Sunday, November 27, 2005

Há dez anos

Foi há dez anos: dia 28/11/1995, às 12.45, na Universidade de Utreque. Um doutoramento que começava assim:
É objecto do presente estudo dar conta do real representado em textos proféticos, enunciados no seio das comunidades moriscas de Aragão, durante o segundo e terceiro quartel do século XVI. O real então vivido pelos moriscos corresponde a um real terminal (no sentido da prefiguraçäo de um fim colectivo), não só de uma comunidade cultural específica, mas sobretudo de toda uma civilização, a islâmica, em terras ibéricas.
Para além de o género profético constituir um "signo dos tempos"[1], enquanto modalidade epistemológica, ele é particularmente adequado a uma tal radiografia, já que, nos seus textos, se espelha o real mais imediato (ainda que sujeito a vaticínios post eventum) e, sobretudo, se projecta, de um modo ideal, os desejos, as obsessões e as ansiedades colectivas de uma comunidade (que os enuncia, num mundo literário ainda liberto, em grande parte, da voz própria e específica de um sujeito que se assuma como autor ou escritor).
A desconstrução semiótica destes textos (no sentido do acesso ao real que, veículado pela enunciação, neles persiste em estrutura profunda) pode, assim, por vias diferentes mas complementares das habituais, contribuir para um enriquecimento do nosso saber sobre a realidade terminal dos moriscos (e, sobretudo, dos que, em Aragão, e dada a não-arabofonia que os caracteriza, iniciam a sua própria morte, de modo lento, antes ainda da expulsão definitiva e legalmente imposta).
Como se refere no intróito metodológico do Cap.V (o capítulo onde se analisa o corpus prescrito), real e representação constituem noções anteriores a todas as outras. No entanto, e tendo em conta um aparelho conceptual onde se complementam a filosofia das formas simbólicas e a construção semiótica textual, situamos o real como um processo complexo que envolve e transcende o homem (W.Iser,1978:68[2]) e a representação, por seu lado, como um conjunto ordenado de interpretantes[3] que, em nós, traduz, através de imagens mentais, esse mesmo processo complexo e envolvente (e que, por sua vez se re-traduz ou comunica para o exterior, por via das capacidades discursivas humanas, incluindo a textual).
Os anónimos enunciadores dos textos aqui analisados, e que constituem a expressão de uma voz e de um querer colectivos, são moriscos aragoneses. Consideram-se moriscos os descendentes dos mudéjares ibéricos, ou seja, das comunidades islâmicas que, mediante capitulações diversas, permaneceram na Península já cristã, e no seio das suas mourarias, após as várias vagas de reconquista conhecidas. Os moriscos, nesse sentido, designarão essas mesmas comunidades, mas instituindo-se, enquanto tal, a partir do momento histórico em que as conversões e os baptismos obrigatórios se tornaram um facto. Tal viria a ocorrer em Granada em 1501, em Castela no ano seguinte e, por fim, em Aragão, apenas depois de Dezembro de 1525.
A maior comunidade não arabófona de moriscos ibéricos é precisamente a aragonesa (cerca de 20% da população total de Aragão). Tendo perdido a língua mãe, o Árabe, ao nível da sua forma dominante de expressão, os moriscos aragoneses passaram a articular o código grafemático árabe (que souberam, mesmo assim, preservar) com um vernáculo românico, no que constitui um entre vários outros sintomas da sua própria hibridez cultural. Esse processo textual (e inter-semiótico) de comunicação é tecnicamente designado por aljamia.
Para além de toda a geneologia ritual (ligada à ortopráxis diária) que os moriscos aragoneses tentarão manter, num mundo que lhes é progressivamente hostil, a denominada literatura aljamiada acabará por converter-se num dos seus marcos identitários (apesar de esta literatura, sobretudo ao nível da ambiguidade com que se codifica, acabar igualmente por espelhar a degenerescência e a errância - mesmo intelectual - dos seus enunciadores, dramaticamente colocados entre dois mundos: um mundo ascendente, o islâmico, com o qual perdem inexoravelmente a ligação e, por outro lado, um mundo descendente, o cristão, ao qual se manterão insistentemente, e até ao fim, inassimiláveis). Mesmo assim, a comunidade morisca de Aragão é, em toda a Península Ibérica, de longe, a mais relevante na produção desta literatura aljamiada que, por ser clandestina, na época, se viria a transformar, a partir do século XIX, numa súbita arqueologia delicada e fascinante.

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O estádio morisco é, em suma, o epílogo (mais ou menos breve) da longa presença islâmica na Península ibérica. É essa a expressão mais profunda do seu significado: o consumar de nove séculos de história. A expulsão definitiva dos moriscos viria a consumar-se em 1609, quando a lógica da política externa dos Filipes tornou possível a depuração interna tão desejada e profeticamente anunciada (e reiterada) pelos adivinhos da corte daqueles (como, curiosamente, segundo tradições islâmicas, a invasäo de Târiq b. Ziyâd havia também já sido objecto de uma premonição onírica[4]). É que a história da alteridade islamo-cristã, em terras ibéricas, tem grandes tradições no campo do Divinatio. Acrescente-se que essas mesmas tradições não viriam, igualmente, a ser imunes ao próprio drama morisco, naquilo que foi o seu confronto último com o poder cristão, ao longo de três a quatro gerações.
Mas se o drama morisco tem o significado histórico que tem, aparentemente limitado ao termo de um legado civilizacional em terras ibéricas, ele não pode, no entanto, ser observado fora de contextos mais vastos. F.Braudel, nas conclusões à sua obra sobre o Mediterrâneo, refere que o século XVI (e parte do século seguinte) se liga, inevitavelmente, às "múltiplas decadências em cadeia da Turquia, do Islão, da Itália, da primazia ibérica" (1984-II:621). Ou seja, enquanto mundos novos florescem em continentes agora redescobertos e, por outro lado, enquanto a primazia europeia se desloca para norte, é o Mediterrâneo (nas suas duas margens) que agora inicia uma agonia lenta, explicada, por uns, através da lógica cíclica do Verfall ou, como Braudel prefere, através de uma pluralidade de modelos a sistematizar (ibid:621). Nesta óptica, o caso morisco não é um caso radicalmente distinto do espanhol ou do português ou do otomano, ou seja - e mantendo as devidas diferenças -, embora todos estes casos estejam ligados a modelos históricos específicos, pertencem, igualmente todos, a um mesmo comungado sentido de mutação histórica global.
Por um lado, a reflexão precedente recontextualiza o objecto que nos propomos atingir neste estudo, na medida em que o real terminal dos moriscos partilha, metonimicamente, de todo o real ibérico mais geral. Por outro lado há que, inevitavelmente, ter também em consideração a própria lógica específica de colisão civilizacional entre a maioria cristã e os moriscos. Essa lógica é, aparentemente, diferente das que se teceram, durante séculos de convivência, entre o Islão e os moçárabes ou, mais tarde, entre cristãos e mudéjares (com as excepções de períodos dos reinos Taifas, dos episódios imoladores de Eulogio e Paulo Alvaro, etc...). No entanto, o drama morisco pode ser interpretado como o consumar final de uma irredutibilidade primeira e profunda, caracterizada por que M. Hagerty como oriunda de "sentimentos nascidos da escatologia" (1978:278). No fundo, a própria ideia de fins últimos constituirá, na época, a razão de ser mais vital da existência; é, pois, da salvação, irredutível e insubstituível em cada um dos campos, que depende a natureza da alteridade dos homens neste mundo terreno. Por isso, poder-se-á dizer que esta ruptura final, ligada ao próprio lexema morisco, se constitui como uma espécie de metáfora histórica decisiva para os nove séculos de convivência islamo-cristã. Ou seja, uma tal ruptura, latente e potencial, sempre existiu desde o alvor de Taríq ; adquire, contudo, agora, com os moriscos, uma forma concreta, visível, de fragilidade absoluta, e, por isso mesmo, recolocada subitamente à superfície, se transforma em fenómeno histórico singular e claramente denotativo.
Neste mundo pré-científico, a escatologia regula (ainda) todo o destino e o devir humanos, ordena o sentido do tempo e das realizações do homem na terra e, por isso, faz da profecia um mecanismo por excelência do saber (sobre o futuro e, virtualmente, sobre o querer da própria Divindade). Mais tarde, no mesmo século da expulsão dos moriscos, a racionalidade começará a impôr-se e a delinear-se. Afastando-se da Divindade, a ocidente, os homens irão lentamente transformar as utopias em sucessoras da escatologia. Abandonado o saber revelatório, é a axiomática objectiva da ciência que passará a presidir ao grande inquérito da natureza (pelo menos, à superfície). Curioso é, todavia, que os mesmos mitos (entendidos como a manifestação dramatúrgica das origens, ou dos arquétipos originais) continuem, em ambos os tempos, a postular obsessões similares ao homem, nomeadamente as que se referem ao fim dos tempos. A finitude, interrogada sob um pano de fundo escatológico ou ideológico, ontem ou hoje, continua a ser o enigmático fechamento que as origens (veículadas pelos mitos e também pelos símbolos) projectam sobre a humanidade.
É esta mesma questão que, conclusivamente, surgirá neste estudo, transposta, no entanto, para um espaço e para um tempo concretos. Por outras palavras, tentaremos responder, ao longo das próximas páginas, à seguinte questão (de acordo com a nossa análise sobre a representação do real, vivido e pressentido pelos moriscos): - Que visão tem uma comunidade, na História (como a dos moriscos), da sua identidade e da sua existência (enquanto relação com o tempo), quando confrontada com a prefiguração, senão a certeza de um fim?


2- Método.


Uma análise semiótica terá sempre como objecto a anatomia de uma ou várias linguagens, veiculadas por um enunciado, e tendo como corolário o facto de o(s) sentido(s) aí produzido(s) procederem de um dispositivo interno a essa mesmo enunciado, que, por fim, se pretenderá situar e explicar. Por outras palavras, cabe à análise semiótica determinar as condições internas de produção de sentido(s), num dado enunciado, neste caso textual (porque basicamente composto por signos linguísticos). Esta incursão ao dispositivo, a partir do qual todo o texto irradia e ganha corpo (M.Riffaterre,1982:97) será, no caso vertente, associada às formas simbólicas, igualmente presentes no texto. A função dessas formas simbólicas é unir o imaginário naqueles representado com os signos linguísticos que os compõem (segundo uma metodologoia de E.Cassirer). Entende-se, neste quadro, por imaginário, a representação primeira que os enunciadores do texto tiveram do real e que, fragmentária e (in)voluntariamente, fizeram entrar no texto, através da organização discursiva, aí persistindo em estrutura de fundo - dispersa e latente - entre a rede de signos linguísticos (que integram e materializam o texto em causa).
A procura do real é, assim, num primeiro momento, a anatomia do próprio texto (a procura das estruturas internas que o constituem); em segundo lugar, a localização de uma ou várias matrizes (o dispositivo interno), a partir de onde todo o texto e os seus sentidos irradiam (sendo uma dessas matrizes, segundo M.Riffaterre, de natureza simbólica - ibid.:97); em terceiro lugar, a reconstrução do real, antes incrustado no texto de modo fragmentário - no momento da sua enunciação -, e, aí, arrumado no seio das formas simbólicas presentes (mas anteriores ao próprio texto, de natureza extra-linguística).
Este (ou outro) tipo de pesquisa da área semiótica, recorrente nos últimos anos, não é comum às literaturas aljamiadas. Além de alguns esparsos artigos[5], directa ou indirectamente sustentados em metodologias semióticas, o campo destas literaturas tem sido sujeito, de modo dominante, a tratamentos de índole linguística (transliteração, tradução e análise das formações linguísticas), literária (temática e interpretativa), histórica (relacionada, também, com as mentalidades), sociológica (muitas vezes articulada com uma abordagem relativa à alteridade islamo-cristã) e religiosa (pondo em função questões culturais ou ligadas ao ensimesmamento do dogma[6]). Tem sido, de facto, grande, neste quadro, o desenvolvimento do estudo das literaturas aljamiadas nos últimos anos. L.Cardaillac (1977:388-90), autor de um dos estudos fundamentais sobre as interacções entre moriscos e cristãos, refere, nesse sentido, e citando Domínguez Ortiz, que os moriscos não têm propriamente história, já que a noção de História pressupõe a existência de "um grupo humano em evolução"; daí que o problema morisco, para além do método histórico, exija inevitavelmente outros complementares e, entre eles, como refere o autor, o sociológico. O nosso tratamento de prospecção semiótico-textual, nesse contexto, poderá, por seu lado, contribuir para situar ainda outras e novas modalidades de representação do real que, eventualmente, venham a enriquecer a "moriscologia" (M. de Epalza, 1983:32). Um facto próximo que nos entusiasmou para o presente estudo decorreu de uma análise próxima da que aqui propomos, mas aplicada ao conto medieval ibérico (português). Também aí uma voz colectiva enuncia textos fragmentários que evocam um dado real que o autor, no caso concreto Nuno Júdice (1991), semiologicamente transpõe e descreve. No nosso caso, há outros aliciantes a ponderar: o estado terminal da comunidade que os enuncia, a vocação representativa do género profético, a própria realidade da aljamia (a hibridez cultural) e a carência de estudos semióticos no campo da moriscologia.
É também evidente que a semiótica se caracteriza como sendo um campo interdisciplinar de investigação. Como refere C.Teodoro Pais, "a riqueza e a complexidade do seu objecto impõem a interdisciplinaridade, antes de tudo, como uma atitude de prudência" (s/d:131). É por isso que, além de articularmos a teorização da simbólica de E.Cassirer com uma interpretação flexível das metodologias semiológicas de M.Riffaterre ou ainda do Groupe d'Entrevernes (mas não entrando nos campos lógicos da gramática do texto), recusamos a imanência textual e recorreremos, com o cuidado e as limitações contextuais requeridas, a outras áreas do saber, tais como a história, a teoria literária (teoria hermenêutica e a questão téorica dos géneros), a teologia, a filosofia escritural islâmica, o kalâm (no estudo da modalização do género profético e no contraste entre os mundos islâmico e cristão), e, por fim, a própria moriscologia (referindo-nos às temáticas e formas dominantes nessa literatura). Estas áreas, complementares, fornecer-nos-ão o material dos capítulos contextuais, bem como nos emprestarão informações suplementares para a determinação do real representado no corpus e, nomeadamente, o(s) momento(s) do real histórico em que este terá sido enunciado.

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A razão de escolha do corpus, que, no final deste trabalho, sujeitamos a análise, deve-se às questões previamente descritas. Por outras palavras: verificados os aliciantes que acima referimos e que determinam a pertinência de uma análise semiótica - fundada na representaçäo do real (vivido ou imaginado pelos moriscos) e filtrado por textos de natureza profética (já que projectam relações vitais entre o ser e o tempo) - procedemos, depois, a uma procura de textos do género que assumissem relevância e, portanto, representatividade.
Uma primeira característica dos textos aljamiados é o seu carácter miscelâneo. Grande parte dos manuscritos da literatura aljamiada integra, deste modo, amálgamas fragmentárias de diferentes naturezas temáticas (notas sobre heranças, lendas maravilhosas, instruções ligadas à prática de dissimulação ritual, a taqiyya; sumários religiosos, catecismos, traduções parciais do Alcorão, descodificação de preceitos árabes, admoestações, tradições, curas mágicas e também profecias). São exemplos destes verdadeiros corpus antológicos, onde parece querer traduzir-se desesperadamente toda uma cultura condenada, o Manuscrito nº3 da Junta[7] (pertencente ao Instituto de Filología del CSIC, Madrid - Manuscritos árabes de la Junta- R.Kontzi,1974), o Manuscrito 4953 da Biblioteca Nacional de Madrid[8] (O.Hegyi,1981) e o Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris[9] (M.Sánchez Alvarez,1982). Este intuito antológico-miscelâneo é, muitas vezes, assumido pelo próprio copista, ou autor morisco, como dá conta C.López Morillas na sua análise a uma tradução da Fâtiha, no Ms.5252 BNM: "...había declarado el tratadista morisco que su obra sería una complicación de datos sacados de varios textos". A literatura aljamiada, encerra, em suma, no seu seio, intertextualides congénitas - à imagem dos seus próprios enunciadores, também eles produtos culturais miscelâneos e híbridos.
Num destes Manuscritos de cariz antológico, acabámos por encontrar aquilo que viria a constituir-se como o corpus desta investigação. É evidente que, na ausência de uma obra compiladora de textos proféticos moriscos - completa, unida, e consistente - foi no entrecruzar miscelâneo dos Manuscritos que tentámos encontrar a produção profética adequada à nossa própria análise. De facto, no Ms. BNP 774, viríamos a encontrar um conjunto de quatro profecias, delimitando um espaço genérico autónomo e, decerto, enunciado com uma intencionalidade específica, evidenciada pela sintaxe e pelas articulações intertextuais isotópicas e simbólicas existentes entre esses quatro textos proféticos, como veremos no Capítulo V. Intencionalidade na arrumação e disposição dessas profecias; intencionalidade (do único copista) do manuscrito[10], ao seleccionar, entre essas profecias, perspectivas enunciadoras diferentes (uma delas de clara orientação cristã); intencionalidade, ao reunirem-se nestas profecias características gerais do próprio género (o que as distingue dos restantes textos do Ms.774 BNP) que, por sua vez, se transacionam entre si, numa meada coerente que não é imune a significados profundos (sobretudo de natureza simbólica). Tendo aprofundado e sistematizado estas implicações de ordem formal, à luz do aparelho conceptual que desenvolvemos, numa primeira fase, viríamos, seguidamente, a confirmar a pertinência do corpus como susceptível de representar facetas do real morisco metonimicamente relevantes (a partir da parte prefigurando, por contiguidade, a ideia de um todo caracterizável e descritível).
O espaço genérico destas quatro profecias foi, deste modo, por nós seleccionado como um enunciado-fragmento à parte, no quadro do Ms. BNP 774. Dotado de uma mensagem própria, veiculando marcas de uma linguagem específica (a nível discursivo e actancial) - e que procedem do próprio género -, constituindo-se, enfim, como um só enunciado, susceptível de ser semioticamente decomposto e analisado.
A delimitação de um corpus fragmentário não é, contudo, um problema original. Nesse sentido, tentámos enveredar por uma perspectiva que, embora requeira um suporte teórico autónomo, não deixasse, também, de encontrar relações homológicas com outras pesquisas de índole semiótica. Um exemplo-chave deste tipo de escolhas encontra-se numa análise do Groupe d'Entrevernes (1977) a alguns textos evangélicos. Na breve exposição metodológica inicial refere-se, a este propósito: "Les fragments choisis ne l'ont pas été au hasard. Nous avons retenu des paraboles et des récits de miracles parce que le problème de la signification s'y pose dans toute son acuité" (ibid.:11). O mesmo processo seguimos, ao recortar o Ms.774 tendo como critério fundamental um género determinado, no caso concreto - o profético (como ocorrera, no caso do Groupe d'Entrevernes com as parábolas e os milagres - definidos como “géneros” autónomos no estudo em questão). A acuidade da significação decorre, por seu lado, no caso do nosso estudo - onde o objecto é a representação do real num estado civilizacional terminal - da presença do próprio género profético (voltaremos a esse facto). Outro exemplo é o do estudo já referido de Nuno Júdice, sobre o espaço do conto no texto medieval (1991), onde o recorte fragmentário do corpus assenta no "cânone de narrativa curta, a que se poderá chamar conto" (ibid.:11).
Em todos estes casos estamos, embora de modos diferentes, no quadro do que G.Genette caracterizou como sendo os arquitextos genéricos (1982:14-15), ou seja "une classe de textes qui englobe entièrement certains genres canoniques (quoique mineurs) (...) et qui traverse d'autres - probablement tous les autres". Arquitextos genéricos são, portanto, e por outras palavras, unidades textuais que, apesar de integrarem enunciações mais vastas e diferenciadas (ainda que miscelâneas), possuem aptidões e marcas genéricas específicas que lhes garantem uma autonomia, ou melhor, uma unidade específica. E é esta unidade, própria do arquitexto genérico, que possibilita (teoricamente) que aquilo que (formalmente) se apresenta como um fragmento, possa, ao mesmo tempo, constituir-se como um todo e, portanto, como um corpus independente. Roland Barthes, no seu S/Z (1970:18), justifica a segmentação do corpus, a que recorre, de modo ainda mais abrangente, já que, para o autor, o critério deverá assentar numa arbitrariedade em relação ao significante, pelo facto de a análise proposta se efectuar "unicamente (ou em última análise) sobre o significado". No nosso caso, é também na estrutura profunda do corpus profético (ao nível do que M.Riffaterre designa por significância) que tentaremos encontrar o resíduo do real (ou o imaginário), transposto para o texto através da (e durante a) enunciação.
Mas a representatividade do corpus, no nosso caso, procede, não tanto da legitimação da sua natureza fragmentária - prática semioticamente corrente e sustentada sob ponto de vista teórico -, mas mais do género que o enforma. Dissémos, mesmo, atrás, que a escolha do nosso corpus decorreu de uma prospecção prévia, onde acabámos por confirmar a sua pertinência para representar facetas do real morisco metonimicamente relevantes. Esta relevância particular está, no caso do nosso corpus, naturalmente ligado ao género profético e à sua acuidade significativa (retomando a expressão do Groupe d'Entrevernes). Para melhor clarificar este aspecto, devemos responder à seguinte pergunta: qual é a vocação do género profético para representar o real de uma comunidade em estado terminal (podendo, a partir da sua singularidade, enquanto género, espelhar a situação mais geral da comunidade que o enuncia) ?
Dividiremos a nossa resposta em nove pontos distintos:

a) O género profético e a escatologia sempre se articularam, estabelecendo pontes entre a primeira fase do fim dos tempos, a História presente e a História imediatamente futura. Nestas relações pode descodificar-se a visão real que os enunciadores proféticos têm do (seu) presente e das ansiedades ou esperanças com que encaram o futuro (Cf.Cap.V.1).
b) O género espelha, amiúde, a falta de domínio dos seus enunciadores sobre o próprio curso do tempo e, igualmente, o desejo (colectivo) de o dominar e dirigir. Este tipo de relações, existentes entre uma comunidade e o próprio curso do tempo (e o devir), poderão traduzir o real em que aquela referencia a sua própria existência (na História).
c) O género profético, para além de um género literário (ou arquitexto genérico), insere-se e é matriz de toda uma cultura, que O.Niccoli designou por Divinatio popularis (1990:13). O século XVI ibérico, na continuidade de um longo processo de florescimento do género - Cf. Cap.II) é particularmente permeável a esta cultura do profético. Neste âmbito, o profético é também um saber, através do qual, é possível interpretar o próprio devir humano - mediado pelas manifestações da natureza (também humana) - onde se revê o discurso da Divindade (o emissor surpremo). As relações entre homem-comunidade (destinatário), os signos da natureza e o seu emissor (a Divindade) dar-nos-ão informações acrescidads sobre o real (das crenças, das perspetivas de salvação, etc...) representado no nosso corpus.
d) O género profético é objecto de dialogismo entre comunidades distintas, nomeadamente cristãs e islâmicas, no momento histórico em questão. Deste modo, as profecias moriscas e cristãs coexistem e disputam actantes e designadores simbólicos comuns, caso do Encoberto valenciano que surge, com intencionalidades distintas, em profecias de ambos os campos e também em Portugal (cF.Cap.V.3.3.1.1). A visão do outro é o aspecto funcional que, neste caso, nos é útil para melhor delimitarmos um real dos moriscos enunciadores das profecias do Ms.BNP.774 (cf. corpus).
e) O género profético espelha a curiosidade humana perante o plano de salvação da Divindade, por natureza secreto, não no seu anúncio (revelação), mas no seu cronograma último. Os argumentos ao serviço desta curiosidade humana (Cf.Cap.IV.3.2) podem traduzir visões do mundo de quem os enuncia em textos de natureza profética.
f) Os textos proféticos são, igualmente, veículos privilegiados de propaganda, convertendo-se, portanto, em autênticas armas de guerra, no período em causa. Tal é um facto no quadro das guerras religiosas que assolam a Europa, no séc.XVI. Como refere Luis de Mármol Carvajal[11], o papel das profecias moriscas não foge a esses desígnios já que, por exemplo, foi importante na preparação da própria guerra de Alpujarras (sendo levadas a sério e tendo grande eficácia na mobilizaçäo e empenho moriscos). Neste quadro, poderemos penetrar melhor noutras facetas do real morisco, nomeadamente a sua consciência de campo, a sua noção (prática) de alteridade e a sua motivação de resistência.
g) Como toda a narrativa, o género profético decorre da representação da ordenação diacrónica do tempo e das ocorrências nele situadas (e descritas). Por outro lado, e é essa a sua espeficidade, o género profético disputa, simultaneamente, o próprio sentido do tempo e das ocorrências, chegando a manipulá-las post eventum. Esta manipulação do sentido do tempo (e da História) corresponde sempre a desejos e ansiedades reais de quem os enuncia (e constitui um abundante mapa de signos dos textos proféticos
h) Nos textos proféticos, a transgressão da narrativa baseia-se, não apenas na historização do ainda-não, mas também na simulação da história passada, onde tudo, de facto, adquire um fundamento primeiro, ainda que forjado. Tal característica adicional do profético (ligada à anterior) situa os parâmetros (ou as referências), a partir de onde os enuncidadores de profecias pretendem construir um passado e um futuro, ao sabor das suas carências ou desesperos contingentes e presentes. Deste modo, o real do presente revê-se (ainda que em diagonal) nas outras temporalidades forjadas ou ficcionadas.
i) Para concluir, e segundo G. Genette (1972:226), embora transgrida a narrativa (remetendo para o futuro, para a escatologia, ao contrário dos mitos que remetem para as origens, para as cosmogenias), todo o "récit préditif" é impar devido à autonomia com que representa a categoria do tempo. Ou seja, embora enunciado no tempo (verbal) futuro, o que o género profético representa - melhor do que nenhum outro - são as condições vitais e sujectivas do presente (geralmente instável e irrespondível), onde o seu texto particular é produzido (Cf.Cap.VI.2.2). Tal facto é determinante para sondar o real de uma comunidade em estado terminal, quando esta traduz, em literatutra do género profético, as suas últimas memórias.

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O manuscrito, onde se integra o nosso corpus, havia já sido referido e catalogado por E. Saavedra Y Moragas (1878:143-4) nos Discursos leídos ante la Real Academia Española el 29 de diciembre de 1878[12]. Posteriormente, os textos particulares do nosso corpus foram publicados por J.Lincoln, sob o título Aljamiado Prophecies em Publications of the Modern Language Association (1937)[13]. Em 1980, L.López Baralt publicou dois estimulantes artigos sobre as profecias do nosso corpus, numa perspectiva de determinação do momento histórico da sua enunciação e, no caso da última das profecias (1980-1), centrando a sua análise numa configuração discursiva aí presente: o ideal paradisíaco das terras ibéricas. Nesses artigos, acoplou a autora à sua análise uma nova transliteração das profecias. Por fim, já em 1982, publica-se integralmente o texto aljamiado do Manuscrito 774 BNP[14], incluindo-se-lhe, naturalmente, os textos do nosso corpus. Esta publicação é acompanhada de um sistemático estudo linguístico do manuscrito, investigação da autoria de M. Sánchez Alvarez, no que constitui "uma versão" da tese de Doutoramento da autora (orientado pelo Prof. A.Galmés de Fuentes). No seu preâmbulo, refere M.Sánchez Alvarez: "El manuscrito objeto del presente estudio fue registrado en el Catálogo de Ochoa con el número 3. Su signatura corresponde al Ms. 290 de Saint Germain des Prés y actualmente pertenence a la Bibioteca Nacional de París, Ms.774" (ibid.:9).
Não sendo o nosso trabalho de prospecção da matéria dos manuscritos originais, nem tão pouco de incidência linguística, decidimos trabalhar, de modo sistemático, a partir do texto estabelecido por M.Sánchez Alvarez (situando-se, aí, o nosso corpus, entre os fols. 278r e 308v). Porque o código grafemático dos textos em causa apenas nos interessa como um sintoma da hibridez dos seus enunciadores (uma das suas realidades, assim representada), o corpus estabelecido e transliterado por M.Sánchez Alvarez confere-nos, pois, toda a funcionalidade para a análise semiótica que nos propomos levar a cabo. O nosso objecto prende-se, já o vimos, com a dissecação da mensagem profética e com a determinação das matrizes que lhe geram os sentidos e onde, por outro lado, se deposita o (vestígio do) real dos seus enunciadores. O que não significa que os decalques semânticos e sintácticos ou os próprios arabismos não se incorporem, enquanto signos, nos caminhos da nossa análise. Mas tal não invalida que o texto fixado por M.Sánchez Alvarez, com caracteres latinos (embora com sinaléticas adicionais que remetem para o registo do aljamiado), não cumpra todos os requisitos para o objecto específico que determinámos para este trabalho.

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Passamos de seguida a descrever as vias metodológicas que percorreremos, ao longo do presente trabalho. Nele, a sintaxe dos capítulos obedece a um esquema simples: numa primeira metade do trabalho (Capítulos II, III e IV) organizámos o contexto que achámos necessário para preparar a análise propriamente dita; numa segunda parte (Capítulo V) procederemos, então, a análise em si. Finalmente, nas conclusões, recuperaremos todo o material anteriormente aflorado, para sistematizar os conteúdos proposto pelo nosso objecto.
No campo dos capítulos contextuais, dedicaremos o Capítulo II a uma breve descrição da evolução do género literário profético. Iniciaremos pela tradição profética hebraica (apenas referindo, lateralmente a Eloísta e a Deuteronomista) e veremos, de seguida, como, após o período exílico, as características do género se adensam e renovam. Integraremos, depois, a fase dos Apocalipses hebraicos (a partir do séc.II A.C.) onde surgem novos modelos literários que enriquecerão a tradição anterior do género. Nesse contexto, referir-nos-emos, também, aos textos de Daniel. Passaremos, ainda, revista à renovação do género, empreendido pela revelação cristã e, suncintamente, ao longo da sua história, antes e depois de Joaquim de Flora (até ao séc. XVI). O mesmo faremos em relação ao mundo islâmico onde, brevemente, tentaremos ilustrar as inovações do profético trazidas pela revelação corânica. Situaremos, depois, e em linhas muito gerais, as marcas específicas que o género adquirirá em meio islâmico. Este traçado contextual é importante para clarificar a compreensão das linhas gerais identificadoras do género profético, no século XVI. Toda a história anterior, proveniente da tradição judaico-cristã-muçulmana, integra os ingredientes de que o mundo ibérico, de que nos ocupamos, será destinatário (é por isso que, por outro lado, optámos em não incluir outras tradições proféticas nesta descrição). A bibliografia seguida é, na sua maior parte, secundária - de acordo com o traçado sintético e contextual que se pretende para este capítulo. Por outro lado, seguimos, neste capítulo, como eixo central de desenvolvimento, uma teoria da modalização do género (onde ligamos suportes teóricos de G.Genette-1982, T.Todorov-1979-1 e A.Fowler-1982). Este mesma orientação foi, recentemente, e de modo global, aplicada numa tese de Doutoramento, no caso sobre o género épico (A.Leite-1988).
Neste capítulo II, apreendemos, em suma, os atributos que integram, em termos gerais, o género profético até ao séc. XVI (de acordo com uma visão retrospectiva da sua evolução histórica). No capítulo III, por seu lado, tentaremos provar que a literatura de profecias se enquadra, na época, no horizonte de expectativas do leitor (ou auditório) morisco. Por outras palavras, trata-se, agora, de demonstrar que o profético é um género familiar, praticado e exequível, para além de reconhecível e conhecido. Seguimos, para esse fim, basicamente, como suporte operatório, a teoria da recepção de Hans Robert Jauss. Neste contexto, para que uma obra (ou um género determinado) se integre no horizonte de expectativas de uma época e meio, é necessário apurar: (a) o conhecimento que, na respectiva comunidade, existe das formas e temáticas literárias dominantes; (b) a oposição existente entre mundo imaginário e a realidade quotidiana (H.Jauss,1978:49; 1988:430). Passamos revista, neste capítulo, a esses quatro factores, ou seja, às temáticas da literatura aljamiada, às formas que lhe são inerentes, para, de seguida, procedermos a uma breve descrição histórica do quotidiano morisco (traçando linhas de fundo) e a um apuramento (através de interpretação de textos aljamiados e de factos históricos contextuais) das expectativas de futuro dos moriscos. Esta breve reposição dos quatro factores hermenêuticos levar-nos-á, no final, a concluir sobre a pertinência de um género como o profético, entre os moriscos (nosso único objecto neste capítulo). A bibliografia seguida basear-se-á em textos antológicos aljamiados referenciados (com uma ou outra excepção), já que o intuito desta prospecção hermenêutica é essencialmente contextual.
Finalmente, no Cap.IV, o último dos capítulos contextuais, analisaremos as condicionantes que se põem à prática do profético e, por outro lado, os factores que legitimam a sua persistência. Em primeiro lugar, veremos como é que a codificação imprimida pelas escatologias cristã e islâmica condiciona (ou não) a prática do profético. Em segundo lugar, definiremos o âmbito da noção de ortodoxia em ambos os universos, o cristão e o islâmico, e tentaremos descortinar como é que, uma e outra, condicionam a prática do profético. Dada a natureza morisca de minoria, analisaremos a noção islâmica de ortodoxia como um conjunto de prescrições (que delimitaremos), herdadas ou interiorizadas pelos próprios moriscos, no quotidiano ibérico do séc. XVI. No caso cristão, cingir-nos-emos às codificações (às regras) mais ou menos rígidas que regulam a prática profética, no tempo. Depois da análise da modalização do género (Cap.II), da verificação da sua pertinência na época e meio, de que nos ocupamos (Cap.III), acabamos, aqui, os capítulos contextuais, traçando um quadro geral das condicionantes que se interpõem à prática do profético.

O aparelho conceptual que rege o tratamento semiótico do nosso corpus, já resumido no início desta secção, encontra-se, por motivo de funcionalidade da própria análise, detalhadamente explicitado na Introdução que configuramos no início do próprio Cap.V (de 1 a 1.3).


3- Contribuição.


Embora exterior ao campo de estudos específicos da moriscologia, esta abordagem acaba por nele confluir. Já atrás, a este propósito, referimos a necessidade de novas vias de prospecção, para que melhor se possa aceder ao real terminal dos próprios moriscos. No caso concreto do nosso corpus, (ou do seu género) queríamos salientar, contudo, que a predisposição para o seu estudo aprofundado e continuado procede, também, de autores intimamente ligados às literatura aljamiado-morisca e, portanto, à moriscologia.
Incidindo no Manuscrito BNP 774, A.Vespertino Rodríguez considera-o "una especie de biblioteca de lo que debería ser una biblioteca morisca" e crê que a ediçäo de 1982 (de M.Sánchez Alvarez, acima referida) "ha puesto al alcance de los especialistas una importante documentación en torno de los estudios aljamiados" (1985:581-4). L.López Baralt, autora já citada de artigos sobre os textos do nosso corpus, refere que estamos perante textos "parmi les plus beaux et les plus authentiquement émouvants de tous ceux qui soudèrent les morisques du XVIe siècle" (1980-1:201) - enquanto M.Fierro os considera como “l´une des plus importantes collections e traditions eschatologiques”(1994:54). L.López Baralt avança, num outro artigo acerca da tradição de cariz manipulador do futuro (de que as profecias aljamiadas em questão são arquétipo), o seguinte: "...il s'agit d'une tradition dont la complexité mériterait en étude à part entière" (1980-2:68-9). L.Cardaillac, por seu lado, na conclusão da sua obra sobre os conteúdos da polémica morisco-cristã (onde insere, numa secção do capítulo inicial, uma parte sobre o papel das profecias) refere-se, do seguinte modo, à relevância do profético: "Ces manuscrits méritraient d'être étudiés: ils sont l'expression d'une communauté et de ses problèmes" (1977:389). Embora, de maneira nenhuma reivindicando a efectivação dos estudos suscitados por estes autores, pensamos que a presente abordagem, decerto limitada, se poderá inserir, mesmo assim, no quadro de contribuição suplementar por eles sugerida.
O segundo nível de contribuição desta abordagem (teórica e já não tanto do âmbito da moriscologia), diz respeito ao que designaríamos por desafio do real. Ou seja: na procura de um aparelho conceptual que, partindo de pressupostos semióticos,onde se pudessem, mesmo assim, estabelecer ligações de facto entre aquilo que é um texto e a realidade exterior (a que este se referirá ou no seio da qual terá sido enunciado). Para a semiótica de C. Peirce, o real decorre de representações sucessivas (os chamados representamen), nunca se atingido, neste percurso ilimitado, o exterior (ou seja, o próprio real)[15]. No caso da semiologia saussureana, não se pode afirmar, por razões diferentes, que também se prescreva uma ligação factual entre a linguagem e o real (a que ela se refere), porque a relação entre significante e significado é, segundo o autor, interior e inerente ao próprio signo (acabando este por ser devedor de uma visão puramente mentalista). Embora, para M.Riffaterre, esta relação entre um qualquer texto e o real decorra de uma ilusão (referencial), o facto é que, através do seu princípio do "double parcours", o autor acaba por assumir que todo o texto "est perçu comme variation sur une structure thématique, symbolique ou autre, et c'est cela qui constitui la signifiance" (1982:97).
Ao situar esta estrutura (também) simbólica, M.Rifaterre permitiu-nos ligar a construção semiótica do texto com algo "que pré-existe" aos próprios enunciados linguísticos: o símbolo (J.Kristeva,1969:117). Se, como refere A.Kremer-Marietti (1982:163-4), "c'est en nous que nous trouvons le Symbolisme, sur lequel le principe de réalité se strucuture", também, no seio dos enunciados linguísticos, as formas simbólicas são igualmente garantes da unidade com que representamos (em nós) o real exterior. Ou seja, os símbolos estabelecem a ponte entre a "consciência total" (E.Cassirer,1982:54) de um enunciador e os signos (neste caso linguísticos) que enformam a mensagem contingente por aquele produzida. É aqui que reside o desafio do real, desta nossa abordagem: compatibilizar este papel particular dos símbolos (que nos levam à realidade exterior ao texto, isto é, à "consciência total" do seu enunciador) com o papel que, segundo M.Riffaterre, os símbolos desempenham (enquanto matrizes, a partir de onde todo um texto irradia, ou se constrói). Esta compatibilização está no centro do nosso aparelho conceptual de análise (Cf.capítulo V.1) e pressupõe, entre outras variantes da nossa pesquisa, a identificação e interpretação (ainda que, muitas vezes, necessariamente subjectiva) da sintaxe das formas simbólicas existentes no nosso corpus (e, decerto, muitas vezes involuntariamente neste transpostas pelos seus enunciadores).
O último nível de contribuição, que queremos referir nesta Introdução, diz respeito à ordenação (ou categorização) do conteúdo concreto do real que iremos pesquisar neste trabalho. Articulando o aparelho conceptual da nossa análise com o texto profético enunciado pelos moriscos aragoneses, propomo-nos desvendar diversas facetas do real, vividas (interior ou exteriormente) por estes. Mas cumpre-nos, metodologicamente, definir orientações quanto a esse real, sob pena de incorrermos em ambiguidades. Assim sendo, encaminharemos a nossa pesquisa - sobretudo na organização das nossas conclusões finais - no sentido de darmos conta de três dimensões distintas do real (representado nas profecias do Ms.774 BNP):

a) a primeira prende-se com a identidade dos moriscos enunciadores (tentando responder à seguinte questão: o que nos define como ser colectivo, como comunidade ?);
b) a segunda diz respeito à questão da existência (tentando responder à seguinte questão: que relaçäo existe entre o nosso ser colectivo - a nossa comunidade - e o tempo? - perduraremos no tempo ou, pelo contrário, vivemos já o nosso fim dos tempos?);
c) a terceira dimensão do real, a pesquisar, põe a interrogação mais profunda de uma comunidade em estado terminal: onde encontrar respostas para as questões anteriores, relativas ao ser e à existência ? - Por outras palavras: como é que, olhando para o mundo exterior - como entidade significante -, poderemos encontrar o significado que nos permita atribuir sentido, quer à nossa identidade, quer à nossa própria existência (enquanto comunidade e, também, enquanto parte de uma civilização mais geral) ?

Esta última questão, sobretudo, põe um problema de natureza ontológica - talvez o mais profundo e decisivo de toda a questão morisca. Estamos, nesse sentido, perante um ser (neste caso, um ser colectivo) que se interroga acerca do desfasamento entre as esferas divina e terrena, e que, por outro lado, alimentará, progressivamente, as perplexidades de quem se sente a sós com um destino trágico pela frente (e sem o compreender). Como atrás se referiu, é este embate com a finitude - enquadrado num âmbito mais vasto de natureza histórica (onde as terras ibéricas surgem, após o século de ouro, mergulhadas na sua grande regressão) - que fundamenta o próprio objecto a que, neste trabalho, nos propomos.
A.Shepheard (1986:64) observou que - "poser la question: Comment savoir l'avenir?, c'est en somme s'interroger sur toute forme de connaissance humaine". E o saber, no tempo, espaço e meio ibéricos de que nos ocupamos, é, regido por códigos epistemológicos (que regem as relações entre o objecto a conhecer e o sujeito que o interroga) ainda assentes na cultura do Divinatio. É, neste contexto, que os textos proféticos acabam por ser o maior depositário potencial de informações (muitas ambíguas ou simbólicas - o que corresponde também a regras intrínsecas do género[16]), dispostas com uma sintaxe e um afloramento decerto irregulares, mas capazes de nos dar uma das últimas imagens reais dos moriscos aragoneses. Por outras palavras, ainda: uma das últimas imagens de toda uma civilização, na Península ibérica.

[1]-A expressão é de L.Cardaillac (1977:57).
[2]-Remetemos esta brevíssima delimitação da noção de real para Wolfgang Iser,1978:68 (The act of reading - A theory of aesthetic response, London), onde se lê: "Events are a paradigm of reality in that they designate a process, and are not merely a discrete entity. Each event represents the intersecting point of a variety of circumstances, but circumstances also change the event as soon as it has taken on a shape. As a shape, it marks off certain borderlines, so that these may then be transcended in the continuous process of realization that constitutes reality.". W. Iser prescreve esta noção a partir do raciocínio de A. Whitehead (1938:113-114) que passamos a citar no seu todo (consultamos a edição de 1938, e não a de 1953, citada na obra de W.Iser): "One all-pervasive fact inherent in the very character of what is real is the transition of things, the passage one to another. This passage is not a mere linear procession of discrete entities. However we fix a determinate entity, there is always a narrower determination of something which is pressupposed in our first choice. Also there is always a wider determination into which our first choice fades by transition beyond itself. The general aspect of nature is that evolutionary expansiveness. these unities which I call events, are the emergence into actuality of something. How are we to characterise the something which emerges ? The name event given to such a unity draws attention to inherent transitoriness, combined with the actual unity. But this abstract word cannot be sufficient to characterise what the fact of the reality of an event is in itself. A moment's thought shows us that no one idea can in itself be sufficient. For every idea which finds its significance in each event must represent something which contributes to what realisation is in itself. Thus no one word can be adequate. But conversely, nothing must be left out"(...)"Aesthetic attainement is interwoven in the texture of realisation. The endurance of an entity represents the attainment of a limited aesthetic sucess, though if we look beyond it to its external effects, it may represent an aesthetic failure".
[3]-Componente sígnica da teoria semiótica de C.S.Peirce, designando a imagem mental que reconstitui (ou representa) o(s) objecto(s) do real que, por sua vez, nos são veiculado(s) sob a forma de representamen (cf..Cap.V.1,-1978,I:303/1.564): "A representation is that character of a thing by virtue of which, for the production of a certain mental effect, it may stand in place of another thing. The thing having this caracter I term a representamen, the mental effect, or thought, its interpretant, the thing for which it stands, its object." (cf. nota 15).
[4]-T.Fahd (1966:298).
[5] Como exemplos de artigos de raíz semiótica refiram-se D.Cardaillac (1981:174-183), onde se assume, em nota 2 - ibid.:174, o recurso “à des principes de sémiologie”, nomeadamente de A. Greimas e do Grupo de Entrevernes e J.Hawkins (1988:199-217), onde o recurso não é assumidamente semiótico, embora sejam operatoriamente claras as noções greimasianas de “percurso figurativo” e de “configuração discursiva”.
[6] Para acompanhar a bibliografia secundária sobre a moriscologia, cf. revista Aljamia (nº-1-1989 a nº6-1994 - Universidad de Oviedo), na secção “Noticias” e “Mudéjares y Moriscos”. Assinale-se também o artigo de M.García-Arenal: Últimos estudios sobre Moriscos; estado de la cuestión in Al-Qantara, Vol.IV, fasc.1 e 2,1983:101-114.
[7]-Conhecidos como Manuscritos de la Junta, encontram-se, hoje em dia, no Inst. De Filología del CSIC, Madrid - Ms.Árabes de la Junta - R.Kontzi,1981. Originariamente, foram descobertos em Aragão, em Almonacid de la Sierra, no ano de 1884. Neste trabalho passaremos a designá-los pela incial J, acompanhado com o número correspondente.
[8]-Os Manuscritos da Biblioteca Nacional de Madrid, catalogados por F.Guillén Robles (Catálogo de Manuscritos Árabes), intregram, na sua maioria, manuscritos aragoneses anteriores aos da Junta, Referenciamos, neste trabalho, tais Manuscritos pelas siglas Ms.BNM, acompanhados do número correspondente.
[9]-Manuscrito aljamiado (excepto entre os fol. 88v e 189r, em Árabe) já referenciado por Saavedra no apêndice aos Discursos leídos ante la Academia Española el 29 de Deciembre de 1878, Madrid, e catalogado pelo autor como número sessenta. O Manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris corresponde ao manuscrito número 290 de Saint Germain de Près. Passaremos a designá-lo através da sigla e cota seguintes: Ms.BNP 774.
[10]-L López Baralt, 1980-II:357.
[11]-No seu livro Rebelión y Castigo de los Moriscos de Granada (Historiadores de Sucesos Particulares, B.A.E., Tomo XXI:169-174). Cit in L.Cardaillac, 1977:50.
[12]-M. Sánchez Alvarez,1982:9.
[13]-Edição de Baltimore, no número LII da referida publicação.
[14]-El Manuscrito Misceláneo 774 de La Biblioteca Nacional de Paris, 1982, da Editorial Gredos (na colecção de Literatura espanhola aljamiado-morisca, dirigida por Álvaro Galmés de Fuentes).
[15] "A representamen is a subject of a triadic relation to a second, called its object, for a third, called its interpretant" (C.Peirce, 1978,I:285/1.541), isto é, o "representamen" conduz permanentemente até nós o objecto sob a forma de "interpretante".
[16]-Cf. Simbólica do cronotopo (Cap.V.3.3.1)

Thursday, November 17, 2005

Uma boca de cena íntima:
Poe, o gótico e o visionarismo
Ao falarmos de gótico estamos a falar de um tipo ficcional obscuro, decerto contíguo à matriz romântica, impregnado de simulacros medievalistas e mergulhado por uma dominante de mistério e de terror. O locus selvagem e ameaçador dos castelos, mosteiros, abadias ou ainda das passagens subterrâneas, labirintos ermos e edificações recônditas que o gótico propõe identifica-se, quase sempre, com a natureza sombria dos seus enredos onde abundam ambientes tempestuosos, fantasmáticos, mórbidos e votados ao ultraje, à superstição, à vingança, quando não ao arrebatamento por vezes elementar e primário. Iniciadas pela pena de Horace Walpole, com Castelo de Otranto (1765), e por Ann Radcliffe, com Os mistérios de Udolpho (1794), o gótico propriamente dito cedo viria a ser depurado do seu excesso de extravagâncias e até simplismo, acabando algumas das suas características por serem retomadas, amalgamadas e até modalizadas por escritores como Edgar Allan Poe, Nataniel Hawthorne, ou ainda pelas irmãs Bronte. O dealbar da chamada ficção científica (retenhamos por exemplo o caso de A ilha do Dr. Moreau de G. Wells) também recebe óbvios contributos do gótico, para já não falar dos verdadeiros estigmas negros de oitocentos, tais como Frankenstein (1818) de Mary Shelley e do já mais tardio Drácula (1897) de Bram Stoker, modelos de futuros e abundantes intertextos literários e fílmicos.Contudo, o fundamental no gótico não é ele mesmo, mas antes a inquietante flutuação que suscita e irradia. A produção de sentido do gótico deve pois ser apreendida na cadeia relacional que o mesmo estabelece e provoca e não tanto no fechamento da sua "mêmeté" ilusória, para utilizar a feliz expressão de Ricoeur de Soi même comme un autre (1990). Um dos casos de hibridismo produtivo mais estimulante de neo-gótico, não só pelo que implicou na sua recepção futura, mas também pelo germe de profetismo e mimese com que provocou a modernidade nascente, foi o de Edgar Allan Poe (1809-1849). O poeta, escritor e crítico de Boston não é apenas sinónimo de ditirambo ao mais puro dos macabros, na tradição linear do gótico puro. Nem o é tão-só ao mundo periférico do álcool e de outros anestesiantes próprios do spleen urbano do início de oitocentos, como muitos dos seus correligionários americanos julgaram. Nem é apenas o resultado de um feitiço apaixonado, encantatório e matricial, tal como Baudelaire o viu e particularmente visionou. Poe é também um poço de reflexão complexa acerca do mundo da poesia e acerca da prática analítica das narrações de acordo com métodos de indução, dedução e conjectura (quase antecipando-se literariamente, já se vê, à célebre abdução de Peirce). Poe é ainda um construtor de subjectividades a várias vozes, capaz de transpor para a literatura a aura de uma liberta e às vezes judicativa homodiegese. Por outro lado, Poe traz ao seu neo-gótico especioso um ingrediente fundamental e por isso mesmo sincrético, que foi justamente a fusão entre o labirinto urbano pré-baudelaireano (predito por aquele, retrodito por este) e o, embora menos usado, cenário tradicional da adulada desolação medieval e gótica.Neste artigo é nosso objectivo problematizar as diferenças de arquitectura significativa que se fazem sentir no diálogo entre personagens humanos e seres ficcionais de ordem fantasmática, tal como se nos apresentam em âmbitos exteriores ou adstritos à modernidade. Para tanto, recorreremos, no primeiro caso e de modo breve, à imagem dos monstros e portenta sobretudo medievais; no segundo caso, recorreremos mais desenvolvidamente à tessitura dos fantasmas e prodígios criados pela enunciação de Edgar Allan Poe.Portenta e monstros: os dois mundos.Os Portenta, também considerados presságios, eram imagens que, até ao limiar de setecentos, estavam sobretudo ligadas aos defeitos invulgares de parto, enquanto que os monstros, propriamente ditos, correspondiam sobretudo a imagens de criaturas que, segundo o mito e as lendas, povoavam a periferia distante e desconhecida do globo. Estamos a falar de um mundo tal como Hereford o desenhou no século XIII, de acordo com o tradicional modelo T-O. Ao centro desse tipo de mapas, por cima do traço horizontal da letra T, surge a Ásia e por baixo desse mesmo traço, surge, à esquerda, o Nilo e, à direita, o Dom. Por sua vez, à esquerda e à direita do traço vertical da letra T - que corresponde ao Mediterrâneo -, surge a Europa e a África, respectivamente. À volta deste T, duas grandes circunferências desenham, não o que poderíamos pensar ser a atmosfera, mas sim o designado e espesso "Oceano". É para além desse desconhecido "Oceano" periférico que, segundo variadas tradições, o mundo andaria povoado por criaturas monstruosas. Para Santo Agostinho, a natureza estava, de facto, dividida em duas partes, a da ordem, a visível, a que permite ler os sinais da divindade e, por outro lado, a do inesperado, a da incompreensível, ou a do maravilhoso. Sabe-se que, ainda no século XVI, a palavra curiositas remetia em grande medida para um certo tom pouco cordato de heresia. Para o caso, portanto, essa outra ordem da periferia do globo, por onde pululavam monstros semelhantes aos descritos nas versões medievais latinas da carta do Preste João das Índias, ou em imagens fortes com as de Ravenna (1557), de Boaistuau (1560) ou, entre mil outras, como as que aparecem na Chronica mundi de Schedel (1493), era uma ordem que não constituía uma ameaça directa da divindade ao homem, sendo antes interpretada como prova da falta de capacidade dos mortais para interpretarem, na sua totalidade, o próprio plano de salvação divino. Esta limitação semiótica, ou, se se preferir, esta restritiva teo-semiose própria do mundo pré-moderno, é um atributo que já não está presente no gótico do final de setecentos e do início de oitocentos. Aí, a disputa do desconhecido, do inesperado, do outro fulgurante aparece traduzido por outras mecanismos de controlo narrativo. Metáforas demoníacas, a expansão lúgubre dos elementos, metonímias de um mundo em que mortos e vivos comungam idêntica respiração, a cor e o ambiente soturno e nocturno das novas paisagens, para além de cultismos já de moda (a reinvenção melancólica de um passado, as ruínas, ou a beleza mortal) integram a nova deificação retórica e, portanto, a novíssima capacidade de inventar autónoma e subjectivamente mundos específicos, normas e redes de efeito, através dos quais as tramas imaginárias se passam a desenrolar (inclua-se aqui a própria estratégia pioneira do policial, tão bem simbolizada, por exemplo, em Os Crimes Da Rue Morgue). José Gil, no seu livro, Monstros (1994), sintetiza, no capítulo III, a lenta travessia empreendida entre o terreno da teo-semiose pura e o da semiose aberta ao próprio conflito de interpretações. Fá-lo curiosamente coincidir com as seguintes condições: 1."Que o sentido da coisa captada numa imagem já não dependa das qualidades (de semelhança, de analogia, etc) intrínsecas da imagem; que se produza uma ruptura entre a imagem como puro signo e o seu sentido"; quer isto dizer que a imagem de uma monstruosidade enquanto coisa dada e significada, numa relação que faz depender todo o mistério de um ser superior e magistralmente informado e sabedor, passa, na interpretação gótica de Poe, a ser um ponto de partida à abertura do sentido e à invenção e mimetismo dos dramas e paixões humanas, no quadro de um cenário pragmático.2. "Que a partir daí se possa constituir um novo instrumento de conhecimento aplicável a todas as coisas, a todos os objectos, independentemente do seu sentido e da sua dignidade"; Quer isto dizer que, nos contos de Poe, é toda a vida e humanidade o que está em jogo e não uma imanência qualquer que as pressupusesse.3. "Que o ser do objecto seja inteiramente restituído através desse instrumento e que o seu conhecimento não remeta já para uma rede de relações entre as coisas, mas, antes de tudo, para uma relação entre signos que são dados dentro do espírito do sujeito - e que constituirão o descodificador das impressões transmitidas pela representação ao intelecto""; quer isto dizer que a literatura é uma coisa que se faz e que se fabrica, através de elementos autónomos e autotélicos que, por sua vez, restituem à linguagem e aos seus filtros sociais o poder de construção dos sentidos, em verdade desligados das coisas na medida em que estas permanecem coisa, apesar da própria linguagem e da sua esteticização mais radical (Locke foi o primeiro, há muito, a teorizá-lo). Por outras palavras, Poe inicia, no seu tempo, o que o segundo Wittgenstein clarificaria como sendo uma pura arena de novos "jogos da linguagem", onde novas regras e "palavras de ordem" passam a estar em jogo na recepção especificamente literária. Os fantasmas de Poe: desconstrução de mundos.Nas narrativas de Poe, está já em curso uma imaginação livre, moderna e poderosa. Há um sujeito que enuncia e há uma linguagem que aparece como diria Foucault. Esta marca de subjectividade torna-se visível por exemplo no conto Silêncio, diálogo curioso entre o Demónio e o narrador, junto ao túmulo deste, e onde se dá conta de um personagem que contempla a sós, e com inquietação física crescente, uma paisagem que, no seu exotismo líbio, se metamorfoseia de modo mágico.Este diálogo com o Demónio, no fundo funcionando como um actante que se situa no mesmo plano plástico e imaginário que os demais personagens, é frutuoso noutros contos, como por exemplo em O Gato preto onde aparece por diversas vezes (GP:14, 28, 34). Entre a vida e a morte, o trânsito descrito é sobretudo terráqueo, directo, assemelhando-se a sua mântica singular a uma espécie de desconstrução das clássicas separações entre o ici-bas e o mundo divino e inacessível. Nas narrativas de Poe, este sujeito desconstrutor aparece como que comandado por uma força (narrativa, da linguagem) que o ultrapassa, de algum modo como no futuro haveria de acontecer a alguns dos mestres do expressionismo cinematográfico alemão, como Fritz Lang ou Murnau. Esta fatalidade implícita, no seu tom de mistério transversal ao quotidiano, parece querer prenunciar uma futura negatividade do sujeito moderno, dentro da crítica que Baudelaire entreabrirá e que se prolongará a Nietzsche, a Ortega Y Gasset, etc. Em contos como Ligeia, Gato preto, O Rei peste, Berenice ou Eleanora, esta fatalidade acompanha toda a trama e é mesmo assinalada pela voz narrativa: "Já não era capaz de me reconhecer. A minha alma original pareceu fugir-me de repente do corpo" (GP:14), ou "Falarei apenas daquele aposento, para sempre amaldiçoado ao qual, num momento de loucura, conduzi como minha esposa - como sucessora da inolvidável Ligeia - a minha loura (...)" (LI:33).Ao contrário dos monstros e portenta que, no imaginário pré-moderno, são sempre habitantes de um alhures legitimado de modo metafísico, aqui, nas narrativas de Poe, a topografia das monstruosidades e fantasmas abre-se já à empatia moderna, porque toda ela fruto do puro jogo da linguagem literária. Tal ocorre, por um lado, através do olhar analítico e, portanto, susceptível de filtrar o ambiente das novas cidades, assim como as novas visibilidades do quotidiano; por outro lado, através de um olhar preso à idealidade romântica e gótica que lisonjeou ruínas medievais e espectros desolados de paisagens tumultuosas. Ambos os cenários atravessam e cruzam as narrativas de Poe. Esta simbiose de olhares, reposta na linguagem literária sob a forma de imaginário, parece mesmo chegar a anunciar, aqui e ali, uma espantosa intuição do tropo fotográfico, fenómeno, também ele, emergente e contemporâneo da obra e vida do autor.Vejamos, no primeiro caso, alguns exemplos: "A cidade estava em grande parte despovoada e, nos bairros horríveis vizinhos ao Tamisa, no meio de um desses becos negros, estreitos e imundos, onde o demónio da peste tinha fixado a sua residência, passeavam à vontade o espanto, o terror e a superstição." (RP: 11); "O ar estava frio e enevoado. As pedras arrancadas da calçada jaziam numa desordem medonha por entre a relva alta e vigorosa" (RP:12); ou ainda: "E toda aquela turba ia com uma actividade ruidosa e desordenada cujas discordâncias mortificavam o ouvido e produziam nos olhos uma sensação dolorosa" (HC:69).Vejamos, no segundo caso, outros tantos exemplos: "(...) restaurei parcialmente uma abadia (...) numa das regiões mais remotas e mais isoladas da bela Inglaterra. A lúgubre e solitária imponência do edifício, o aspecto quase selvagem da propriedade, as muitas melancólicas e queridas recordações de que não me conseguia libertar tinham muito em comum com o sentimento de extremo abandono (...)" (LI:32,33); "Magnífica de ouro e púrpura, desceu sobre nós (...) até que por fim os seus rebordos pousaram nos cumes das montanhas, o seu aspecto sombrio agora convertido em magnificência, encerrando-nos (...) numa prisão esplendorosamente, gloriosamente, mágica" (EL:52); ou ainda: "E sempre que o visitante mudava de posição, via-se cercado por uma infinda série de formas sinistras como as que povoavam as superstições normandas ou os sonos pesados de culpa dos monges. (...) (O) vento por detrás das tapeçarias acentuava o efeito fantasmagórico e proporcionava ao conjunto uma animação medonha e inquietante" (LI:36).Sinais dos tempos.Concluindo, dir-se-ia que Poe enceta uma recriação dos espaços ficcionais, quer anulando a dimensão vertical significativa cara ao mundo platónico das teo-semioses, quer pondo em cena uma lógica móvel e híbrida que dá conta da imaginação e da visibilidade do seu tempo de rupturas e de recomeços. Este caracter decisivo da espacialidade, a que se adicionará também a conquista de um espaço interior, psicológico, egotista e, portanto, aberto às profundas inquietações ou "perversidades" - como referiu Poe - do espírito humano, acentua e enfatiza a dimensão radicalmente outra em que prodígios, fantasmas e monstros surgem em cena. Não mais eles serão apanágio do desconhecido intocável; agora todos os fantasmas e monstros, a par dos que surgirão através da imaterialidade da "photogenie" fotográfica ou dos espectros de futuros percursores do cinema como Méliès ou a chamada escola de Brighton, tornam-se personagens e imagens de um mesmo jogo que passa a ser encenado na mesma, na mais familiar e íntima boca de cena da significação (idêntico jogo de desocultação atravessa as narrativas dos viajantes e exploradores europeus do limiar de oitocentos).Provavelmente é essa uma das novidades do próprio gótico: o visível e o invisível passam a andar de mãos dadas e inquietam pelo contraste, pelo drama arrepiante, pelo jocoso às vezes hilariante do trânsito entre morte e vida, entre ressurreição e palpitação errante, entre suspiro e tragédia pueril. O curioso é também verificar que nada nestes percursos naturalmente se alheia da contemporaneidade romântica, sobretudo no que diz respeito à descoberta do tempo histórico, da modernidade (foi em 1826 que a expressão surgiu com Heine pela primeira vez) e da própria ideia de "cultura", tal como Herder a postulou. Este inevitável não alheamento face às novas codificações acaba também por marcar os espíritos góticos mais iluminados, como o de Poe, no sentido de um pathos defensivo em relação ao progresso, de um pranto saudoso, de um personalismo visionário e da irremediável insatisfação que Schlegel baptizou, no feminino, por "sehnsucht ".Terminaria com uma citação da autoria de Salvato Teles de Menezes, estudioso de Poe: a subtileza da análise do "sofrimento humano" traduz-se no grande "tema da poética de Poe: i.e., Poe fez-se poeta dessa zona claro-escura da história da humanidade." Diria mais: recorrendo à noção deleuzeana de "rizoma", ou de sistema aberto, Poe não apenas navegaria entre esse "claro-escuro" vital como também lhe traçaria as "linhas de fuga" que os seus continuadores de renome acabaram por transformar em verdadeiro sinal dos tempos, nomeadamente o indefectível Baudelaire, Mallarmé e o próprio Pessoa que traduziu, mantendo até as rimas originais, o famoso poema do autor, O Corvo, com que, em leitura parcial, termino esta minha comunicação:

" (...) A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais. (...)".
"Qualquer um pode escrever ?
Técnica ou imaginação ?"
e
Tentando responder à segunda questão que foi sugerida para esta conferência "técnica ou imaginação ?", prefiro subtrair o factor da construção propriamente retórica da escrita literária - tema para um livro - ao factor imaginativo e passo, de seguida, a desenvolver a ideia de que a literatura é basicamente, na sua origem formativa, uma fábrica imaginativa, cuja linguagem e corpo de regras se inventaram a si próprios.
A literatura, tal como a entendemos durante o século XIX e XX, não é uma ideia muito antiga e suscitou, sobretudo no último século, uma acesa discussão teórica acerca dos seus limites, atributos e identidade(s) possível(eis).
Sobre este tema, convém sintetizar alguns aspectos:
a) Trata-se de uma comunicação escrita que se distancia de um contexto empírico e pragmático, ou seja, que habita numa arena de ficcionalidade pura;
b) Os mundos que na literatura se enunciam e o que, no seu seio, se solicitam ou se representam dependem apenas de um espaço e de um tempo que a ficcionalidade, a partir da sua própria descrição e indução narrativa, constrói;
c) Como acontece nas demais artes modernas pós-românticas, o universo expresso através dos textos literários é dotado de autonomia específica e, ainda que filtrado por realidades que o impregnam das mais variadas linhas de fuga, a verdade é que vive de uma realidade que a própria literatura cria. À receita teológica que constituiu o âmago da codificação das escritas pré-modernas, sucedia, há dois séculos, uma autonomia expressiva e formativa que é também a da redescoberta de um novo sujeito que efabula e delira por si mesmo, sem perímetros imanentes, ou, pelo menos, apenas sujeito aos perímetros que ele próprio, racionalmente ou não, define para si.
d) Na comunicação literária, estes perímetros, melhor, estas regras estão, em princípio, devidamente interiorizadas pela complexidade do auditório-receptor e, por outro lado, pelos emissores, que se desdobram numa amálgama que pressupõe a interacção entre personagens, autor e outras instâncias. Esta partilha de um código literário deve, contudo, ser entendida como uma espécie de substância volátil e deslizante, cheia de atrito e de diferimento do sentido. O mais abjecto e o mais clássico dos textos podem, subitamente, recair, ou não, no horizonte onde o literário se evidencia, assim como o mais artificioso e kitsch - tanto na moda, hoje em dia - podem exigir, reivindicar ou disputar o atributo literário. Todo este jogo é, na actualidade, por paradoxo, um jogo de silêncios, de mutismos; de adesões e de repulsas; de insinuações e amiúde, aqui e ali, de pequenos prazeres.
e) De facto, a crítica deixou de ser, nos últimos anos, um universo - também autónomo e judicativo, por natureza - tal como durante uns bons dois séculos se propôs ser, no âmbito de uma tarefa, aliás constitutiva da própria noção de literatura moderna. Como referiu Jean-Luc Nancy, acerca do Athenaeum de 1798-1800, a literatura e a crítica passaram, na época, a ser ideias novas e muito ligadas entre si. À mimesis, mundo das representações da natureza, sucedia agora a poeiesis, o que pressupunha a linguagem a inventar-se a si própria, reinventando novas figuras e coreografias imaginárias e combatendo, por outrolado, a rigidez dos géneros clássicos e neo-clássicos. Do mesmo modo, e como disse Schlegel, "a poesia" passou apenas a poder ser "criticada pela poesia", posição que ilustra o que, nos dois últimos séculos, acabou por constitur o círculo criativo e comunicante - literatura-crítica-público, transformado num verdadeiro pilar vertical de edificação de valores, de referências e de filtros do viver quotidiano. Nos últimos anos, a entrada em cena da instantaneidade tecnológica, a rotação dos grandes códigos sociais e a nova sociabilização do globário actual acabariam por devolver à literatura a sua nova condição de nicho, de retábulo lateral, de locus ameno, situado na novíssima horizontalidade plural de fragmentos, linguagens e valores em que vivemos.
Conclusão: a literatura - tal como a temos entendido há dois séculos - é sobretudo uma fábrica imaginativa, cuja origem mais próxima remonta ao final do século XVIII, quando a autonomização dos sujeitos se interpôs decisivamente às interpretações teológicas do mundo. O seu caracter valorativo e imaginativo foi, durante muito tempo, essencial, ao lado de outras escritas e da novidade fotográfica e cinematográfica. A maior parte dos ícones e símbolos do século XIX e XX nasceram nestes berços comunicacionais. Nos últimos anos, estas construções entraram progressivamente em falência e, em contra-partida, a actual relação global entre auditórios e poli-emissores adquiriu uma complexidade nova de tipo rizomático.
Tentando responder à segunda questão - "qualquer um pode escrever ?" - é evidente que respondo, desde logo, que sim. Até porque as capacidade humanas correspondem a universos potenciais que, em equidade mínima, diga-se, estão sempre aptas a transformar-se em acto, através do respectivo esforço, vontade e desejo.
Contudo, nem todos nós estamos aptos a actualizar potencialidades que não perseguimos, ou que, pura e simplesmente, escapam ao limiar da nossa atenção, vontade e desejo. E diga-se, de verdade, que não há instituição reguladora - Tal como a CNVM que regula a bolsa - que separe as águas e nos diga quem é e quem não é sujeito-escritor. É por isso que todas as tentativas teóricas que tentaram, à partida, separar conceptualmente literatura e não-literatura, tal como a ideia de literariedade, falharam. Isto não quer dizer que não existam textos que são literários e textos que o não são. Contudo, o aferimento, a inferência, a decisão pertence mais a um círculo hermeneûtico e social, onde interagem, de modo eclético, o texto por si mesmo, o texto da crítica por si mesmo e a ambiguidade da consciência de cada um; isto é, do público. O resultado acabará por ser, mais uma vez, uma amálgama, uma soma de diferendos, um espaço aberto de possibilidades. É por isso que a Margarida Pinto Correia e o Mário Cláudio recortam, nesse círculo hermenêutico e social, interesses e paixões diferenciadas; e é por isso, que uma bela quadra de gosto popular e uma passagem do Ulisses de Joyce recortam, nesse círculo hermenêutico e social, interesses e paixões completamente diferenciadas.
Para terminar, queria ainda referir, nesta linha que subtrai o factor da construção retórica da escrita - tema para um livro, repito - ao factor imaginativo que, se há dúvidas e ambiguidade no que toca à ideia precedente, o mesmo já não acontece quando nos referimos explicitamente à imaginação.
Para o exemplificar, centro-me nas investigações do neurocientista António Damásio, para quem o cérebro é um exemplar contador de histórias. Com efeito, no seio da verdadeira rede de relatos com que concebe o diálogo dentro dos vários níveis da consciência e seus sis, ou seja, da antecâmara que designa por "proto-si" à "consciência nuclear" e desta ao topo da "consciência alargada", António Damásio conclui que "contar histórias precede a linguagem", o que é até, "afinal, uma condição para a (própria) linguagem"(...)"que pode ocorrer não apenas no córtex cerebral, mas noutros locais do cérebro, quer no hemisfério direito, quer no esquerdo" (ibid.:221).
António Damásio (1) vai mesmo mais longe e conclui que toda a tradição, baseada na filosofia da consciência e que sublinha o importante papel da intencionalidade (Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas, etc) - para além de outras formas de ênfase à intencionalidade, enquanto prática filosófica - não passa de uma consequência desta verificação simples: a capacidade do cérebro em contar histórias. Diz o autor: esse "dizer respeito a", exterior ao cérebro, tem exactamente "como base a tendência natural do cérebro para contar histórias, o que ocorre sempre da "forma mais espontânea possível" (ibid.:221). Aliás, na discussão que as Luzes empreenderam, no século XVIII, em torno do problema da representação (De David Hume a Kant), já a figura da imaginação surgia como uma entidade decisiva, autónoma e transformadora das interacções entre o representado e o representante.
C.Giannetti, referido por Damásio em O Sentimento de Si, também sublinhou o facto biológico e comunicacional que, ao fim e ao cabo, alicerça este auto-narração humana silenciosa que se arrasta imparavelmente na mente: "Enquanto o corpo permanece imóvel, a mente pode empreender as mais surpreendentes viagens."(...)"A investigação desta capacidade de abstracção do cérebro humano constitui um dos objectivos fundamentais da neurociência."(...)"Para isso, as células criaram um sistema de comunicação baseado em fibras conectoras que estabelecem o nexo de cada neurónio com um número de células vizinhas que pode chegar até dez mil. Estes nós poderiam alcançar a incrível quantidade de mil biliões de conexões interneurais em cada cérebro".
Isto significa que o ser humano é um ser, não só para tomar conta do mundo como adiantou Heidegger, não só para a sobrevivência pura como admite Damásio na sua última obra, mas é também, e desde a origem, um ser com e para a imaginação. Neste quadro, poder-se-ia concluir que a literatura, enquanto exclusiva arte que fala, enquanto extensão possível do cérebro que pensa, é a única forma de delírio e de "loucura" que a modernidade social e legalmente autorizou, não a condenando, portanto, à fronteira racional do hospício.
e
Notas
(1) - A. Damásio, O Sentimento de Si, Europa-América, Lisboa, Lisboa, 2000.
(2) - C. Giannetti, 'Trespassar a pele: o teletrânsito' in Ars telemática, Relógio d´água,Lisboa, 1998:120/1
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