Wednesday, February 16, 2005

Passe pelos blogues irmãos: Minion e Miniscente!

Tuesday, February 15, 2005

Olhares Algarvios

(...) Aí, as águas do Arade desaguam no mar, entre molhes ainda envolvidos por estaleiros e obras. Cá de cima, é possível ver imensos cardumes, além de vigias e outras embarcações obsessivamente rodeadas por nuvens de gaivotas. Do outro lado do rio, para os lados de Ferragudo, uma outra fortaleza complementa a tarefa secular de defesa da barra. Dessas eras imemoriais, restará, hoje em dia, a ousadia com que ambas as fortalezas se intrometem na paisagem, leve e abrupta.
Leve, porque estas rochas detêm em si a mansidão do ocre, a indolência dos sedimentos estratificados pelo tempo, um quase encanto que trazem da antiga respiração das algas. Abrupta, porque estas rochas caem desabridamente sobre a areia, como se tivessem sido levantadas pela ancestral fúria do mar que, ao erigi-las na direcção do céu, logo as baptizou com o nome de falésia. Roberto entra, por fim, na ampla esplanada da Fortaleza da Rocha. Intuitivamente, vira-se para o Poente, - esse lugar que dá o nome ao próprio Algarve, o Gharb árabe, ou seja, o ponto exacto onde o sol, todos os dias, se põe. Muito longe estamos ainda do ocaso e é, por isso mesmo, que Lagos, do outro lado da ampla baía, fecha, neste momento, o horizonte ao contínuo olhar de Roberto.

Do romance As Saudades do Mundo (Editorial Notícias, Lisboa, 1999).

Irineia continua de branco, a esvoaçar o olhar de um lado ao outro da imensa vista, dominada pelo espectáculo do céu escuro e estrelado a transformar-se, a pouco e pouco, na película espessa e aquosa do monstro que se aventura pelos baixos céus. E foi assim, sem dotes, nem avisos, que a obscuridade da neblina mais escura avançou desde o areal da praia até este terreiro por urbanizar e sempre cheio de tirs e kits de guindastes, muros em derrocada, estátuas apeadas e camiões abandonados. Pouco depois, a descomunal nuvem branca já cobria toda a cidade de Porto-de-Mão.
Como se reagisse a este brilho da natureza galopante, Irineia levantou-se com vagar, abriu os braços e colocou as mãos muito afastadas sobre o gradeamento da varanda. Levantou a voz e cantou com grão muito fino uma melodia bizarra, de que não me lembro sequer o refrão, ou o escorço do ritmo. Por cima, ao lado e em frente, o olhar de Irineia apenas só já dominava um espaço que era, no mínimo, opaco e baço. E, talvez por isso, Irineia tinha ficado meio hipnotizada e imóvel, diante desta barreira ou toada embaciada que, do asfalto das vias às alturas, mais não era do que uma vista obscurecida de útero fechado, tal o excesso do nevoeiro e a diminuta visibilidade.
Irineia parecia como que observar um balão às voltas, sacudido na turbulência da noite, mas via-o a partir do centro, de dentro, encandeada que estava pelas luzes turvas e deformadas e pela verdadeira anamorfose de candeias às avessas em que a vida, de tão toldada, se havia lentamente transformado. Nessa esfera fechada e alimentada por mínimas membranas de água, Irineia via a cidade reflectida na curvatura do céu e o vestígio das constelações reflectido na curvatura líquida do terreiro. Um caleidoscópio de vista a segredar o prodígio deste estio de espantos.
(...) Fosse como fosse, Irineia não vacilava e mantinha-se de pé, estóica, com os braços esticados e os dedos transformadas em tenazes de rapina, curvados e quase cravados nas grades da longa varanda, a face avermelhada e cheia de suor, os lábios abertos a cantarolar aquela melodia bizarra com voz de tal maneira fina que fazia lembrar o tinir dos fios eléctricos na montanha, em invernia longínqua de vendavais.

Da novela A Sereia de Porto-de-Mão (DN A, Lisboa, 6/10/01)

(...) Ao fundo, um homem muito alto vagueava de um lado para o outro da fortaleza, olhando, de forma abismada, para as escarpas que, a pique, se despedem da incontida fúria do Oceano. Quando nos viu, aproximou-se e falou sem parar. A maior parte do tempo fê-lo, olhando para a minha mãe:
- É verdade, é verdade, dizem que os Fenícios foram os primeiros a dobrar este cabo sagrado. Mas, depois, mais tarde, os Romanos viriam a chamar-lhe o Promontório Sacro e dizem que terão mantido, por aqui, os velhos cultos a Héracles, o filho de Zeus. Os Moçárabes para aqui também trouxeram as suas peregrinações ibéricas, assim como, mais tarde, os portugueses atribuiram a este mesmo cabo o local de uma escola naval. Terá mesmo existido aqui ? Não se sabe. Talvez. O que se sabe é que isto é a boca do Mare Nostrum, nome antigo do Mediterrâneo, o mar do centro do mundo. Para o cronista de língua árabe Edrisi, aqui confluíam o Mar Tenebroso e a doce terra do cabo. Aqui se foram depositando, portanto, as lendas que vinham de muito longe; de ambos os lados: quer do Atlântico tenebroso, quer do Mare Nostrum. É por isso tudo que este lugar é diferente, ou seja, à parte, separado do resto. Reparem: separado de quer dizer sagrado. É por isso que estaremos em Portugal. É tudo. Adeus.
Quem o disse foi de facto um homem muito alto, calvo, que falava um Português arranhado. Estava ali sozinho, pisando a rosa dos ventos que desenharam no chão desta fortaleza meio abandonada. Depois... partiu de repente, foi-se embora; ouviu-se ainda um carro ao longe a partir. Quem seria ? Por que nos falou ? O pai parecia olhá-lo com muita atenção e até reverência, como se fosse normal alguém subitamente começar a explicar as origens do próprio Cabo de Sagres; a mãe, por seu lado, ficou pasmada, nervosa, quase tremia quando o homem partiu. Porquê ? Quem seria ele ?

Do romance As Saudades do Mundo (Editorial Notícias, Lisboa, 1999).

Se percorrermos a imensa longitude da Eurásia - do extremo siberiano até ao nosso Gharb - chegamos a este Sul de Portugal e nele veremos a forma com que os pássaros, quando em migração, voam em cunha. De Lisboa até ao Promontório de Sagres e, de Vila Real de Santo António até esse promontório, há muito sagrado, parece, de facto, formar-se a cunha com que a extremidade do gigante continente se abisma ao olhar para o espesso oceano.

Do ensaio Sob o rosto da Europa (Editorial Pendor, Évora-Lisboa, 1997).

(...) Pouco mais te lembras agora, a não ser daquela luz que avançou até ti, como se fosse uma explosão nuclear, como se fosse a realização duma destas viagens apocalípticas, como se fosse a imagem móvel de um desses cometas pintados por Van Gogh, como se fosse nada. E na frente dessa luz, desse nada, desse inabalável cometa, Ricardo jura-o, - Clara rasgara definitivamente a roupa e doara toda a sua nudez. Abrira-se, como uma flor da manhã, no meio da seda branca e do suor que a desnudou de súbito. Como se o momento de há quinze anos, naquele Hotel Beira-Rio de Vila Real de Santo António, agora se concretizasse. Qual faúlha de desejo no meio da eternidade. E, é verdade, é preciso dizê-lo, - sentiste, de facto, nessa altura precisa, que Clara te apertava as mãos com muita força. Para que atravessasses a ponte. Para que a ladeira íngreme fosse cumprida.

Da novela O Cometa (DN A, Lisboa, 26/06/1999)

Saturday, February 05, 2005

ENTRE O ECO ESPELHO (1986. Escrito em 1982), (Editorial Peregrinação, Baden)

a inscrever

CORTEJO DO LITORAL ESQUECIDO (1988. Escrito em 1984 e 1985), (Editorial Vega, Lisboa)

Erich, um holandês, passa férias em Portugal e apaixona-se por Laura. Contudo, Laura não é apenas uma mulher; é, sim, sobretudo um ser mitológico que se funde com o destino profundo de Portugal. A acção é quase toda memorial e passe-se, portanto, muito depois dos eventos que o relato refere. Toda a caminhada de Erich se baseia num regresso a Portugal, na tentativa de procurar, encontrar e redescobrir Laura, depois de ela ter fisicamente desaparecido. A ausência de notícias e a saudade (a “Heimwee”, em Holandês) conduz Erich a uma “quête” sem fim, atravessando sobretudo as topografias de Lisboa e as da metafórica praia de S. Pedro de “Muel”. Por fim, uma verdadeira revelação operática acabará por celebrar o desenlace fantástico do romance: Erich assiste ao desembarque, na costa portuguesa, de um cortejo com os todos os personagens mitológicos da genealogia portuguesa, estando em primeiro plano o Encoberto, D. Sebastião. Ladeando-o e dominando o cortejo, enquanto apelo mítico-feminino dominante, aparece Laura. As figuras deste cortejo são imateriais, de tal modo que Erich tenta auscultar a sua desejada amada, mas não consegue tocar na sua matéria, na sua carne, no seu ser. A esta visão (“Apokalupsis” ou ”Gala”) tudo escapa, afinal, a Erich. Até a frugal compreenssão do amor que, assim, assume foros de um neo-platonismo de que, aliás, o nome de Laura é celebrado símbolo literário.

NO PRINCÍPIO ERA VENEZA (1990. Escrito em 1987 e 1989), (Editorial Vega, Lisboa)

Romance de viagens, de retornos, de atmosferas exóticas: o Médio Oriente, a Palestina e o Egipto, Jerusalém e Milão. Livro de factos e aventuras singulares seguindo sempre a isotopia ou, se se quiser, as andanças de uma Maria oriental vinda a Veneza a partir de Alexandria onde ainda a aguarda, em frustrada espera, o amor congénito de um Ahmed que, na noite anterior, com ela dormira, enquanto o fantasma do mítico Alexandre representava, em sonho, histórias de conquistas orientais. Tudo isto se passa quase na véspera da chegada de Maria a Veneza, onde agora ela se encontra à beira do Canale della Giudecca para obedecer ao chamamento ambíguo, mortal e erótico de uma Flora que a espera no predestinado Hotel des Bains do Lido e que, por ela, procurará a morte nas águas da laguna.
Mitos de Veneza e mitos de mortes em Veneza revisitada em nome de um inconsciente e ambíguo Tadzio e de um envelhecido Gustav Von Aschenbach, perseguidos nas ruas douradas, crepusculares e já atingidas pela cólera, por um escritor que ama Veneza, até mesmo por este literário e refinado odor de morte. E é assim que o último desencontro de Antonioni e Maria, ele num quarto de hotel, em Milão, e ela numa cama distante, em Tel Aviv, parece simular a união ideal dos dois, embora agora a bordo de um sonho de olhos abertos, como se estivessem de novo juntos "sem sabê-lo, numa navegação ao sabor de uma miragem comum". É talvez a metáfora da consciência aqui atingida por Luís Carmelo, nesta sua recordação-homenagem feita de palavras à cidade da sua saudade. Talvez por Veneza ser, como a vida, apenas e sempre um sonho.
(Luciana Stegagno Picchio)

SEMPRE NOIVA (1996. Escrito em 1989, 1990 e 1995)

Sempre Noiva, mais do que um corpo amado e perfeito, é antes a metáfora de uma demanda, o sentido de uma procura algo obsessiva. A essa demanda se entraga um visionário, um fotógrafo e uma actriz, cujas vidas se tornam a cruzar numa cidade luminosa, branca e errante como a beleza. Para além do cenário do quotidiano que este romance entende como um desconcerto sem norte, o que em toda a história persiste é o mistério. Ou antes: o rosto da Sempre Noiva, para quem o destino é o vislumbramento.
Quarto romance de Luís Carmelo, após uma pausa de alguns anos, Sempre Noiva retoma dos anteriores a poética da viagem, a cidade como personagem, a vida como um lugar interior de permanente disputa e revelação. No entanto, pela primeira vez, a trama devolve-nos o pano de fundo de uma cidade portuguesa e, às habituais paisagens dominadas pela água (simbolizadas sobretudo por Amesterdão e Veneza), contrapõe-se agora a memória da terra e a imaginação das origens.

A FALHA (1998. Escrito em 1996), (Editorial Notícias, Lisboa)

Vinte e cinco anos depois de ter acabado o curso dos liceus, um grupo de antigos alunos decide encontrar-se no Alentejo para confraternizar. À hora marcada tudo conflui no mesmo lugar: a memória truncada, a ausência pressentida, as delongas de conversa e um banquete como pretexto. Discursos, olhares espiatórios, velhas disputas e tentações num único rol de encantos perdidos. A tarde desse dia de Outono, contudo, reservaria ainda duas surpresas cuidadosamente preparadas pelos anfitriões do encontro. A primeira, uma simples prova de vinhos nas caves de uma conhecida adega; a segunda, a visita a uma gigante pedreira de mármore localizada perto de Vila Viçosa. Neste último lugar tudo se precipita a determinada altura.
A queda de um imenso bloco de pedra soterra alguns dos presentes que, dentro de uma espécie de gruta, persistirão durante mais de dois dias entre a vida e a morte, entre o delírio e a navegação do impossível, entre a contenção e o confronto com fantasmas antigos. Uma falha desenhada caprichosamente sobre esta espécie gruta parece definir todo o trajecto simbólico e metafórico deste romance. Ou seja: Falha enquanto equívoco, fraqueza, imperfeição ou talvez elementar interrupção do curso normal do quotidiano. Falha, talvez, enquanto irreparável fenda no tempo. O epílogo é, no entanto, auspicioso. Sem darem por isso, na passagem de ano que encerra o milénio, todos os que se haviam encontrado naquela tarde de 1996 para confraternizarem, estão agora de novo juntos. Por mero acaso. Sem jamais se voltarem a ver. A memória, essa, já terá esvaído tudo o resto.

AS SAUDADES DO MUNDO (1999. Escrito em 1997 e 1998), (Editorial Notícias, Lisboa)

As Saudades do Mundo constitui um verdadeiro tríptico de viagens onde acabam por filtrar-se memórias, tensões, deslumbramentos e alguns dos grandes augúrios e sobretudo equívocos do século XX. Na primeira dessas três viagens, em 1947, Laura e Roberto iniciam a sua nova vida dirigindo-se do Pacífico para Lisboa, a bordo de um navio criado pela ficção de Malcolm Lowry em Through the Panama (novela de Hear Us O Lord From Heaven Thy Dwelling Place). Na segunda das viagens, em 1967, os mesmos personagens e a sua filha já adolescente, Cláudia, partem de Tomar, o coração de Portugal, onde aliás habitam, e deixam-se conduzir até aos mares algarvios. Na terceira das viagens, em 1987, vinte e quarenta anos depois das anteriores, Cláudia, sozinha, deslocar-se-á a Jerusalém com o objectivo de desencantar os fios de um destino, ainda em grande parte por descobrir e reacertar.
Do Atlântico ao Mediterrâneo; das Caraíbas às falésias de Sagres; de Limoges a Nova Iorque; ou de Lisboa e Tomar ao Médio Oriente, os cenários e a trama evocados em As Saudades do Mundo, enredando ficção e realidade, irão, em última análise, debater-se com os frutos da guerra; com as venturas do amor; com as frágeis ilusões do século que agora acaba e, por fim, com a própria solidão, quase exílica, do homem moderno. Embora respirando saudade, este romance não trata do reatar de um qualquer paraíso perdido, mas antes do descobrimento do mundo presente, ou seja, da arena sempre actual da nossa vida.

O TREVO DE ABEL (2001. Escrito em 1999 e 2000), (Editorial Notícias, Lisboa)

O Trevo de Abel conta a história de um homem que vive três vidas sem saber porquê. Não se trata de magia, de reencarnação, ou de fantasmagoria. Apenas isso: um homem vive três vidas, sem explicação alguma, e tenta sobreviver a esse facto inusitado contra tudo e contra todos.
Na primeira vida, é apresentador de concursos e campeão de audiências televisivas. Na segunda vida, ressurge na figura de chulo azarado, apaixonado e vingativo. Na terceira vida, é o ofício de taxista, na vila de Belas, o que lhe acaba por bater à porta. Adão, Caím e Abel são os três nomes desse personagem que é cultor de uma aventura singular, narrada à moda de coro grego, em plena noite lisboeta de luminárias. Ao longe, a par do desfecho, no mínimo, imprevisível, Barcelona, Banguecoque e Porto Brandão completam a silhueta misteriosa deste trevo que, ao fim e ao cabo, sempre foi o de Abel.

MÁSCARAS DE AMESTERDÃO (2002. Escrito em 2000 e 2001), (Editorial Notícias, Lisboa)

Entre Arles e Amesterdão imagina-se uma conjura. Há quem fuja, há quem viaje e há quem procure. Entre Paris e Amesterdão forma-se uma teia criminosa. Há quem traia, há quem ame e há quem se perca. Entre Lisboa e Amesterdão desenha-se a ideia de uma vida. Há quem evoque, há quem celebre e há afinal quem se inicie. Neste círculo de máscaras, entre canais, nevoeiros e a interminável obsessão de um filme que nunca mais acaba, o delírio e o quotidiano fundem-se numa trama muito aberta que apenas se desvenda no final. Talvez seja um policial poético, um thriller irrespirável, ou um romance contemporâneo de costumes.
De qualquer modo, Máscaras de Amesterdão, na linha dramática de A Falha e com elementos que fazem das cidades verdadeiras personagens, tal como já acontecera, por exemplo, em No Princípio era Veneza, em As Saudades do Mundo ou em O Trevo de Abel, é um romance muito vivo, imprevisível e sempre na demanda de um mistério.

O INVENTOR DE LÁGRIMAS (2004. Escrito em 2003 e 2004), (Editorial Notícias, Lisboa)

Júlio Caldas apaixona-se pela professora, a bela Helena, e acaba por vir com ela para Lisboa. Sol de pouca dura. Segue-se uma longa travessia do deserto deste diligente funcionário das finanças que, um dia, tem a genial ideia de manipular quatro casamentos através de anúncios de jornal. O seu e o de três amigos. As peripécias então divergem: de um lado, o traçado de uma vida cheia de coincidências e memórias mal resolvidas; do outro lado, o lento rol de traições e congeminações. A certa altura, Júlio Caldas descobre-se secretamente como assassino, ainda que a lei o considere não culpado. Os quatro casamentos esvaem-se de um dia para o outro e Júlio torna-se num foragido e refugiado a braços com diferentes identidades falsas. Por fim, a perseguição policial associar-se-á a um imprevisto e singular happy end.