faria, a repetição – mesmo a fonética – não é nunca um ritual. Se houve um tempo em que os ritos tornavam actuais os mitos, no nosso tempo a repetição apenas torna actual a própria actualidade do texto e das mais diversas mensagens (escute-se: “Mil vezes prefiro o Veronese, esse clássico mesmo. Mas porque os clássicos não te inspiram, compreendo que te excitem mais os riscos de desequilíbrio barroco, os delírios maneiristas, marinistas” – C.A., p.235; ou “Enquanto caminhava ao acaso pela nossa casa, descobri uma porta que antes ali não existia, junto à escada para o quarto das criadas” – L., p.282). Ao contrário do que Nietzsche disse, “Deus” não morreu. Pelo contrário, “Ele” desceu à Terra e transformou a repetição, sob a forma de minimalismo sonoro, na nova “Escritura”. Ao fim e ao cabo, a repetição é o alicerce do estado generalizado de sedução em que o nosso espaço público se tornou. E nesse palco o design é um protagonista central. E já o seria há muitos anos, no campo literário e musical da Tetralogia. Ouçamos estes outros registos:
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“Será na primavera; no princípio de tudo…” (P.,17)
“(...) enterram-se raízes uma a uma, em seguida regaram, regá-las-ão até aos dias sem data”(P,63)
“(...) festejaremos a preparação da Páscoa e após termos comido lavaremos as mãos na água da ribeira e juntos partiremos pela planície.” (P.,16-17)
“Eis que caminha pela manhã da névoa, quando ainda a charneca está cheia dessas aves que cantam como sendo pingos lentos que caem, e, a caminho da missa diária, assalta-o o nevoeiro.” (P.,50)
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Estes registos de A Paixão celebram um advento fertilizador construído através da ressonância dos infinitivos. É a linguagem na sua autonomia a par do evento (neste caso) telúrico que escorre ao longo do cuidado ritmo de longa frase, aqui e ali, evocando o fôlego largo de um Bernardim Ribeiro. A ideia de um design da língua literária advém desta serenidade que une, num único caudal, o “Mito” e o “Logos” como referiu Hans Blumenberg (Arbeit am Mythos, 1979). Por outras palavras: A ideia de um design da língua literária é a ideia de uma eficácia narrativa e de uma clara percepção do “plot”, alicerçado num teor denotativo óbvio e pertinente, que se desenvolve, ao mesmo tempo, que esta cadência poética, sonora, conotativa e plástica edifica o seu próprio mundo encantatório. A sua caixa de música secreta. Como escrevi noutro lado, a história do design terá resultado de uma ideia de criação que acaba por fundir a dupla formulada por Blumenberg: de um lado, a dimensão da poeisis criativa que a arte reivindica desde meados do século XVIII, e, do outro lado, a racionalidade e a eficácia aplicada à expressão da cultura material. Se toda a história da modernidade se fez a partir da separação tida como inevitável da dupla “Mito” - “Logos”, Hans Blumenberg, ao desfazer essa oposição, veio criar (involuntariamente, porventura) condições para o entendimento de novas expressões contemporâneas, entre elas o design. Mas não só. É legítimo inserir neste novo horizonte de compreensão outras obras de arte, nomeadamente literárias, desde que integrem na sua textura discursiva e no seu íntimo jogo de linguagem a aludida dupla. Veja-se como tal é cristalino na escrita de Almeida Faria, até pelo modo como a eficácia do acto narrado convoca uma musicalidade poética que, por sua vez, agrega e ecoa matizes várias do linguajar popular: “De inverno assentava-se nos cômoros da quinta, ao pé da pluvial alcárcova rumorosa e lavada, sob o caramanchão que de chuva pingava, ali ficava horas, de cócoras, formando, paciente, figurinhas de barro, cães, mulheres, cavaleiros, automóveis; amassava a terra com força numa bola, águalmagre corria esguinchando pelos dedos (…)” (A Paixão, início do capítulo 21, p.64).
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5. Deriva crítica
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Quando há dias um crítico divorciava o lado experimental de Almeida Faria da sua capacidade de efabulação, pensei logo na incompreensão mais geral da crítica face ao silêncio numa era de compulsão de imagens, de ruído e de fluxo expressivo contínuo (esquecem-se que Fernando Pessoa, entre nós, e Charles Sanders Peirce, apenas o maior filósofo norte-americano, fundador do pragmatismo e da semiótica tal como a entendemos hoje, se limitaram a escrever um único livro em vida). Eu sei que é mais fácil esquematizar e recorrer a uma espécie de historiografia dominante, ou ir atrás do calendário mediático dos novos enlatados sintético-literários, do que reequacionar pacientemente como se fosse sempre a primeira vez. É por isso que a tipologia do mainstream é tão simples como inócua na sua caracterização. Atente-se ao seu receituário meio futebolístico: Almeida Faria seria um autor que foi genial no início, depois deu corpo a uma obra de fundo (muito pouco estudada entre nós, injustamente), a Tetralogia Lusitana, até que foi encontrado prematuramente morto na praia ocidental onde se inicia O Conquistador. Esta teoria do epitáfio satisfeito, chamo-lhe assim porque faz repousar a impaciência do que ainda resta de crítica, esquece que os 13 anos de suspensão entre A Paixão e Cortes poderão pressupor-se na razão directa da (relativa) paragem pós-O Conquistador. Há vasos comunicantes que têm o seu ritmo próprio e que não acompanham necessariamente o ritmo mediático, aligeirado e judicativo da crítica actual.
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O modo falacioso com que a crítica hoje tenta determinar e validar o que é um “grande escritor” parece decorrer, mais da permanente, sôfrega e inesgotada afirmação (um livro por ano, ou de dois em dois), do que de um olhar actualizável, incessante e sustentado pela leitura e análise do que foi e é escrito e enunciado. Isto quer dizer que a crítica passou há muito a dar cobertura a uma máxima de um meu ex-editor que dizia que “um livro dura três meses no máximo”. É esta óptica de fluxo que foca produtos e não livros, é esta óptica de simulacros que foca voragens e não obra… que gosta amiúde de assumir cenografias próprias de um concurso televisivo de horário nobre. O crítico Fernando Venâncio fazia eco, há dias, deste figurino no seu blogue – o “Aspirina B” –, onde perguntava (como se se dirigisse a concorrentes nervosos e ansiosos): «A história que hoje podemos fazer dos últimos trinta anos dá-te [a Alexandre Pinheiro Torres] razão, pois Almeida Faria não se tornou o grande escritor que Vergílio Ferreira augurara» (Carlos Ceia…); e: «Entre 1965 e 1983, Almeida Faria publicou a sua «tetralogia lusitana» (Paixão, Cortes, Lusitânia e Cavaleiro Andante), que confirmou o vaticínio de Vergílio Ferreira: o de que estávamos perante um 'futuro grande escritor'» (António Guerreiro…). O crítico terminava esta justaposição com a seguinte questão: (face a estas duas opiniões) “Qual é a sua?” Enfim, para o citado crítico Carlos Ceia, que desenvolve as suas ideias a partir de quem leva mais ou menos longe “os experimentalismos”, o caso Almeida Faria resolve-se com eloquência de breviário, isto é: o autor não passaria de um efectivo “aprendiz de Joyce”. Caso arrumado.
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É evidente que o pensamento esquemático e dicotómico serve muitas vezes para conformar afectos e ternuras pessoais (é o caso de Carlos Ceia para com Alexandre Pinheiro Torres, convenhamos). Caber-nos-á ser compreensivos neste tipo de arenas dedicadas e delicadas. Contudo, na maioria das vezes, o esquematismo enclausura o mundo numa redoma sem forma e deixa simplesmente de ver. Eu sei que não é fácil reconhecer e exemplificar na escrita de Almeida Faria o apelo oracular, o pioneirismo expressivo, o aspecto da dupla paródia e ainda a plenitude de um design da língua literária. São vias novas – e a explorar – que redescobri ao pensar esta intervenção e que podiam e deviam ser aprofundadas. Seria mais fácil não reler e não pensar. Também sei que o ruído livresco poderá ofuscar outros factos como o do inquérito às práticas de sentido ao nível de um país. Este tema que, depois do 25 de Abril de 1974, se reinventou sob o vetusto nome de “identidade nacional” é uma isotopia da obra do autor desde o início da Tetralogia. Também sei que o registo fantástico e o discurso onírico (não apenas dos personagens tipificados, Jô e Tiago), ambos fundados numa reversibilidade já sublinhada entre o visível e o ‘não-visível’, ou entre o dito e o ‘não-dito´, constituem instâncias muito singulares de álibi diegético que garantem uma pulsação profunda e ímpar aos enredos de Almeida Faria. Identidade, neste mundo, e onírica, aparentemente noutro mundo, convivem numa geometria arejada onde se pressupõe sempre uma busca, uma “quête”.
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6. O anfitrião persistente
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Quer em Lusitânia e em Cavaleiro Andante, quer no recente Vanitas, a figura do “anfitrião” é recorrente. Em ambos os percursos, alguém sai de casa e parte para algures (independentemente da finalidade). Chega depois a esquecer-se de si e do seu destino, como se comesse uma flor de lótus e a reimaginasse. Encontrar-se-á, a certa altura, com fantasmas. Enfrentará as forças da natureza que ninguém controla. Confrontar-se-á sempre com o imponderável. Por vezes, ficará imobilizado face a alguém do sexo oposto que seduz e subjuga. Inquirirá o mundo dos mortos, o além e o futuro. Transgredirá e enfrentará a adversidade e o destino, desenvolvendo capacidades próprias e reacções desconhecidas. Será acolhido por bons anfitriões, em ambiente benévolo – momento ómega! –, num lugar singular, metafórico e por vezes questionador. Contará a vida a si próprio e aos demais. Regressará ao seu ambiente original (o Nostos), depois de ter mudado muito. Já não é tão certo que seja acolhido sem ser reconhecido. Já não é tão certo que viva intensamente o reencontro com os seus (o mundo dos heróis esvaiu-se!). Nem é nada certo que deseje vingar-se e recuperar o que é seu, a não ser a “quête”, a busca incessante, como única razão a apropriar. Mas é certíssimo que, no fim de tudo, de modo mais ou menos sacrificial (lembro sempre o destino de André no final de Cavaleiro Andante!), alguém regresse à vida comum, à margem da epopeia e da história. O final de Vanitas ilustra-o de modo soberbo: “( …) E as noites de hoje, de amanhã e depois, como serão? Se ouvir passos, ponho tampões nos ouvidos e não ligo. O truque serviu para resistir às sereias de Ulisses; também funcionará contra um fantasma. Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a Vanitas inerente a toda a arte?”
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O anfitrião é – e continua a ser – na obra de Almeida Faria a metáfora da distância, do cosmopolitismo e da abertura ao universo. Mas há uma fractura permanente nesta anunciada, mas nunca cumprida, completude. É como se o regresso de Ulisses, quase no final, fosse sempre prematuro; de tal modo que a voz de Circe ou de Tirésias se continuassem a misturar e a propagar indefinidamente no relato. No fundo, trata-se de um simples reflexo da raiz contemporânea habitada pelo autor e pelas suas circunstâncias que faz conviver, de maneira pendular, a memória, o diferido, o delírio e o iminente.
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A literatura de Almeida Faria realiza-se na curvatura onde o compasso da viagem iniciática se encontra com a sublimação, ou, talvez, com o exacerbar da arte. Neste último território, tão vaticinado por Marta e JC na segunda parte da Tetralogia e entrevisto em Vanitas como pura indagação, o sentido reflecte muitas vezes o desinteresse contemplativo que Kant projectou num primeiro juízo do gosto. Vejam-se as palavras do novo anfitrião e coleccionador de Vanitas: “De cada vez que comprei uma peça, concedi-lhe e concedi-me um período de adaptação para perceber se ela e eu nos pertencíamos”. O olhar entre ambas as matérias, a humana e a que parece ter sacralizado o emergir moderno, é um olhar onde apenas o silêncio se projecta. Um silêncio de ouro que convoca um desejo subliminar e em fúria: um e outro, em oximoro emotivo, a contracenarem com a grande evocação de Marta (na antepenúltima missiva da Tetralogia em que se dirige a JC): “Passou a água alta, esqueço já as solidões passadas, acordo às seis da madrugada quando os proletários de Mestre e de Marghera tomam os primeiros comboios para Veneza, embarcam nos primeiros barcos, enquanto eu posso ficar à janela olhando as águas vermelhas, rosadas, conforme o vagaroso, nevooso sol sempre mais fraco sobre os telhados baixos, sobre os pátios baços de humidade, ouço rumor de motores avançando pelos rios laterais onde as ondas batem na esteira de outros barcos que a golpe de braços lentamente deslizam no canal (…)” (C.A., p.191).
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Bem sei que o tempo literário não é um tempo que se meça do mesmo modo que um higrómetro desvenda os níveis de humidade. Mas há uma coisa que eu sei. É que o tempo irá consolidar a grandeza literária da obra já feita e a vir – espera-se – de Almeida Faria. No fundo, era isto que eu hoje quereria enfatizar nesta homenagem que a cidade de Montemor-o-Novo presta a um dos seus melhores filhos.
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[1]Em J.Cavalcante de Souza, Org., Os pensadores Pré-Socráticos, Nova Cultural, S.Paulo, 1991, p. 60; e em G.Kirk, J.Raven,M.Schofield, Os filósofos pré-socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994, pp.217-218.
[2] L. Hutcheon, A Theory of Parody:The teachings of Twentieth-Century Art Forms, Metheun, London, 1985.
[1]Em J.Cavalcante de Souza, Org., Os pensadores Pré-Socráticos, Nova Cultural, S.Paulo, 1991, p. 60; e em G.Kirk, J.Raven,M.Schofield, Os filósofos pré-socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994, pp.217-218.
[2] L. Hutcheon, A Theory of Parody:The teachings of Twentieth-Century Art Forms, Metheun, London, 1985.