Thursday, January 06, 2005

FACES DE OURO

(Texto destinado ao Salão do Livro de Lisboa de 2000)

Nesta intervenção, começamos por delimitar uma ideia de cultura e uma ideia de Europa, para, de seguida, enveredarmos pela prospecção de homologias (subterrâneas e transversais) entre os mundos de Portugal e de França que incidirão, nomeadamente, nas metáforas dos rostos da Europa, dos desígnios universais e do alvor moderno das diásporas.

1 Cultura

Em 1784, nas Ideias sobre a filosofia da História da Humanidade, Johan Herder utilizou o termo ‘Kultur’ para traduzir a ideia de uma soma das obras criadas pela humanidade. Semelhante ideia de cultura surgira, anos antes, plasmada noutros lexemas da autoria de Voltaire ou de Mirabeau. Esta ideia moderna de cultura, ancorada durante as luzes, assenta na objectivação da totalidade do produto humano realizado, independentemente dos seus autores subjectivos. A noção de cultura reata, assim, a ideia de um conjunto integral, composto pelas diversas objectividades e subjectividades deixadas à deriva no termo do processo pré-moderno, no momento preciso em que as várias partes que compunham o edifício social e imaginário do antigo mundo foram, a pouco e pouco, abandonados. À teo-semiose, à teodiceia e à Graça de Deus, sucedia agora a interpretação autónoma do mundo, a justiça racionalizada e o mundo das culturas (e, portanto, das nações, das artes, das literaturas, das histórias nacionais, dos povos, etc).

2 Europa

A Ideia de Europa como uma casa de cultura variada e dispersa em si, na sua variedade e objectivação, é uma construção recente; ou melhor um estar-a-construir-se-actual. É preciso não a confundir com os impérios escatológicos, cuja topografia era celeste e salvífica; é preciso não a confundir também com o desígnio dos impérios modernos do absoluto que juntaram aos símbolos da modernidade (cultura, nação, povo) explicações totais para o mundo, quais simulacros da antiga salvação teo-semiótica. É no momento em que os grandes códigos (sobretudo ideológicos) se esvaem e deixam de constituir factor de mobilização social que a Europa passa a rever-se definitivamente como espaço autónomo de construção. O facto é recente e é contíguo ao presente diluir de fronteiras e à reconversão do futuro (que sempre foi um ponto-ómega a atingir na sua pura perfectibilidade) no tempo mais imediato da instantaneidade. A Europa de hoje é, pois, uma mediação preciosa entre a vasta memória objectivada que é a sua, os percursos democráticos e os desafios que o novo tempo comunicacional está a colocar ao seu edificar.

3 Homologias entre Portugal e a França: pistas para uma discussão

3.1 Rostos e cabos do mundo

O rosto da Europa é, em primeiro lugar, a figuração feliz de um perfil saliente, através da qual a forma da Europa e da Eurásia se despediria do mundo, ou seja, do mar e das lendas que ele prolonga. Este olhar inebriado para o gravitas do fim do mundo, para esse outro vestido de águas em toda a linha do horizonte é o território preferido pelos maiores poetas portugueses, Camões e Pessoa. Aliás, a expressão "rosto da europa", na língua portuguesa, pertence a este último.
Neste meio diagrama meio metáfora, utilizado por Fernando Pessoa, a Europa surge como jazendo sobre "os cotovelos", o mais recuado sendo a Itália e o mais avançado a Inglaterra, de onde a mão sustenta o grande rosto. Este fita com olhar esfíngico e fatal o oceano, o mundo, o infinito. E, para o poeta, "Este rosto que fita é Portugal". Na Mensagem, livro onde Pessoa introduz esta ideia de um rosto europeu, o poeta identifica o mito como esse "nada que é tudo", com se fosse "o corpo morto de Deus/vivo e desnudo" que "aportou" em Portugal; e conclui, seguidamente: "As Nações todas são mistério/ Cada uma é todo o mundo a sós".
Deste modo, o rosto de Pessoa converte-se num mundo inteiro onde terá aportado (e aportar significa encontrar no porto, no cabo, no rosto mais extremo) uma missão, cuja origem se situa no paradigmático Ulisses e no herói fundador Viriato, propagando-se, depois, naquilo que Deus "fadou", já que "o homem e a hora são um só", ou seja, já que o homem providencial e mitológico que espreita do rosto europeu se confunde com o telos, com o eschaton, com o limite último (o "teu ser é como aquela fria madrugada/E é já o ir a haver o dia"). Estamos aqui numa espécie de limbo entre a neblina do cabo e da gestação do mistério da perfeição e, por outro lado, o dia pleno da vida e do prenúncio do ser universal.
É precisamente este limbo que Valéry em La liberté de l´esprit (escrito em 1939, cinco anos depois da Mensagem de Pessoa) designa por paradoxo. Diz o autor: "a minha impressão pessoal sobre a França"(...)"é a de crermos, de nos sentirmos universais - quero dizer: homens do universo... Observem o paradoxo: ter por especialidade o sentido do universal". No seu ensaio, Valéry também encara a Europa - no seu todo - como um rosto, um cabo, uma cabeça que tem olhos e que vigia o horizonte: "um apêndice ocidental da Ásia que olha naturalmente para Oeste. A sul orla um mar ilustre cujo papel foi maravilhosamente eficaz na elaboração" de um propósito, ou de um projecto.
Sobre a tese de Valéry, Derrida escreveu em O outro cabo: "A Europa reconheceu-se sempre a si mesma como um cabo", fosse a ponta extrema do continente, "a oeste e ao sul (o limite das terras, a ponta avançada da finisterra, a Europa do Atlântico ou das orlas grego-latinas-ibéricas do Mediterrâneo)", enquanto ponto de partida para a descoberta e para invenção; fosse o próprio "centro desta língua em forma de cabo, a Europa do interior, apertada, isto é, comprimida ao longo de um eixo greco-germânico, no centro do centro do cabo". A Europa confundiu a sua imagem, continua o autor, com a "ponta dianteira de um falo" que comandou o mundo, que erigiu uma obra e a espalhou sob a forma da cultura. Contudo, quer face ao cumprimento da empresa mítica e - portanto - impossível de Pessoa, quer face ao ter sido da múltipla empresa europeia no mundo, é necessário ter em conta que, hoje em dia, a cultura do rosto se tornou subitamente numa cultura do rizoma variado e do imprevisto labirinto.
O limite do rosto já não se exercita e desafia no contacto distante com o outro, fosse ele o Preste João ou o Négus da Abissínia; o rosto da actualidade já está em todo o lado, cindindo com ele mesmo no quadro de um globário instantâneo. Nesse sentido, Derrida, na sua obra sobre o rosto de Valéry, recorda-nos o dever que deve soçobrar à própria crise do dever (que ele, contudo, não refere na sua obra). Trata-se do "dever de responder ao apelo da memória europeia, de lembrar o que se prometeu em nome da Europa, de re-identificar a Europa" como "dever sem denominador comum com tudo o que geralmente se entende sob este nome". É um dever que exige que outros cabos e rostos se abram dentro do mais antigo rosto actuante do mundo.
Nesta medida, tal como a Europa de hoje se processa no seu mise-en-abyme de rostos, também “a própria democracia permanece in-finitamente” aperfeiçoável. O jogo de máscaras da contemporaneidade exige a transposição do telos ou da finalidade mítica para um telos democrático, congregador e coexistente. A cultura é essa obra lenta e em curso na Europa, mas é também o abismo ou o limiar do rosto marítimo que persegue as escritas ensaísticas de Deleuze ou do Derrida de Glas; assim como persegue a escrita mitológica de Eduardo Lourenço, ou a dos sucessivos encadeamentos ficcionais de Diabolis in musica e de Irene ou o contrato social, respectivamente do francês Yan Aperry e da portuguesa Maria Velho da Costa (que ando a ler ao mesmo tempo). O que une todas estas escritas é o seu caracter líquido, errante, intuitivo que navega a partir do cabo até à abertura, até à extensão onde a não solidez das referências e um certo esculpir-se autotélico se cumprem, como se de uma antiga missão antiga se tratasse.

3.2 Dois desígnios: Carlos Magno e o Encoberto

Na génese da literatura profética, existem figuras ficcionais e imaginárias que encarnam o desígnio de um comando, ou de um guia, a quem cabe a direcção de uma derradeira batalha entre o bem e o mal, entre a salvação e o irremissível, entre a crença e a diabolização. No panorama escatológico, foram imensas as homologias entre estas figuras geralmente designadas como o último imperador salvador. A silhueta ou o rosto autodesenhado por França e Portugal não escapam a este desígnio.
As lendas que propagam a gesta de Alexandre prolongam-se até à profecia do século IV, a Sibila Tiburtina, onde o Anticristo surge como actante que representa os obstáculos à salvação. Três séculos depois, na profecia designada por Pseudo-Methodius, as mesmos actores repetem-se agora em cenário etíope. Já no séc. X, Adso na sua Carta sobre a origem e vida do Anticristo, volta a recuperar o actante escatológico, embora o revista, pela primeira vez, na figura de um último imperador salvador adaptada ao Ocidente e atribuída aos reis francos.
Nos tempos da Reforma, era de afrontamento entre o papado e os imperadores - fins do séc. XI e início do séc. XII -, o personagem salvador divide-se num duplo actor que se disputa. De um lado, a figura do papa angélico; do outro lado, a persistente marca do imperador. Neste âmbito, a primeira cruzada desperta o mito e a crença de que Carlos Magno terá conduzido um remota cruzada à cidade santa e que nunca terá chegado a morrer; segundo o profetismo popular, o primeiro carolíngeo encarnaria mesmo o "imperador adormecido" descrito em Pseudo-Methodius. A meados do século XII, a figura do grande salvador continua bem vivo, quer nos textos, quer no ambiente profético das grandes campanhas. É conhecida a euforia popular e as profecias a ela associadas, quando Luís VII de França, chamado pelo Papa Eugénio, em 1145, se predispôs a dar corpo à ressuscitada Tiburtina (no papel de "Imperador dos últimos dias"), indo, para tal, em socorro do aflito reino de Jerusalém.
No final do século XIV, as profecias pró-imperiais degladiam-se. Nesta guerra de textos e de monstros, a chamada Profecia do segundo Carlos Magno corresponde a uma das mais lidas e politicamente reactualizadas até ao século XVI. Nos últimos anos do século anterior, no coração da humanista Florença, é divulgada uma nova versão vernácula desta profecia (da autoria de Guilloche de Bordéus), incidindo desta vez em Carlos VIII de França. Recebido euforicamente por Savonarola, porta-voz do optimismo apocalíptico florentino, o rei francês terá sido por alguns dias o mitificado imperador dos últimos dias.
As terras lusas também foram férteis em figuras ficcionais, cujos dons de salvação universal acabariam por entroncar no próprio auto-reconhecimento português. O mais conhecido, o Encoberto, foi, na sua génese, uma figura imaginária do levante ibérico, semantizado, desde o século XIII, quer pelo Islão peninsular, quer pelo corpo cristão. É através das profecias do sapateiro Bandarra que o Encoberto terá dado entrada em Portugal, uma década após a guerra civil das Germanías de Valência.
Perdida a independência dinástica para Espanha, em 1580, após a derrota do rei português, D.Sebastião, em Alcácer Quibir (1578), cria-se no país a lenda segundo a qual o rei não morrera e que, qual Frederico II, haveria de regressar numa manhã de nevoeiro. Estas prescrições são, a pouco e pouco, desveladas no texto das Trovas de Bandarra e os seus defensores, D. João de Castro e, posteriormente, o Padre António Vieira, tornam a leitura da profecia num acto da sua real efectivação. Com efeito, a Restauração portuguesa, em 1640, será associada a este autocumprimento profético e o messianismo luso, moldado pelo nome de Sebastianismo, constituir-se-á como devedor da lenta hermenêutica destas Trovas (espalhando-se depois, até para o Brasil, sob formas diversas e curiosas).
À ideia latente de uma Europa unida e salvadora de Carlos Magno, pode ligar-se este presságio místico e também salvífico dos Encobertos peninsulares. O próprio Islão ibérico, na sua abundante produção literária de profecias, já havia imaginado em jeito de auto-flagelação - a partir de tradição (Hadit) do tempo de ´Abd al-Rahman III - um temível Encoberto cristão que, um dia, destruiria todo o legado da sua própria civilização. No século XVI, essa profecia é ainda reescrita pelos moriscos de Aragão que dão assim corpo ao seu metafórico rosto europeu (o Gharb) através da descrição de um personagem-Maomé que “olha para o horizonte"(...)"molhando as suas barbas”, no momento em que confessa que Deus (Allah) lhe disse que o paraíso de al-Andaluz deixaria, um dia, de pertencer a Dar al-Islâm.

3.3 Diásporas, viagens e modernidade

É no sereno ambiente das pontes de Amesterdão e de outras cidades dos países baixos que a modernidade inicia a sua infância. É o polimento dos vidros e são as câmaras obscuras, ou as fachadas envidraçadas da arquitectura longilínea à beira dos canais; são as lunetas; é o génio de Huijghens e de Drebbel; são as invenções de aparelhamentos que redefinem o cabo e o rosto da visão, i.e., os novos limites da visibilidade e da objectividade: o microscópio e o telescópio; a observação nua e crua, a anatomia descrita na nova pintura que, a partir de agora, entra decididamente no quotidiano da vida. Basta olhar para a luz filigrânica de Vermeer para o entender. Mas esta Holanda realista e bruxuleante não se basta a tanta inovação; num mundo então tecido por guerras e angústias profundas, a Holanda acaba também por tornar-se numa grande bandeja para as heresias alheias (Judeus, Huguenotes ou outros). No luminoso século XVII holandês, Portugal e a França encontram-se neste cenário e discretamente descrevem, lado a lado, em plena diáspora, novas linhas para uma abdução da modernidade europeia. Salientemos, neste quadro, o descendente dos judeus expulsos de Portugal, Bento de Espinosa (que também praticou a arte de polir vidros) e o autor das Dióptricas e de outras obras sobre o olhar, a luz e o método: Descartes.
Na Ética de B. Espinosa, ao contrário de Descartes, pensamento e realidade do ser provêm de uma única substância. O pensamento humano é, portanto, entendido como essência partilhável com o pensamento divino. Contudo, se Deus é a única realidade substantiva, já “a natureza naturada”, desprovida de substantividade, apenas dispõe de existência ao nível das manifestações que advêm da produtividade divina. Neste quadro, a realidade é única e imutável, embora, no plano do acontecer transitório, seja efémera. Para Espinosa, a natureza divina é, assim, uma graça que o homem partilha. Neste quase panteísmo, o homem define Deus e a produção do real universal, através de um cunho geométrico, do mesmo modo que Descartes, nas suas Dióptricas, faz equivaler as imagens da alma (ainda cenicamente adquiridas) com a tentação já experimental das imagens da câmara obscura: "a alma não tem necessidade de contemplar quaisquer imagens que sejam semelhantes às coisas que ela sente; mas isso não impede que seja verdade que os objectos que olhamos as imprimam com bastante perfeição". O mesmo acontece, ainda segundo Descartes, àquelas "imagens que aparecem num quarto, quando, tendo-o todo fechado"(...)"e tendo colocado na frente dessa abertura um vidro em forma de lente, se estende por detrás, a uma certa distância, um lençol branco, sobre o qual a luz, que provém dos objectos de fora, forma essas imagens".
Entre o inatismo cartesiano e a geometrização da natureza de Espinosa, existe a atitude de quem sonda uma nova partilha entre mundos, ou entre um mundo e o seu duplo em imagens correntes; ou ainda, entre o vivido e a imagem-modelo desse vivido. Esta captação das diferenças, esta anatomia prospectiva e experimental; esta tentação constitui a própria ponte entre o mundo antigo e o alvor da modernidade europeia. A tomada de consciência da diferença, como modo de entrever uma augurada racionalidade, surge já em Michel de Montaigne, no início do segundo volume dos Essais: “Nous sommes tous de lopins (pedaços) et d´une contexture si informe et diverse, que chaque pièce, chaque moment fait son jeu. Et se trouve autant de différence de nous à nous-mêmes, que de nous à autrui” (1965:22). No entanto, as descrições das viagens levadas a cabo pelo Ocidente, com grande participação dos relatos portugueses, a partir do século XV, enraízariam e aprofundariam este mesmo sentido do outro e da diferença, ou seja, de abertura ao limiar da modernidade.

4 final

A par das empatias luso-francesas, revistas através da metáfora dos rostos, dos desígnios universais e das contribuições para o advir da modernidade, situemos em jeito de conclusão, a França e Portugal no palco das tarefas actuais. Esse agir deve convergir de modo vital na promessa das memórias, seja no esteio da francofonia, seja no da lusofonia. Mas esse agir deve também convergir na gestão dos limites dos novos rostos da Europa (agora que o pós-nacional e o local se degladiam naquilo que parece prefigurar um futuro mundo híbrido onde as identidades serão flutuantes).
Tão importantes são, nesse sentido, as renovações da Convenção de Lomé como a integração a Leste dos vários rostos de Janus que soletram com línguas diferentes a mesma Europa de hoje. Mas esse agir convergente - que é o nosso, hoje e aqui, neste 'Salão do livro do ano 2000' - deve também incidir na permanente aproximação e empatia das nossas obras e escritas do limiar e do abismo, seja na literatura, no cinema, no cibermundo, ou ainda noutras formas dadas à imaginação para florescer.