Thursday, March 22, 2007

O tabu da comunicação profética

e
(Texto retirado do terceiro capítulo do meu livro, Islão e Mundo Cristão - Hugin, Lisboa, 2002)
1 - Profecias pós-escrituras: O cepticismo como fachada.
e
Maquiavel disse nos seus Discursos[1]: "Não há verdadeira calamidade que atinja uma cidade ou uma província que não tenha já sido antes vaticinada, por adivinhação, por revelação, por prodígios, ou ainda por outros signos celestiais” (1970:249). Esta posição de profunda desconfiança em relação à prática profética (posterior às mensagens divinas, mas por elas influenciadas) é curiosamente partilhada por Ibn Khaldún que, dois séculos antes, afirmou, referindo-se sobretudo à profecia de cariz astrológico: "...ela leva os homens a esperarem por signos de crise, relacionadas com as dinastias, o que encoraja os adversários e os rivais do Estado a atacá-lo e a revoltar-se contra ele" (1968-II:1191). Esta posição maquiavélica de Ibn Khaldún - podemo-lo dizer - espelha um determinado receio do poder estabelecido face à prática profética.
Com efeito, por trás das palavras de Maquiavel parece pressentir-se uma quase certeza quanto ao carácter funesto da profecia, seja onde for que ela se exerça. Não se trata apenas, já se vê, de um temor pelo profético. Muito para além disso, o que de facto está aqui em causa - e também em Ibn Khaldún - é o sentido e a afirmação de um poder, de uma ortodoxia, ou seja, por outras palavras, de uma posição política e socialmente dominante que prescreve, não apenas um receio pelas consequências do acto profético, mas sobretudo vela - sempre que pode - pela sua própria ilegitimidade (quando dele não se pode servir, o que, aliás, acabou por se tornar num hábito quase natural em todo o mundo, pelo menos até ao Iluminismo, no caso ocidental).
Tal como T.Izutsu reflectiu acerca desta matéria (1964:230), existe uma espécie de relação ética entre o homem e Deus que é comum, quer ao Islão, quer ao Cristianismo. Este facto, leva-nos a admitir que existe uma dada hermenêutica - ou relação circular como a que é gerada pelo círculo pergunta-resposta - do acto humano face à presença e à acção de Deus. Neste âmbito, é da resposta permanente do homem face às exigências divinas que depende a realização do contrato ético, cuja implicação última é de natureza escatológica e com incidências decisivas na salvação, ou não, do próprio homem. Entendamos, neste contexto, a prática profética como sinónimo de um conjunto de actos cuja natureza é: (a) predizer o futuro, (b) invocar ou falar em nome da divindade, (c) poder - ou ter a presunção de poder -, eventualmente, revelar o plano divino (ou uma parte dele). A prática profética é, pois, voluntária e produz-se num mundo em que tudo é ainda gerido por Deus, mesmo se (nos campos islâmico ou Cristão) a autonomia dos actos humanos for admitida enquanto causa segunda; como adianta G.Makdisi: "a liberdade intelectual na Idade Média existia apenas, enquanto considerada no quadro de um sistema de fé"(1985:79). Neste quadro de carácter ético - que, no fundo, rege as relações entre o homem e a divindade - passamos, agora, a interrogar o tipo de relação específica que existe entre o acto humano de profetizar e as ortodoxias - ou poderes - dominantes e estabelecidos (cuja lógica depende do grande código inicial - a lei revelada - que, com a passagem do tempo, requer uma natural actualização, em situações concretas do quotidiano).
e
2 - O que dizem as escrituras acerca da prática de profecias.
e
O Cristianismo, em princípio, parece deixar aberta a possibilidade de legitimar a prática de profecias pós-escrituras. S. Paulo, no início da Primeira Carta aos Coríntios, chega mesmo a aconselhá-lo. Como é aclarado, nos Actos dos Apóstolos (11,28), as profecias, mais do que simples actos de premonição, correspondem sobretudo à iluminação "pelo Espírito"[2] e podem manifestar ou traduzir, desse modo, o sentido da vontade divina, em circunstâncias do quotidiano (TOB,1989:509). Na Carta de S. Paulo aos Efésios (3,5), esta legitimação é explicitada numa lógica de advento de um tempo novo: "Este mistério que não foi dado a conhecer aos filhos das gerações passadas, como agora foi revelado aos seus santos Apóstolos e Profetas, no Espírito"; na Carta de S. Paulo aos Colossenses (1,26-27), precisam-se os destinatários que são referidos na Epístola aos cidadãos de Éfeso: são estes os apóstolos, os santos e, notoriamente, "todos os baptizados" (ibid.:600).
A articulação destes dados permitir-nos-ia concluir que, sob o pano de fundo da nova era histórica - mas também já escatológica - o homem pode realmente profetizar, na medida em que a potência divina o permita (através do Espírito Santo, como se anuncia nos Actos dos Apóstolos (1,8): "ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós"). No entanto, os textos do Novo Testamento não deixam, igualmente, de avisar que os falsos profetas hão-de surgir (Mt 24,11 e 7,15; e 1 Jo 4,1). Esse facto que, desde o fim do primeiro século, "instabilizou profundamente a igreja" (TOB,1989:111)
[3], é registado no Apocalipse canónico, sob a forma da "segunda besta" (Ap 13,11-16)[4]. Os limites e a legitimidade do acto profético ficam, assim, de certa forma, por codificar. Entrevê-se, de qualquer maneira, um debate constante entre a produção profética e os critérios que uma dada ortodoxia edifica, em tempos e lugares diferentes, no sentido de evitar ambiguidades. A importância do acto profético, até como arma de guerra em séculos e séculos de alteridade islamo-cristã, a isso, iria obrigar.

Por sua vez, o discurso divino revelado através do Alcorão parece ser mais claro e conciso: A sura 33,40 refere explicitamente que "Maomé não é pai de nenhum homem de entre vós, mas é o profeta de Deus e o selo dos profetas”. Tudo parece estar definitivamente dito e anunciado à humanidade, numa última descida revelatória. Na sura 31,34, esta visão é, porventura, ainda mais acentuada: "O conhecimento da Hora pertence a Deus, que fez descer bátegas do céu. Ele sabe o que contém as entranhas das mães. Nenhum ser sabe o que alcançará amanhã, tal como nenhum ser sabe em que sítio morrerá. Deus é sábio e instruído”. Não parece contemplar-se aqui a possibilidade de revelação progressiva. No entanto, no final da sura 42 (50-52), surge o seguinte trecho: "Não foi dado a um mortal que Deus lhe fale; Ele só o faz por inspiração ou detrás de um véu”(...)“Ou por intermédio de um profeta que revela, com Sua permissão, o que Ele quer”(51)“E foi assim que nós te inspirámos um Espírito às Nossas ordens”. Neste último versículo (42,52), a palavra "espírito" remete para o anjo Gabriel
[5], o que quer dizer que, aqui, o que sobretudo é aflorado é a modalidade de comunicação existente entre Deus e o profeta, no acto da revelação original. No entanto, também não deixa de ficar em aberto (42,50) a possibilidade de Deus "falar", ou comunicar com outros homens, sob certas circunstâncias (“inspiração” e por “detrás de um véu”).
Para além deste facto escritural, convirá não esquecer que o Islão esteve sempre bastante povoado por movimentos que interpretaram a Lei revelada como algo excessivo ou pesado
[6]. São seitas, ou correntes, que aspiram a um modo mais directo de assunção com Deus. Surgem nesses casos, por razões diferentes, os ghulât[7], entre os Shi'itas mais radicais, os Ismaelitas[8], os Druzes[9] e os próprios místicos, nomeadamente os Sufis, cuja maioria se encontra dentro do campo sunita[10]. São movimentos chamados antinomistas que preconizam a possibilidade de contacto directo com Deus, e que acabam, portanto, por deixar a porta aberta à legitimação do próprio acto profético pós-escrituras. Como no caso cristão ficam, portanto, por definir os critérios capazes de estabelecer limites e níveis de legitimidade para o acto de profetizar. É disso que passamos a ocupar-nos, de seguida.
d
3 - Critérios da ortodoxia para legitimar ou não as práticas de profecias.
e
J. Schacht (1953:36), num artigo importante para a teorização da filosofia escritural islâmica, ou da também chamada teologia dogmática (o Kalâm[11]), equaciona e tenta atribuir um significado de facto ao que designa por “Ortodoxia” islâmica. O autor começa por sustentar que a ortodoxia deve ser entendida como sinónimo de uma doutrina "seguida pela maior parte dos muçulmanos”. Dito isto, J. Schacht retira depois a seguinte ilação: "No quarto século da Hégira - séc, XI DC -, esta doutrina transformou-se numa espécie de super-estrutura de duas escolas muito relacionadas entre si, a dos Ash'aritas e a dos Mâturíditas". Em dois artigos posteriores (1964 e 1974-I,II e III[12]), G.Makdisim, na linha de J. Schacht, considerou que a ortodoxia islâmica representa "o que é standard", no sentido de que "a larga maior parte do Islão a integra” (1964:44-5); deste modo, o Sunismo, ao congregar 90% dos muçulmanos, configuraria a própria ortodoxia dominante.
A diferença, ou a nuance, que G.Makdisi estabelece decorre de uma segunda ilação, segundo a qual "a ortodoxia sunita é determinada pela inscrição dos seus membros numa das escolas sunitas de direito, já que todas se orientam pela sunna (tradição) do profeta" (ibid:45). Deste modo, não são as correntes e os diversos raciocínios desenvolvidos na teologia dogmática (kalâm) que se constituem como referentes da noção de ortodoxia, mas são antes as escolas jurídicas sunitas que desempenham esse papel, e no seio das quais as correntes filosóficas e teológicas do kalâm tiveram uma influência diversa. É por isso que, já em 1974, G.Makdisi haveria de concluir: "a única ortodoxia que foi testada no Islão, através do consenso da comunidade - a ijmâ´ -, foi a ortodoxia sunita, representada, desde o século III (IX-X DC) por quatro escolas de direito sunitas”; e o motivo desta constatação final parece clara:"(...) no domínio da religião, tudo deve ser legitimado por intermédio das escolas de direito” (ibid.:76), até porque o Islão é, antes de mais, monocrático e monocêntrico.
A noção de ortodoxia está, assim, intimamente ligada à ideia de consenso (ijmâ`), no quadro do Islão sunita. Não havendo clero, sínodos ou concílios, o Islão centra-se em torno da sua voz comum e interior. A partir do século III (IX-X DC), são fundamentalmente quatro
[13] as escolas de direito que dão corpo à ortodoxia: a Hanafita[14], a Malikita[15], a Shafi'ita[16] e a Hanbalita[17], recorrendo, todas elas, a diferentes métodos de jurisprudência, embora baseados em fontes idênticas: o Alcorão e a sunna (a tradição). O Malikismo e o Hanifismo consideram legítimas, para além das fontes consideradas, a opinião pessoal e o princípio da analogia (qiyâs) e, só numa última fase, o consenso (exclusivamente dos doutores de Medina, no primeiro caso, e sem qualquer restrição no segundo). O Shafi'ismo recodifica a noção de consenso, sob a forma de acordo unânime entre os doutores da lei, num dado período, e sobre uma questão particular determinada. Finalmente, a Escola Hanbalita, mais rigorosa quanto às fontes da lei principal, só em casos de absoluta necessidade poderia admitir o próprio julgamento pessoal.
O esforço de investigação pessoal que, em cada escola, conduz à interpretação da Lei, ou à descodificação da “Sharí'a” - a Lei revelada - no quotidiano, é designado por ijtihâd. A capacidade de efectuar esta descodificação é, apenas, reconhecida aos fundadores de cada escola, ou aos seguidores que tenham tido a responsabilidade de passar à prática o método daqueles. A partir daqui, não mais é possível recorrer à figura da ijtihâd, sem que, com isso, se impeçam os muftis de assumir as suas responsabilidades, em certos casos sem precedentes factuais. Este sistema, fechado sobre si mesmo, contendo o nível da diferença no seu interior, consubstancia, de facto, a natureza do consenso islâmico ou, por outras palavras, a verdadeira ortodoxia. A centrípeticidade do Islão é, sob uma outra forma, apresentada por Ibn Taymiyya (1263-1328) na teoria que poderíamos caracterizar como a doutrina dos círculos concêntricos. Tal concepção estabelece as posições relativas das diversas escolas teológicas (incluindo as do Kalâm) na comunidade, tendo como base o Alcorão e a sunna - como acima se viu. Neste quadro consensual de grande amplitude, apenas os “heréticos” partidários da jammiyya são considerados exteriores à própria ortodoxia
[18].
Na Península Ibérica, bem como em grande parte da África setentrional, a escola de direito tradicionalmente dominante é a Maliquita. Isso não significa que a ortodoxia ibérica tivesse, a seu tempo, silenciado vozes dissonantes, tais como as de Ibn Hazm, as dos filósofos, ou até algumas vozes das correntes mahdistas, de que os Almóadas terão sido o expoente máximo. No seu tradicionalismo moderado, o Maliquismo constitui-se como escola oficial do al-Andalus durante o século IV/X. O historiador Ibn Khaldún, que viveu entre 1332 e 1406, integrou o Islão maliquita e, apesar de ter trabalhado já no fim do grande período islamo-ibérico, ainda criou doutrina, nomeadamente no que diz respeito à relação entre ortodoxia e criação profética.
O autor considera que a especulação pura é necessária para entender a realidade, embora parta do princípio de que a razão é incapaz de traduzir toda a causalidade do mundo, à nossa volta. É por isso que Ibn Khaldún afirma que existe "um véu (que) separa os homens do desconhecido e que é por essa razão que ninguém o conhece, com excepção para aquele a quem Deus o revele em sonhos, ou através da santidade”
[19]. Em relação aos adivinhos, Ibn Khaldún acrescenta: "trata-se de uma categoria de homens imperfeitos em relação aos profetas”[20]. No seu combate à adivinhação, nomeadamente a astrológica, o autor adianta ainda que "não existe senão um agente, e esse agente é Deus, como já foi provado por dedução (istidlâl), aquando dos nossos estudos acerca da unidade de Deus" (1968-II:1188). As realidades futuras, sejam elas quais forem, convertem-se assim, na reflexão de Ibn Khaldún, numa espécie de mistério imponderável e sempre difícil de desvendar, sobretudo porque o ciclo (profético) se fechou de vez com Maomé. Motivo, também, pelo qual Ibn Khaldún é levado a concluir que as práticas proféticas, simplesmente humanas, nada têm a ver com o decreto divino, "ou seja, com a predestinação (al-Qadar)"(ibid:1187); e termina o historiador: "Tal é a tradição autêntica”(ibid.:1189), o mesmo é dizer que tal é o legado da própria ortodoxia islâmica.
De qualquer maneira, e como já o referimos, o termo "ortodoxia" implica a existência de uma norma ou autoridade, capaz de distinguir a doutrina herética dquela que o não é. Este modo de diferenciar o legítimo e o ilegítimo não existe, de modo tangível, no Islão (ao contrário do Cristianismo). Contudo, e como D.Broadribb adiantou, “o crente sabe qual é a vontade de Deus em cada situação específica com que se depare”(...)“a este respeito, deve notar-se que a lei da religião muçulmana está devidamente codificada, detalhe a detalhe” (1970:71). Nesta lógica, as posições de Ibn Kaldún remetem inevitavelmente para a tradição que é selada como a autêntica, e não para a que poderá estar falseada. Mas, mais uma vez o círculo se torna a fechar, já que Ibn Khaldún parte do princípio que a melhor maneira de defender a credibilidade das palavras imputadas ao profeta reside no próprio consenso, a “ijmâ'” (e existem várias tradições escritas e atribuídas ao profeta (hadít) que, aliás, argumentam nesse mesmo sentido
[21]). Por outras palavras: a “ijmâ'”, por um lado, autentifica a tradição, mas esta, uma vez autentificada, converte-se numa fonte da própria “ijmâ'”. Eis o círculo que liga, com alguma fragilidade, tradição e lei.
Independentemente da verificação dos vários garantes do Isnâd (lista de nomes que garante a verdade da transmissão oral das tradições e da certificação do transmissor - o “Râwí”), a verdade é que muitas tradições (hadít) foram forjadas, ao longo da história do Islão. O intertexto dessas tradições forjadas é imenso. Sem aprofundar muito este aspecto, parece claro que a maleabilidade da ortodoxia, de que a ijmâ' é alicerce, parece ser razoável, o que quer dizer que, no campo estrito da tradição, há - e houve, de facto, no decorrer dos séculos - espaço para a produção de profecias, apesar, muitas vezes, da sua ilegitimidade (aliás muito bem definida pelo próprio Ibn Khaldún). Como T.Fahd referiu, "No Islão, a afirmação constante da tradição resume-se a este princípio: ‘Lâ Kihâna ba'da n-nubuwwa’ (não há) mais adivinhação após o profeta" (1966:64). O parecer de Ibn Khaldún parece, com efeito, harmonizar-se com o desígnio da própria ortodoxia.
Um olhar sobre algumas suras do Livro sagrado confirma-o. Neste âmbito, a legitimidade de desvelar algum detalhe do futuro, ou do próprio plano divino, é, claramente, reservado a Deus: "Não vos antecipeis a Deus nem ao seu Profeta” (49,1). Sobre a autenticidade do que é formulado, incluindo naturalmente possíveis enunciações proféticas, a mensagem apela ao cuidado: "Se chegar junto de vós um pecador com uma informação, examinai-a, para não prejudicardes alguém por ignorância” (49,6). Além disso, várias são as suras onde é notório o intuito de dissociar a poesia (ou as "histórias frívolas") do conteúdo da revelação
[22], sobretudo porque, como G.von Grunebaum referiu, os adversários do profeta, no seu tempo, sempre se esforçaram por “confundir as noções de adivinhação e revelação, por um lado, com as de produção poética, por outro” (1955:7). A afirmação de Maomé como profeta terá, assim, exigido essa demarcação. É por isso que toda a literatura (de foro puramente humano) não é tradicionalmente olhada com bons olhos no seio do Islão. Esse é, também, o motivo que consegue explicar o facto de uma explosão “tão forte quanto terá sido (historicamente) a conversão ao Islão não ter provocado ecos literários importantes” (P.Heath,1989:197). A sura 69 põe mesmo em pé de igualdade o adivinho e o poeta, contrapondo-os à figura do profeta, numa antinomia que separa a verdade da quase futilidade: "Não é a palavra de um adivinho. Como é pouco aquilo em que reflectis !” (69,42); e: "Não é a palavra de um poeta. Como é pouco aquilo em que credes !” (69,41).
Esta delimitação entre ambos os campos parece, de facto, ser definitiva. A conclusão, mais uma vez, pode ser atestada pela fonte sagrada, através da sura 5 (versículo 101): "Ó crentes ! Não façais perguntas a respeito das coisas que, se fossem manifestadas, poderiam afligir-vos”. No entanto, é também aqui nesta sura que, ao evocar-se a misericórdia divina, é possível desvendar uma certa atenuação da ilegitimidade radical do próprio acto de profetizar :"Deus perdoará a vossa curiosidade, porque Ele é indulgente e misericordioso”. O Alcorão aconselha, portanto, neste passo, o crente a não ultrapassar o que lhe está destinado; contudo, a infidelidade não é imputada ao homem - de forma absoluta - sempre que os limites da sua curiosidade forem superados.
O mesmo tom de limitada condenação, ou na expressão de T.Fahd, de "reticência do Profeta em negar todo o valor intrínseco ao conteúdo da adivinhação” (1966:68) é traduzido numa tradição (hadít) da responsabilidade de Wahb b. Munabbih (primeiro transmissor do isnâd relativo a relatos bíblicos
[23]): "Deus disse a Moise b. Manassa b. Yúsuf para dizer ao seu povo: nada tenho a ver (anâ barí') com quem pratique a magia ou com quem se dirige a um mágico, ou com quem pratique a adivinhação”(...)“aquele que se afastar de mim e que depois deposite a sua confiança noutro; a esse, devolver-lhe-ei a oração que me tenha feito e confiá-la-ei, depois, àquele em quem acreditou”[24]. Parece, pois, agora claro que as práticas premonitórias, ainda que condenadas pelas fontes da ortodoxia, sempre tiveram espaço no Islão para se manifestarem. Ibn Khaldún, mais uma vez na sua Muqqadima, parece conclusivamente admitir este aparente paradoxo: "(...) essas práticas estão muito espalhadas em todas as cidades. A lei religiosa proíbe-as"(1967-I:679).
Divórcio entre o real quotidiano e a prescrição da ortodoxia, ou antes compatibilidade entre o real quotidiano e a ambiguidade da ortodoxia - tal parece ser o eixo duplo de implicações decorrentes da prática premonitória e daquilo que, no grande código, a legitima ou não.
e
3 - O caso ibérico no século XVI: ortodoxias, profecias e Islão vs cristianismo.
e
Pode dizer-se que a adivinhação e práticas correlativas sempre mereceram, no quadro islâmico, uma determinada credibilidade. A origem do fenómeno remonta a tempos pré-islâmicos e, na época em que teve lugar a revelação de Maomé, é mesmo normal que a profecia tenha sido enquadrada numa lógica de continuidade face a essa tradição. A ausência de um sacerdócio organizado na Arábia dos séculos VI e VII "reduzia o pessoal de culto aos adivinhos, no sentido mais largo do termo, e em todas as especialidades possíveis” (T.Fahd,1966:79). As teorias difundidas no Islão que entrevêem na profecia uma espécie de prolongamento da adivinhação e, ao mesmo tempo, o seu estado superior (opinião de Mas'údí, Ibn Khaldún e, por vias diferentes, de alguns filósofos e também de Al-Ghazâlí[25]) terão origem nessa credibilidade prática do premonitório, isto é, do elementar fruto da adivinhação, ou da simples oralidade profética popular.
A ambiguidade face à adivinhação tem aqui possivelmente a sua origem. A própria noção de ortodoxia, não dependendo de um centralismo de autoridade, acaba por atribuir ao crente a interiorização e até a difusão da fé. Esta fluidez codificada deixa também, por sua vez, a porta aberta à realidade da ortopráxis premonitório-profética e tem mesmo consequências reais entre os mouriscos ibéricos do sec. XVI. Assim, e como refere L.Cardaillac (1977:62), "Não dispondo o Islão de clero, é a cada crente que cabe o papel de propagar a fé. Mesmo assim, certas personalidades, devido ao seu saber, ou à sua santidade de vida” (...)” sempre acabaram por assumir esse papel. Trata-se de pessoas que tinham a reputação de adivino y profeta”, o que apenas comprova a ambiguidade a que nos temos vindo a referir e que reflecte, ao mesmo tempo, quer os “preceitos corânicos”, quer as “superstições populares” (ibid.:62).

É preciso não esquecer que estes cristãos-novos de origem islâmica, os mouriscos, são, entre o século XVI e o início do século XVII - data da sua expulsão definitiva da Península - uma unidade sincrética, rodeada física e culturalmente pelo meio cristão. Como Ottavia Niccoli referiu, este meio cultural dominante, no reverso das grandes viagens oceânicas e de algum experimentalismo nascente, vive verdadeiramente imerso num ambiente cultural que a autora designou por “divinatio popularis” (1990:13). Tal significa que a manipulação das ocorrências reais, quer levada a cabo pela "baixa cultura” (“low culture", quer pelas elites (ibid.:13) - caso do próprio papado até 1530
[26] -, constitui um sistema de signos essencial da identidade da época. A sua origem, enquanto tal, é medieval mas prolonga-se para além da considerada “Idade Moderna”, segundo O.Niccoli, em Itália, até 1530 e, na Grã-Bretanha e França, até ao início do Sec.XVII - o que é apanágio, igualmente, das terras ibéricas[27].
Esta cultura, caracterizada pelo divinatio popularis, coexiste com a da produção de valores humanistas e renascentistas, no século XVI. Porém, a debilidade destes últimos na Península Ibérica, no que M.Herrero García considera "a propensão espanhola para hacer descompasado em relação ao resto do ocidente" (1966:16), contribuiu para que as práticas proféticas se constituíssem como autênticos signos dos tempos em terras hispânicas. Juan de Horozco y Covarrubias (ed.1588-XII:fol.30r)
[28] refere que "casos de falsos Messias e de falsos Cristos se han dado repetidas vezes" e que muitos outros "milagres fingidos" e "oráculos falsos" (ibid.:XIII,fol.36r) dominavam nesses tempos de "abominação profetizada" (J.C.Baroja,1978:39). A inflação profética chega a atingir tais dimensões, na Península Ibérica, que a exigência de critérios, capazes de distinguir o premonitório legítimo daquele que o não é, acaba por tornar-se numa das tarefas mais urgentes do próprio poder. A necessidade de actualizar a lei, de a definir, entra, pois, na ordem do dia como veremos. Antes, no entanto, é importante situar os domínios da própria ortodoxia, no caso cristão.
Segundo a tradição medieval, a autoridade sobrenatural pertence não apenas à Igreja, mas igualmente à monarquia nacional. Como N. Cohn refere (1970:233), "o monarca era o representante dos poderes que governam o cosmos, uma encarnação da lei moral e da divina intenção". Esta herança sagrada da monarquia, aliás ligada à figura profética do último imperador (como contsta, por exemplo, na famosa Sibila Tiburtina), está directamente ligada aos "prophetae com o seu séquito de miseráveis, dispostos a carrear o levantamento até à batalha apocalíptica" (ibid.:233), de que o monarca é o arquétipo do grande vencedor. Este legado medieval apresenta diversas matizes de continuidade, em pleno século XVI. John Bossy, em A Cristandade no Ocidente(1990
[29]), refere-se-lhes deste modo: quando, em França, "Francisco I subiu ao trono, no ano de 1515, já era bastante banal falar do rei de França como um Deus corpóreo". Esta prática é institucionalizada na década de setenta por Jean Bodin (ibid.:181) e, depois de algo modificada no século seguinte, acabaria por tornar-se na “teoria política oficial da monarquia francesa até ao século dezoito" (ibid.:183). Em Inglaterra, para os católicos, na tradição de More, a subalternização da Igreja constituía "uma profanação do santuário que contagiava toda a comunidade" (ibid.:185). Este divórcio entre o sagrado e o social acabaria mesmo por investir-se de "garantia constitucional" com Lutero, ao "repudiar a encarnação da santidade"(ibid.:180).
No caso espanhol - e especificamente referindo-se a Filipe II - o autor considera que, apesar do carácter providencial de que os soberanos se sentem investidos
[30], "nenhum dos atributos do sagrado poderia ser reconhecido como fazendo parte dos atributos da monarquia" (ibid.:183). John Bossy conclui: "minando as pretensões dos monarcas ingleses, lançando a dúvida sobre a ortodoxia"(...)"dos franceses, refutando o que consideravam posições luteranas", para a monarquia espanhola, quer os bispos, quer o papa, eram "os inexpugnáveis guardiões do santuário"(ibid.:184). E isto, apesar da "fragrância de santidade" que os reis católicos anteriormente haviam projectado. Como adianta F.Braudel (1984-II:187), a Espanha, enquanto unidade política, só se "pode conceber, no século XVI, com uma unidade religiosa". De um lado, o guardião do sagrado, o poder papal; do outro o agente militante da providência de Deus, o imperador, ambos sedimentando uma ortodoxia que se edificará na Contra-Reforma, nas diversas expansões além-mar, nas inquisições e no retomar tardio do espírito de cruzada. É sob este pano de fundo que os critérios de legitimação da inflacionada prática profética vão ser definidos. Vejamos, então, quais as posições da ortodoxia quanto a essa prática.
Convirá, em primeiro lugar, situar algumas manifestações particulares, directa ou indirectamente ligadas ao premonitório-profético que são combatidas, na época, pela ortodoxia. Este termo designará um poder - ou uma autoridade - cujos agentes são diversificados, mas que partilham a interpretação de uma unidade religiosa, de acordo com a noção de F. Braudel (disposições régias, bulas papais, índices da inquisição, escritores oficiais ou oficiosos, etc.). A astrologia, embora com uma tradição específica, era um fenómeno corrente susceptível de se associar ao premonitório-profético. Um exemplo paradigmático, do início do século XVI, é o da previsão da conjunção planetária de 1524 (pela primeira vez registada por Johann Stofller em 1499
[31]), e que originou um intertexto profético denso e variado de cariz catastrófico. Como O. Niccoli demonstrou, a própria Igreja contribuiu, e muito, para a difusão destas profecias que prediziam um dilúvio definitivo, motivado por um castigo divino à própria Igreja (devido à sua corrupção) e ainda pela rebelião luterana. Passada, no entanto, a fatídica data de 1524, "a figura do astrólogo apareceu subitamente diminuída, sobretudo pelo modo como a cultura popular havia recebido (durante duas décadas) o suposto dilúvio” (O. Niccoli:167).
A par da manifestação astrológica que parece merecer condenação da ortodoxia, todas as manifestações que, na época, parecem sair fora do quadro considerado normal não são menos susceptíveis de perseguição oficial. É o caso dos místicos e do próprio Santo Inácio de Loyola. Como J.C.Baroja afirma, "a acusação mais fácil, contra a piedade daquele que reforma é a de ser alumbrado" (1978:471). Pedro de Rivadeneira, no seu Tratado de la tribulación (1877:371), refere-se às deambulações, em pleno século XVI, de "apóstolos falsos e forasteiros que cruzavam a Espanha, predicando pelas aldeias, e que davam a entender, nas suas confissões, que os pecados que ouviam lhes haviam sido revelados por Deus". Casos de mulheres dominadas pelo demónio ou iluminadas subitamente, como Magdalena de la Cruz de Córdova
[32] ou Sor Patrocínio, são paradigmáticos deste ambiente de fervor milagroso colectivo.
Noutro âmbito ainda, o fenómeno da bruxaria também encarnava uma velha tradição de heresia. J. Bossy (1990:100) refere que, após 1400, surge uma "profunda convicção de que as bruxas não eram simples inimigas particulares de determinado cristão, mas (que) estavam (antes) ligadas a uma conspiração geral que tinha por objectivo derrubar todo o Reino Cristão". Por outras razões, decerto mais profundas, a posição da ortodoxia face aos mouriscos - e também aos judeus - é a da progressiva (ou imediata) anulação. Cumpre-se a prescrição, segundo a qual, no século XVI, toda a comunidade deve integrar a família do Rei e participar da unidade religiosa, piedosa e militante que este prefigura. Tudo o que escapa a esta ordem natural das coisas passa a ser designado por “segno”
[33] e deve, por consequência, ser perseguido.
A emergência da Reforma vem, por outro lado, criar na Igreja católica a necessidade de um cerrar de fileiras contra a propagação de heresias. Muitas das práticas que, até então, eram características da própria vida religiosa - ainda que marginal - são, agora, postas em causa. Exemplos disso são os diversos casos de manipulação profética do papado de Leão X e de Clemente VII
[34], além do papel da igreja nas já referidas profecias da conjunção de 1524: "um número de fenómenos que tinha sido característico da vida religiosa nos cinquenta anos que decorrem entre 1480 e 1530, ou diminuíram, ou foram mesmo sufocados” (O.Niccoli,1990: 193). Esta "imposição da ortodoxia", como J. Elliott a designa (1963:216), traduz-se pela perseguição de humanistas, "iluministas e erasmistas" (ibid.:224), pela reprodução dos autos de fé da inquisição e pela aceitação geral do conceito de limpeza. Os últimos anos do reinado de Carlos V, sobretudo antes do final do Concílio de Trento (1563), constituíram a consumação desta nova política. O percurso, em Portugal, é paralelo: centralização do reino sob D.João II, em finais do século XV, e nova política virada contra as heterodoxias, já com D.João III, a partir dos primeiros anos da década de trinta do século XVI.
Um exemplo hispânico de uma obra de profecias, simultaneamente proibida e aplaudida neste ambiente austero, é o das Trovas de Bandarra, sapateiro de Trancoso (a quem Juan de Horozco y Covarrubias, no cap.XX do seu Tratado de la verdadera y falsa prophecia, se refere). As profecias de Gonçalo Annes, o Bandarra (m.1545 ou 1560), são redigidas e transladadas (não tipograficamente, portanto) durante a década de trinta. A rápida divulgação do texto, composto por três sonhos premonitórios e messiânicos e um intróito sobre "as maldades do mundo e particularmente as de Portugal", leva Bandarra ao segundo auto de fé inquisitorial, realizado em Lisboa, em 1541. Aí, o sapateiro Bandarra é ilibado da suspeição de judaísmo, mas, por outro lado, é obrigado a perjurar os seus erros e "a nunca mais escrever, ler ou divulgar assuntos referentes à Bíblia" (A.Carvalho,1990:21). As Trovas, curiosamente dedicadas ao Bispo da Guarda, serão sucessivamente proibidas pela inquisição (até ao século XVIII), tendo o auto de fé de 1541 sublinhado que "qualquer pessoa que tiver as ditas Trovas as apresente à Santa Inquisição, dentro de três dias que vier a sua notícia e o que puder fazer" (ibid.:22).
O outro lado destas Trovas é o da sua relação com o rumo da própria história de Portugal. Perdida a independência para Espanha, em 1580, na sequência da derrota do rei português, D.Sebastião, em Alcácer Quibir (1578), cria-se no país a lenda segundo a qual o rei não teria morrido e que, qual Frederico II, haveria de regressar numa manhã de nevoeiro. Estas prescrições são como que desveladas nas Trovas e os seus defensores, D. João de Castro (neto de um importante vice-Rei da Índia Portuguesa) e, posteriormente, o Padre António Vieira, tornam a leitura da profecia num acto da sua real efectivação. Com efeito, a Restauração portuguesa, em 1640, será associada a este auto-cumprimento profético e o messianismo português, conhecido como Sebastianismo, acabará por tornar-se devedor da lenta hermenêutica das Trovas. É curioso que, apesar de proibidas pela Inquisição, as profecias de Bandarra acabaram por ser bastante divulgadas e até pregadas "do alto dos púlpitos", como refere A. Neves (1990:43). Sujeitas a um intuito colectivo, as Trovas acabam assim por resistir à ilegitimidade e o próprio Vieira chegaria até a conceder-lhes a verdade profética, na sua obra, Esperanças de Portugal, quinto império do Mundo
[35]: "por nenhuma ciência, nem humana, nem diabólica, nem angélica, podia conjecturar Bandarra a mínima parte do que disse, quanto mais afirmá-lo com tanta certeza" (...) "é certo que só Deus podia dizer e revelar ao Bandarra todos estes futuros e qualquer deles, e com a mesma certeza se deve ter e afirmar que foi Bandarra verdadeiro profeta".
3
4 - A cartilha de Horozco y Covarrubias.
e
Em 1588, surge uma obra fundamental que se propõe separar as águas. Trata-se de uma cartilha destinada a colocar, de um lado, as profecias legalmente válidas e, de outro lado, as que a ortodoxia, ou poder, deveria proibir. A obra é da autoria de Horozco y Covarrubias e tem como título, o Tratado de la verdadera y falsa prophecia. O seu prefaciador, o franciscano Fray Juan de Colmenares, refere-se do seguinte modo às intenções da edição: "desengano das invenções e enredos do demónio nas falsas revelações que em diversas partes ha sembrado estos dias..."[36]. O autor enfatiza o objectivo hermenêutico da obra, até porque os enganos e “desenganos” da época obrigavam inevitavelmente à fixação de um corpo rigoroso de regras: "se em todas as nações antigas existiram falsas profecias sob várias formas, la luta seguía".
É entre os Capítulos XV e XX que Covarrubias acaba por estabelecer uma série de critérios, tentando, assim, criar uma codificação mais ou menos lógica para a difundida e ambígua prática profética. São os seguintes os parâmetros que então se instituem:

a) Constatação do "fruto da profecia"(XV-fol.43r-44v), ou seja, a observação dos impactos do enunciado no real;
b) Verificação da verdade da profecia "con respecto a la voz divina" (XVI-fol.44v-45v). Aqui retoma-se um dos aspectos modalizadores do género, mais vincados: o diálogo com a divindade. A interpretação do sentido da providência divina virá a constituir o método de aferição deste segundo parâmetro;
c) Três outras regras se condensam num terceiro parâmetro, respectivamente "las costumbres del que revela, la respectabilidad y la pertinencia de lo revelado" (XVII-fol.45v-47r). O quadro de legitimação tende aqui a excluir tudo o que seja marginal à comunidade. Entenda-se marginal como nocivo à noção de "unidade religiosa" que F. Braudel (1984-II:187) configura como indissociável da identidade Ibérica da Contra-Reforma. Assim, a tradição, ou os "costumes" (cristãos), idealizam um passado referencial que se actualiza no agora-aqui da enunciação profética, sob a forma de "respeitabilidade" que, por sua vez, surge como responsável pela "pertinência" do conteúdo das profecias em observação. Um último parâmetro diz ainda respeito ao modo e acto de enunciação da profecia;
d) "...El carácter y el modo de decir"(...)"de suerte que el que tenga algo de alocado, soberbio, o inquieto, no ha de ser seguido"(XVIII-fol.47r-48r). Neste parâmetro, é claro que se põem de parte as premonições vindas de consciências religiosas mais extremadas e visionárias, próprias da massa dos que eram acusados de ser, entre outras coisas, alumbrados.

São estas as regras que acabariam por, de algum modo, sintetizar a codificação da ortodoxia cristã ibérica, na época em causa. Podemos dizer que são algo maleáveis e susceptíveis de ambivalência interpretativa (porventura intencional). No entanto, Horozco y Covarrubias, insiste "en lo frequentes que son los casos de profetismo en que tiene que intervenir la Inquisición"(XV-fol.42r-42v), como havíamos visto com o caso exemplar (de ambivalência) das Trovas do nosso conhecido Bandarra. A imensa produção profética na Península Ibérica do século XVI faz-nos, porém, entrever uma situação algo similar à codificada pelo Islão: por um lado, divórcio entre o real quotidiano e a prescrição geral da ortodoxia; por outro lado, a compatibilidade prática entre o mesmo real quotidiano e a ambiguidade (às vezes permissiva) da ortodoxia.
Decerto que, para os cristãos-novos de origem islâmica, os mouriscos, esta ambivalência e estes parâmetros de Covarrubias hão-de ter tido uma única implicação: a falsidade e, por conseguinte, a condenação da heresia presente nos seus correntes aljofores
[37]. Além de escritos com grafemas proibidos e de serem oriundos de uma casta, como então se dizia, não só não correspondiam aos critérios descritos por Covarrubias, como os seus conteúdos eram frontalmente contrários aos desígnios da própria ortodoxia cristã.
e
[1]Dicorsi sopra la prima deca di Tito Livio (cit. in The Discourses, trad. de L.Walker, 1970:249).
[2]"L'un d'eux, appelé Agabus, fit alors savoir, éclairé par l'Esprit, qu'une grande famine allait régner dans le monde entier..."
[3]Por exemplo, as profecias ligadas ao Montanismo e aos Milenarismos nascentes.
[4]"Elle avait deux cornes comme un agneau, mais elle parlait comme un dragon" - referência metafórica aos falsos profetas que, em Ap 16,13 - são referidos como espíritos impuros e, portanto, referidos como "des faux prophètes".
[5]In J.P.Machado (1980:505).
[6]H.Halm refere-se à permanência destes grupos no seio de uma remota ortodoxia até que são, definitivamente, dados como heréticos:"La sharí`a conçue comme un fardeau pesant, son abolition conçue comme un acte de grâce divine, pour un bon musulman de telles idées devaient avoir quelque chose de monstrueux. Cependant, des mouvements ou courants antinomistes de ce genre ne sont pas en Islam aussi rares qu'on pourrait le supposer au premier abbord. Ils n'ont seulement pas pu se maintenir contre les attaques des juristes qui, à partir du IIe/VIIIe siècle, sont sortis vanqueurs de la lutte: les antinomistes furent donc forcés d'abandonner le terrain" (1985:135).
[7]São seitas shi'itas que recusam a Lei (a sharí'a) e que deíficam os imames. Um dos exemplos é a seita dos Aluítas da Síria. Não têm mesquitas e o seu livro sagrado é o Livro das sombras, onde pode ler-se: "Il y a une foule d'hommes sur la terre, auxquels vous parlez et qui vous parlent don Dieu a déjà enlevé les chaines et les liens sans que vous les connaissiez" (cit.in H.Halm,1985:138/9).
[8]O movimento surge com o cisma, no seio do Shi'ismo (após a morte do sexto Imame, Ja`far Sâdiq, em 765), daí tendo surgido o Imamismo "duodécimain"e o Ismaelismo "septimanien" (H.Corbin,1986:115 e sqqs.). De certa forma, a Lei é, no caso ismaelita, o obstáculo à visão directa de Deus e, dets modo, a Sua futura abolição não será acabará por consubstanciar o restabelecimento da religião primordial. H.Halm (1985:140) considera que, neste tipo de casos, estamos perante o "antinomisme latent des ismailiens".
[9]A seita data do séc.XI e declara o tanzíl e o ta'wíl ultrapassados (ou seja, o Islão sunita e o Ismaelismo), proclamando o surgimento do novo e terceiro período, o Tawhíd, que pressupunha a abolição da Lei e, portanto, a visão e adoração directa de Deus criador (H.Halm,1985:140-141).
[10]H.Corbin,1986:265 (Cap.V, sobre o Sufismo) - "...à travers les siècles, la très grande majorité des soufis se trouve dans le monde sunnite".
[11]Trata-se de um artigo, onde o Kitâb al-Tawhíd de al-Maturídi é apresentado, pela primeira vez, à comunidade científica (New sources for the history of Muhammadan theology in Studia Islamica,1953:23-42, Oxford). De salientar que esse importante documento, depois entretanto publicado (organização e tradução de F. Kholeif - 1970 e 1982), foi primeiro tornado público por J.Schacht dois anos antes da publicação do referido artigo, nomeadamente em 1951, numa comunicação apresentada na Universidade de Bruxelas.
[12]Ash`arí and the Ash`arites in Islamic Religious History,in SI,19,1964:18- e sqqs., e, L'Islam Hanbalisant,in REI,42,1974-I,II:211 e sqqs.,III:45 e sqqs..
[13]A escola Zahirita não é aqui mencionada devido à sua existência efémera, de acordo com o método de G.Makdisi (1964 e 1974). Fundada por Dâwúd Ibn Khalaf al-Isfahâní, o literalista (819-855 ou 910). A esta escola pertenceu Ibn Hazm (1064) e o próprio Ibn `Arabí.
[14]Formada na Síria com al-Auzâ`í(m.774) e, depois, no Iraque através de uma outra escola, teve como representante mais famoso Abú-Hanífa (m.767). Influenciou a escola maturidista (embora existissem no seu seio, igualmente, influências mu'tazilitas) e, após a vinda progressiva dos turcos para ocidente, passa a ter crescente implantação, não só na Ásia central, mas também na actual Turquia (Madelung,W./1968-71).
[15]Le Malikisme "bases its doctrine on the Qur`ân, The Sunna and ijmâ'"(...)"For Mâlik, hadít is thus not the most important source, and personal judgement, ra`y, is to be used in parallel, when ijmâ'cannot provide the answer to a question and only if this procedure does not injure the public good (maslaha)" (EI,1991-VI:279). Os Maliquitas apoiados por 'Abd al Rahmãn III, como refere M. Fierro (1991:129), "quienes lo utilizaron como elementos legitimadores de sus pretensiones califales, se constituyen en escuela oficial de al-Andalus durante el s. IV/X".
[16]M.Khadduri (1961:32-40) sintetiza as ideias fundmentais da Risâla de Shâfi'í (m.820), o fundador da escola de direito em questão, afirmando: "The Qur`ân, Shafi'í points out, is the basis of legal knowledge.". Referindo-se ao segundo capítulo da Risâla, o autor dá atenção à noçãoo de al-bayân: "Shafi'í says is a collective term which includes general principles of law as well detailed rules"(ibid:33). A divisão de al-bayân, feita em cinco categorias, é a seguinte: "The first consists of a specific legal provision in the text of the Qur`ân"(...)"the second includes certain provisions, whose odes of observance are specified by an order of the prophet Muhammad"(..)"the third consists of broad legal provisions which Muhammad particularized. The fourth includes all the legal provisions laid by Muhammad in absence of a specific Quranic text. The fifth and final category is comprised of ijtihâd (personal reasoning) by means of qiyâs (analogy)"(ibid.:34). Acrescenta ainda M.Khadduri: "Shafi'í's method of reconciliation, called at-ta`wíl (interpretation), encouraged the acceptance of many a tradition which otherwise would have been in danger of being rejected"(...)"The latter part of the Risâla deals briefly with ijmâ´ (consensus), qiyâs (analogy), ijtihâd (personal reasoning), istihsân (juristic preference) and ikhtilâf (disagreement). Although these are important jurisprudential subjects, Shâfi'í devotes much less space to them thna to the Qur`ân and sunna" (ibid:37).
[17]Fundada por Ahmad b.Hanbal (m.855) e sobretudo integrada por tradicionalistas, defende princípios de não inovação, cingindo-se às fontes da lei mais originais, o Alcorão e a sunna.
[18]Partidários de Jahm Ibn afwân Abú Muri (m.745) e defensores da inexistência de quaisquer atributos divinos, bem como de um determinismo extremo. Para os partidários da Jahmiyya, não cabia ao homem qualquer tipo de comportamento que pudesse contribuir para a sua salvação.
[19]Da Muqadimma, cit. in T.Fahd,1966:50.
[20]Ibid:45.
[21]Reunida por Khatíb al-Bagdâdí, cit. in Goldziher,1952:171.
[22]Por exemplo, nas suras 21,5; 26,223; 69,41-42 e 31,5.
[23]Tradicionalista da primeira geração (m.732), judeu convertido ao Islão, "dépendant de Ka'b al-Ahbâr"(ibid.:67), que é o primeiro "chainon de l'isnâd dans les récits relatifs à l'histoire biblique".
[24]Cit in T.Fahd (1966:67-68).
[25]Tal é a opinião de Mas'údí (ibid.:63); para Ibn Khaldún há uma implicação simétrica: adivinhação é "imperfection du contraire relativement à son contraire parfait" ( ibid.: 45-a revelação profética divina). Na VI Muqaddima, Ibn Khaldún refere, entre outras, as posições dos filósofos e de al-Ghazâlí. Assim, para Ibn Rushd, premonição e profecia situam-se ao mesmo nível, pois Deus conhece os seres tal como são. Por isso, se um profeta ou adivinho conhece por Deus o futuro, é porque a natureza do ser está conforme o próprio conhecimento eterno. Esta revelação pode ter intermediário angélico, ou mesmo outros, caso do sonho e até da epilepsia. Para Maimonedes, seu discípulo, a profecia é emanação divina e expande-se através do intelecto activo; é a manifestação mais alta e nobre da espécie humana. O sonho e a prática premonitória, em geral, constituem um fruto abortivo da profecia revelada por Deus aos homens. Para al-Ghazâlí, embora o seu combate aos filósofos seja conhecido, o que é certo é que, neste ponto, parece haver verificar-se um acordo formal. Para o autor, tudo tem uma causa e, se se conhecerem as causas também se determinarão as, naturamente as suas consequências. A natureza humana, porém, não pode determinar todas as causas, devido às suas limitações. Assim sendo, o acto de adivinhação torna-se possível, já que existe uma precognição divina que o permite. É nesta última condição que o autor difere dos filósofos.
[26]"prophetic signs"(...)"used even for political ends - as can be seen repeatedly under Leo X"(ibid.:12).
[27]A data de limite de 1530, para a época de divinatio popularis, é o próprio objecto do estudo da autora.
[28]In Tratado de la Verdadera y falsa prophecia. Hecho por Don Iuan de Horozco Y Covarrubias. Arcediano de Cuellar en la Santa Yglesia de Segovia, Segovia. Por Iuan de la Cuesta. Año 1588 (no que respeita às citações, ver de J.C.Baroja,1978,37-42).
[29] O autor chega-nos a falar acerca em “realeza sagrada” (1990:181).
[30]Sobre este aspecto, ver M. Herrero Garcia (1966:Cap.1, acerca do auto-conceito de Espanha) e, para o caso Português, ver Monarquia Lusitana (III, Livro 10, Cap.2), onde o carácter predestinado e providencial do primeiro rei de Portugal é teorizado através do seu diálogo com Deus, na batalha de Ourique contra os mouros.
[31]Ephemerides, reeditado em Veneza, no ano de 1522 (O.Niccoli,1990:140).
[32]Sobre Magdalena de la Cruz, ver J.C.Baroja (1978:40, nota 84).
[33]A palavra “segno” exprime, no fim do século XV e no século seguinte, todo o conjunto de alterações - no mundo da natureza e também humano - no que é, então, considerado como o "curso natural das coisas" (O.Niccoli,1990:31).
[34]“...The classical and Ciceronian culture that flourished at the papal court and in the circles around it during the years of Leo X's papacy and the early years of Clement VII favored this habit. Interest in the world of classical antiquity brought with it a renewed fascination with the monstra, prodigia and portenta, a fascination that popular divination, for its part, pursued indefatigably" (O.Niccoli,1990;193).
[35](1955, Vol.VI)
[36]Cit. in J.C.Baroja (1978:37-42).
[37]A obra do Jesuíta Benito Pereira, Adversus astrólogos de Astromantia dirige-se particularmente a Aragão, Valência e Catalunha onde, à data, existiam imensos cultores da astrologia judiciária (J.C.Baroja,1978:237).