Sunday, December 05, 2004

O TREVO DE ABEL
(Adaptação do romance homónimo de Luís Carmelo a peça de teatro. Pelo próprio)



ACTO I
O TEMPO DE ADÃO


MARIA ALBA

O céu estava bastante avermelhado, no dia em que o meu iluminado neto nasceu. Adão, Caim ou Abel, tanto faz! Não foram poucos os nomes que rodearam e invadiram a sua estranha vida. Nunca se tinha visto nada assim, é verdade. Havia gente que dizia que aquilo era uma nuvem de insectos vinda do Atlas e que cobrira Lisboa de lés a lés.

Tudo se passou ali nas Escadinhas da Praia.

Quando ele nasceu, tirei as mamas para fora e pousei-as no parapeito da janela. Foi então que vi lá em baixo o guarda-nocturno e gritei na sua direcção e em plenos pulmões: já nasceu, já nasceu!


Cena 2


Entra Luísa, ar prosaico e terra a terra.

LUÍSA

Foi tudo há tanto tempo... ele trabalhava nos Seguros e vinha ter comigo ao fim da tarde. Casadinhos de fresco, vagueávamos ali pelas montras do Chiado, íamos ao cinema, comprávamos pequenas coisas para a casa.

Pouco falava da sua infância e dizia que nunca tinha conhecido o pai. Dele... só sabia que tinha um sinal nas costas, tinha-lho dito a avó que se chamava Maria Alba - que Deus tenha!

MARIA ALBA

Que Deus a tenha não ! Eu é que tenho a Deus, minha filha! Se tu soubesses com que raça de homem tu te estavas a meter! Como havia ele de te falar a ti da infância! Nesses tempos, tu até pensavas que ele apenas se chamava Adão!

LUÍSA

... Era um sinal parecido com uma serpente de duas cabeças. Acerca da mãe dele ainda falava menos. Dizia que tinha ido viver para a América e que só a via de anos a anos...

MARIA ALBA

Ora, não via, não via... mas pensava muito nela! O que é que tu, minha menina, sabes do Abel..., enfim, como tu dizes, do Adão?

LUÍSA

Passado pouco tempo, fiquei de bebé. Foi uma menina. Chamámos-lhe Aura e foi e é a maior alegria da minha vida.

Parece que me estou a ver a correr, a correr pelas escadas rolantes da Estação do Rossio, carregada de sacos e fraldas. Todos os dias passávamos pela esquina do Americano. Todos os dias, íamos e vínhamos no comboio de Sintra, essa lata de salsichas comprimida, e, à noite, a miúda chorava horas e horas a fio. A pouco e pouco, ele começou a achar aquilo um desastre. Aquilo, quer dizer, a rotina, as noites em claro, eu sei lá o que era...

MARIA ALBA

Quando o corpo e alma não são gémeos... o que é que se espera, minha filha!

LUÍSA

E ele então começou a mudar, a mudar...

MARIA ALBA

Tu é que não podias perceber o que se estava a passar! Além do mais, nessa altura, havia um segredo ainda por desocultar. É que o meu iluminado neto cantava. Era uma espécie de voz muito húmida que lhe saía lá de dentro e que o extravasava. Começou por ser fado e depois... bem depois cantava de tudo. Mesmo o impensável...

LUÍSA
É verdade. Sempre que a vida lhe corria mal, cantava. Enquanto eu passava a ferro e lá fora se ouviam trovoadas, ele cantava.

MARIA ALBA

Cantava como ninguém jamais cantou. Realmente, ele era, desde a nascença, um desses seres que pertence à da cepa dos grandes heróis.

LUÍSA

Ainda nem estávamos casados há três anos e já ele andava em festivais, casinos, festas e mais festas. Passou a chegar muito tarde a casa e passava noites e noites fora. E... eu, coitadinha de mim, transformei-me numa mulher angustiada.

MARIA ALBA

Mulher, mulher... o meu neto era um sortilégio. Era demais para ti! Antes fosses uma amazona, ou uma deusa dos fundos dos mares!

LUÍSA

E sabem que mais?... Ele antevia coisas estranhas, dizia que era invadido por uma energia quase diabólica. Às vezes, tornava-se num autêntico rastilho de fogo que me enchia de vertigens e abismos, como se um fantasma terrível e com olhos de fogo o atiçasse a cumprir...

MARIA ALBA (interrompendo)

...Sim, a cumprir um destino impossível, improvável, mordaz ou mesmo faústico.

Estou-te a ver, Luísa: De repente, era com se fosse agora: chove muito, muito. Corres a fechar a janela, empurra-la até que consegues deter o fecho. Escurece lá fora e a criança corre até à sala, é tarde e a televisão está acesa aos gritos diante do vazio. O duche, o quarto, o telefone a tocar. Preparas a cozinha para amanhã, vais e vens ao quarto, espreitas pela janela e chove. E, depois, o quarto; é fazer a cama, voltar a arrumar os cobertores, os lençóis, as gavetas, a roupa suja, outra vez o pó; é um dia como outro qualquer, são já onze e meia da noite e mudas de canal sempre que passas pela sala com uma cruzeta na mão.

LUÍSA

É verdade... e depois é o ferro e a saia para amanhã: camiseira, blusa, meias, roupa interior e o despertador. É preciso não esquecer o talão da luz e do gaz; as senhas de almoço e o telefone do especialista dos ouvidos para a gaiata. No quarto, a luz fecha-se a horas, até porque o comboio, amanhã, é o das seis e um quarto...

MARIA ALBA

Abel tinha-se esquecido definitivamente de tudo, mudara sem quase dar por isso e, claro, passava agora o tempo em quartos de hotel de duas, três ou quatro estrelas, entre restaurantes, aviões, autocarros e táxis de província ou de cidade. No meio das viagens pensava, contemplava coisas raras e era como que possuído por novas visões que não conseguia explicar.

LUÍSA

Ai era?... Isso tudo, enquanto eu estava praticamente só. Um dia, soube que tinha sido convidado pela televisão a fazer o famoso concurso 'Limões e Biliões'!

MARIA ALBA

Que... fora exclusiva criação sua!

LUÍSA

Pois então, vejam lá o génio.


MARIA ALBA

E olha, minha princesa: foi ele quem mandou sobrevoar o estúdio com um autêntico mar caleidoscópico de holofotes. Luz, muita luz, apenas luz. Para além disso, as bancadas tinham que comportar umas três mil pessoas de pé, efusivas, sempre aos saltos. Em frente das bancadas, surgiam os três palcos móveis que deslizavam sobre monocarris de aço. E o Abel a correr de palco em palco, sempre a sorrir, e a dizer o que era para todos imprevisível e mágico.

LUÍSA

Quando o pobre diabo saiu de casa - que Deus me perdoe! - Passou também a dar as notícias e até acabaram com o telejornal das oito. As audiências eram já tão elevadas que foi mesmo necessário suprimir o noticiário. De um momento para o outro, ele passou a ser locutor, jornalista, meteorologista, culturista, desportista e estava diante dos telespectadores desde antes das sete até à meia-noite e tal.

MARIA ALBA

Ele próprio tinha-se tornado no deslumbramento da noite televisiva que entrava em quase todos os lares, ao mesmo tempo. Ao fim de um ano de emissão, o Adão era já uma estrela a brilhar no firmamento. Mal ainda sabia o meu iluminado neto que era, de facto, quase imortal. E... quem não se lembra ainda dele?

LUÍSA

Eu já nem por isso.

Um belo dia... estava ele diante das câmaras, a correr entre os vários palcos, bailarinas e luzes feéricas, quando, de súbito, uma dor imensa lhe incendiou o peito. Compôs a máscara, virou-se de costas e simulou uma das suas vozes com o computador de bolso. Fez-se um grande intervalo, inventaram-se desculpas e creio que ninguém deve ter dado pela coisa. No mês seguinte, eis que caiu redondo no chão. Para ser sincera, pensei que era o fim dele, que iria morrer, que era coisa iminente.

MARIA ALBA

O Adão, ou seja, o meu Abel, ainda tinha muitas vidas para viver... como é que podias sequer imaginar uma coisa dessas?

LUÍSA

Foi um verdadeiro frémito em todo o país. Foi uma grande expectativa, de norte a sul, do interior ao litoral. Os médicos nunca confessaram bem o que se passou naquela sala de operações, nunca. Diziam... que ele tinha mais do que um coração!

MARIA ALBA


Não digas asneiras! Se os médicos ainda fossem como os pastores... que sabem ler os sinais das estrelas!

Eu sempre lhe disse que tinha tido um parto invulgar, único, verdadeiramente predestinado a grandes feitos. Mas quais? Perguntava-me ele, naquele tempo, sempre que atravessava os longos corredores do seu palácio cheios de espelhos, estuques dourados, jardins escarpados, piscinas ovais e varandas que pareciam ser de marfim.

LUÍSA

Deixei de o ver de vez. Sei que se fechara num palácio, após a operação. Deixou de ser o mesmo. E, de repente, sem que nada o fizesse prever doou-me a mim uma quantia de dinheiro exorbitante. Era a consciência dele a ficar negra, da cor do carvão. Não esperava esse dinheiro, é verdade, mas foi uma alegria para mim.

MARIA ALBA

Não, não foi consciência negra, sua interesseira. Foi generosidade, daquela que é própria dos profetas. Só ele e eu conhecíamos a via que o seu destino tecia.

LUÍSA

Só mais tarde é que vim a saber que, naquela altura, o Abel deambulava pela casa e dizia coisas que nem lembravam ao diabo. Falava com a voz de outras pessoas, recitava de cor páginas de livros que nunca lera, imitava o som de animais exóticos. E, de manhã, quando acordava, dizia que o tecto do quarto ficava avermelhado e era invadido por dores de cabeça monumentais, por visões de fogo e sobretudo por um estado de excesso que nem a coitada ou a puta da governanta era capaz de explicar.

MARIA ALBA

Até que, sem entenderem o seu génio e a sua missão, o puseram a andar da televisão e o público, em massa, protestou nas ruas. Como me lembro eu desse tempo!

LUÍSA

O país assistia assim ao destronar de um mito.

MARIA ALBA (dirigindo-se directamente a Luísa)

E eu assistia ao destronar do que tinha sido uma senhora, uma dama, uma mulher digna da nossa família de heróis. Sem mais, sua galdéria, com o dinheirinho de cor de carvão entre as suas mãos, não é que fugiu com um pato bravo e foi fazer para Cascais uma mansão com leõezinhos no portão de entrada?

LUÍSA

Eu só sei que tudo... tem os seus limites.

Enfim, não interessa.

Depois de longa doença... foi através dos jornais que soube da morte de Adão. A cidade parou. Para os lados da Estrela, convergiram milhares e milhares de pessoas. Soube-se, num ápice, que o corpo iria ficar em câmara ardente na Basílica da Estrela. Eu quis ir, mas já não fui capaz.

MARIA ALBA

Foi o maior funeral que o país já viu. No ar, as nuvens enovelavam-se e sugeriam formas animais, seios prodigiosos, monstros da neve, crateras distantes, crustáceos colossais, fadários do fim do mundo. Há décadas que Portugal não conhecia uma manifestação como esta. Há décadas. Era uma espécie de silenciosa revolução, misturada com fé e evocação.


ACTO II
O TEMPO DE CAÍM


CENA 1


SARA

Só vim a saber tudo... muitos anos depois.

LEONOR

Todas nós, filha, todas nós. E eu fui a última a apanhá-lo.

SARA

E eu a Segunda.

LEONOR

O que eu lhe ouvi dizer, antes de me pôr a fugir de casa, cheia de medo, foi isto: como poderia eu ir naquele caixão a caminho dos Prazeres e, ao mesmo tempo, estar também ali, sentado naquele jardim?


CENA 2


ALBA (entra e sobe ao seu estrado mais alto)

E o céu surgia outra vez avermelhado a seus olhos, por cima desse banco do Jardim da Estrela onde o meu Abel, sem saber porquê, apareceu sentado. E dizia:

Quando me consegui levantar do banco do jardim, eu próprio era o pasmo que, em sigilo e mergulhado num mar de tormentas, gemia calado sob o atónito olhar dos lisboetas que, sem me reconhecerem, comigo se cruzavam. Na própria sombra, ao andar, sentia o perfil do assombramento e do medo mais óbvio.

SARA

Antes de fugir para Espanha, Comprou uns óculos escuros e espelhados numa banca de senegaleses e foi com mil cuidados a casa da ex-amante para repescar o dinheiro que aí, há muito, guardara no cofre.

MARIA ALBA

Por sorte ninguém o viu em Lisboa. E ele coitado a perguntar-se... como era possível ter morrido e estar agora ali, sem mais nem menos, sem explicação alguma, ainda vivo. Quem o teria posto ali? Porquê? E lá se fez à fuga. Meteu-se no comboio em Badajoz, depois de uma maratona de táxi ao longo do Alentejo.

LEONOR

O que eu ouvi dizer foi que, nessa viagem, de noite, encontrou um homem gordo, baixo e de pêra. Parecia o Sancho Pança acamado em silêncio de pedra, mas predisposoto a ser invadido por palavras pias e solenes. Chamava-se Alonso e era fogueteiro e pirotécnico ao mesmo tempo. Morava sempre em viagem, de feira em feira, de pueblo em pueblo.

MARIA ALBA

É verdade e parece que terá dito ao meu querido neto que se transfigurava sempre que rogava aos céus o dom do fogo de artifício, pois era essa a sua missão última na vida, sabia-o desde as calendas mais remotas. Quando o Abel lhe perguntou o que queria dizer com a palavra transfiguração, disse-lhe que, no êxtase do seu trabalho, algo nele se alumiava, qual vela ou archote secreto sem os quais não conseguia viver ou sonhar. Quando se despediram na Atocha, o meu neto percebeu que algo de muito importante lhe tinha ali acontecido.

LEONOR

Ele é que não sabia ainda o que era.

SARA

Coitado, pois é verdade. Mas, em Barcelona, na minha terra, ele encontrou paz, sossego e amor. Eu que o diga.


CENA 3


(Entra o espectro no palco)

ESPECTRO

Há paz nesta cidade, ou melhor, o exacto alívio de quem saiu da morte para a vida sem o poder explicar e sobretudo sem ter que o fazer. Nas estátuas de Gargallo reflecte-se esse recomeço, esse brilho inicial, assim como nas formas de alazão, trazidas ao ser desta cidade nas paredes claras com cheiro a Gaudí.

(sai o Espectro)


CENA 4


AURA

Depois da longa operação plástica a que se submeteu, Abel olhou para o espelho e disse: Tenho os lábios mais espessos, a face mais estreita, o olhar mais saliente, a testa aparentemente mais ovóide e larga.

SARA

Até que, por trás, de bata azulada, apareci eu que era, na altura, uma das enfermeiras. Ele olhou-me insistentemente e disse-me o que nenhum, homem até hoje me disse.

LEONOR

E o que foi?

SARA

Um milagre nunca vem só.

(Leonor sai de cena)


CENA 5


SARA

Sorri-lhe de volta e respondi-lhe: Isto é como o Caim e o Abel. O primeiro matou o segundo por pura inveja. Se Deus tivesse dado mais atenção ao Caim, se calhar, era o Abel o primeiro dos assassinos. Aqui nesta casa, entram muitos Abéis e saem ainda mais Caíns; doutras vezes, entram Caíns e saem alguns Abéis. Tudo depende da reacção ao pós-operatório. Foi nesse momento que ele redescobriu o seu novo nome.

ALBA

Deixou então de ser José Adão Ulisses Ferreira para passar a ser apenas Caim Ulisses. Coisas do destino.

SARA

Um dia depois, encontrámo-nos no Hotel Oriente. Bebemos cola e sumo de pêssego, fechámos os cortinados e dissemos um ao outro que era agora ou nunca. Uma semana depois da operação, Caim mudou de papéis e convidou-me a visitar Lisboa.

MARIA ALBA

E em Lisboa tu percebeste que ele afinal não tinha muita massa e ele afinal percebeu que tu eras o que eras nessa altura... uma menina, para não dizer uma mulher da vida (que era o que tu eras) e que ligava o negócio da carne às artes plásticas da clínica. Coisas de gente fina, não era?

SARA

A quem o diz, minha amiga!

MARIA ALBA

Deixemos essas amizades para o limbo dos amores perdidos. A verdade é que resolveram a vossa vida como duas putas a teriam resolvido. Trouxeram para Portugal umas tantas eslavas e o negócio correu de vento em popa.

SARA

Quer em Porto Brandão quer aqui na Rua das Flores, em Lisboa. É verdade, gente fina era mesmo outra coisa.

MARIA ALBA

Essa vossa vida foi a desgraça dele.

SARA

Mas toda a desgraça tem virtudes que são de ouro.


CENA 6


Reentra o ESPECTRO

ESPECTO

Até que um dia...quando regressava de Porto Brandão a Lisboa, dois carros impediram a passagem a Caim na descida para a Rotunda de Alcântara. Depois de se identificar como polícia, um dos homens obrigou Caim a entrar na maior das viaturas que bloqueavam a via, enquanto outro, com destreza, derramou gasolina debaixo do carro assaltado.


CENA 7


Reentra LEONOR e dirige-se a ALBA e a SARA, enquanto e o Espectro sai de cena.

LEONOR

Mas ... o que é que lhe disseram... que eu não sabia disso ?

SARA

Deve ter sido qualquer coisa como: Olha lá, ó chulo dum cabrão, sou um dos chefes da polícia, meu grande cabrão, e, por isso mesmo, estou ligado aos Garcias e sobretudo aos Coimbras; nunca ouviste falar? Responde? Não sabes, não é? Mas olha, os Coimbras e os Garcias dominam as putas finas e se quiseres trabalhar à vontade tens que passar a pagar uns trinta por cento com retroactivos, mais a licença que são três mil contos só aqui para mim. Até Quarta-feira que vem.

MARIA ALBA

A vida começou então a andar para trás.

SARA

Uns dias mais tarde, virei-me para ele e disse-lhe que tínhamos que fechar parte do negócio, se é que queríamos sobreviver. E insisti que devíamos fazer como fizeram o Coimbra e o Garcia, ou seja, ir ao Oriente buscar fornecimento a prazo para não andarmos sempre armados em agência de viagens, senão, daqui a pouco, vale-me mais a pena voltar para a cirurgia plástica.

MARIA ALBA

Já estavas mas é tramá-la, não é? Já andavas era a arrastar a asa pelos poderosos de Lisboa, não é ?

SARA

Pois foi. E ele, o parvo, a dizer-me, todo excitado, com aquelas tatuagens que lhe caíam como incenso no colo de uma santa... lá por isso eu ponho-me a caminho de Singapura ou de Hong Kong...

LEONOR

E a verdade é que o Caim voou para Banguecoque, acompanhado de um senhor alto, magro, franzino e sobretudo sorridente, mais parecia um desses retoques de Hergé desenhados para as histórias do Tintim em luta com os Dupont, algures em terras do nascente oriental. Raramente o dito Sr. Did-Abha disse palavra ou gesto mais rasgado que se visse, ao longo das muitas horas de viagem. Chegado ao Oriente, e depois de viajar de Banguecoque parta uma cidade longínqua de nome Nong Khai, é que o pobre do Caim percebeu que tudo isto era uma banhada e uma casca de banana dos diabos!


CENA 8


Sai SARA e entra Porfírio.


MARIA ALBA

E o que é que ele dizia, Porfírio, tu que o encontraste por lá nessas andanças da desgraça?

PORFÍRIO

Eu andava lá a trabalhar no duro, como bom português. E fui eu quem lhe valeu. Dei-lhe tecto, mas aquilo era uma amostra de casa a dez metros das balças onde eu lavava a cara, o pescoço ou o queixo, e onde os vizinhos utilizavam a mesmíssima água para cozer o arroz. Mas, num dia de Novembro, metemo-nos num barco e lá seguimos com cara de embarcadiços...

LEONOR

Quem diria!

PORFÍRIO

Foi no Sri Lanka, já a meio do Índico, que deu entrada no barco um dos meus maiores amigos de há muito, de nome Preste Nekemte. Segundo rezam as histórias do mar, é meio etíope, meio judeu e, sobretudo, está sempre disposto a contar mil histórias da sua antiga terra.

LEONOR

Quem havia de dizer!

PORFÍRIO

E dizia o Preste: Olhe, tome bem atenção: nesse meu reino havia de tudo, ou seja, havia burros selvagens de cinco patas, homens de cornos e sem dentes, monstros com olhos no peito e antebraços na anca; mulheres de barba e crista, pigmeus albinos sem mãos e aves subterrâneas como minhocas. Mas nesse meu reino também escorria mel e abundava leite e ouro e, por outro lado, atente a isso, os homens adoravam troncos em forma de cruz e raízes a que chamavam assídio, cujo fim era o de afugentar os males e obrigar os maus espíritos e as esmeraldas do oriente a desaparecerem. Nesta terra, por fim, os homens viviam várias vidas e viam amiúde o céu com a mesma cor que a casca dos frutos silvestres contemplam as suas grainhas.

LEONOR

E o que é que o Adão lhe respondia?

PORFÍRIO

O Caim... respondia-lhe: Acreditem que já fui cantor e homem de televisão de muito importância no meu país e que, desde há algum tempo, voltei a ser outra coisa, não sei bem o quê. Nesta nova vida, ouve quem me traísse. Vou agora regressar a Lisboa para ajustar contas, para fazer o que os antigos heróis faziam com as suas próprias mãos

MARIAALBA
Para grandes males grandes vinganças. Eis que o Porfírio e o meu neto, já em Lisboa, depois de mil correrias, se decidiram a destruir os mafiosos cúmplices de Sara.

PORFÍRIO

Era, de facto, quase Natal, quando eu e o Adão subimos até à velha casa de Campolide. A minha mãe abriu a porta com alegria e desfez-se em lágrimas. Coitada, já adivinhava, se calhar, o que ia acontecer.

MARIA ALBA

Não tenhas dúvida. As mulheres são amazonas de todo o oráculo.

LEONOR

Sei que o Porfírio atingiu por trás o guarda-costas, enquanto o Abel que se chamava ainda Caim o cobria. Pouco depois, eles os dois deram com a puta da enfermeira abraçada a um tipo todo bem parecido, alto e magro.


CENA 9

Entra SARA.

SARA

Foi, foi... (risos de gáudio)

LEONOR

A voz dele era, de facto, a do gajo que o tinha torturado em Monsanto, o tal chefe da polícia...

SARA

E eu que tanto queria que ele me levasse ao Tahiti para um casamento das Arábias e ele a dizer-me que podíamos até ir viver para LA; de tudo lhe disse e de tudo o gajo me convenceu. Grande jogatana ! Sabíamos os dois que era um jogo de mentiras e de cama. Mas era assim que se passava bem a vida, podem crer!

LEONOR

Num dado momento, aproximaram-se os dois da piscina e ali ficaram, de pé, durante alguns minutos, a confidenciarem traições e desejos, volúpias e insídias. O céu estava negro.

PORFÍRIO

Segundos depois, por trás, o alarme tocou.

E eu disparei imediatamente sobre o chefe do bando e o Caim correu, correu e agarrou-se a ti, não foi?

SARA

Foi. E tu conseguiste fugir, ferido apenas de raspão. E eu, bem eu fui parar ao hospital. Levei um tiro no braço, aqui mesmo.

PORFÍRIO

E o Caim, bom, o Caim, que já se tinha chamado Adão e que estava agora prestes a chamar-se Abel.... já podem adivinhar o resto da história.

Dizia ele, com aquele ar meio brincalhão, meio inocente, meio pesaroso: Eu vou sempre para os Prazeres, já se sabe.


ACTO III
O TEMPO DE ABEL


LUÍSA

Soube por outros taxistas que, desta feita, ele, antes ainda do funeral, tinha aparecido sentado num dos jardins do Paço do Lumiar.

MARIA ALBA

Nesse instante, ele olhou para cima e o céu estava outra vez todo vermelho.

É a cor da grande redenção. Era como se se estivesse a viver uma autêntica aurora boreal e, por dentro dos meus ouvidos dele uma voz fina e misteriosa dizia-lhe: Sai, sai, sai desta cidade. E ele foi andando, andando; é verdade que durante quilómetros e quilómetros o meu aventuroso neto fartou-se de andar, quilómetros e quilómetros. Por mero acaso, tinha ficado no bolso com uma carteira cheia de massa que o Porfírio tinha pousado sobre o tablier.

LUÍSA

Sortudo.

SARA

A sorte grande ficou-me ele a dever!

LUÍSA

Ao menos tu traíste-o, puseste-o no lugar. Mas eu... eu fartei-me de sofrer

MARIA ALBA

A menina teve um dote que nem merecia, cale-se.

LEONOR

E depois?

MARIA ALBA

Bom, quase ao fim da noite, ele roubou uma motorizada e fugiu em direcção ao Cabo da Roca.

LEONOR E LUÍSA

Do cabo da Roca?

MARIA ALBA

Sim, queria ver o mar. Havia qualquer coisa de insondável que para lá o empurrava; era como se sentisse as histórias de Preste e de Porfírio a ditarem-lhe o seu próprio destino. Para mais, se desta vez o descobrissem, seria porventura dado como assassino, pois, embora a escassas horas de ser enterrado, a polícia ainda decerto desconhecia o número exacto dos assaltantes que se tinham envolvido no tiroteio e ele, como é natural, mantinha a sua fisionomia, assim como a falsa identidade que comprara em Barcelona.

Chegou ao mar e perdeu-se em lágrimas. Nem a traineira, ao fundo da íngreme encosta, lhe sossegou o espírito, ou terá, de alguma forma, conformado o indomável monstro que sentia ser. Que iria ser da sua vida? – Perguntava. Mas de que vida? - Insistia. Por que não morreria de vez, ao contrário de todos os mortais? – Inquiria com ar desesperado.

Na falésia deste abismado cabo, tão longe e ao mesmo tempo tão perto, diante do meu olhar inconformado, aquela traineira distante agitava-lhe a consciência. Nesse momento - como se algo de fundamental nele se passasse - o meu iluminado neto sentiu todo o silêncio e toda a mudez inexplicável do extremo mais extremo da Europa.

SARA

Qual nudez?

MARIA ALBA

Não te metas nisso. Aquilo era o concerto do mundo, o grande relógio da vida. “Por que estaria eu ali, afinal?” - perguntava ele.

LEONOR

Foi assim que tudo começou. Caim que já fora Adão estava agora prestes a fazer uma nova operação plástica e sobretudo queria que esta sua nova terceira vida fosse calma e não... predisposta às aventuras da anterior. Eu tornei-me, saiba-se lá por que virtudes, no objectivo que ele perseguiu. De facto, tínhamos sido namorados dos catorze aos dezasseis anos. Fomos, um para o outro, o primeiro caso de amor.

LUÍSA

O primeiro... o que tem ser o primeiro caso de amor da vida?

LEONOR

Tem tudo. É que em Belas, onde eu morava e era professora, ele fixou-se como taxista e procurou-me. Quer dizer, viu-me um dia, reconheceu-me e depois, com habilidade, perseguiu-me e seduziu-me. E a ti... de certeza que ele não te procurou. Apenas te encontrou!

LUÍSA

Não digas isso, que não sabes do que estás a falar.

MARIA ALBA

Calma meninas. A varinha mágica nem a Vénus pertence!

LEONOR

Sei do que falo e do que me pertence.

MARIA ALBA

Cala-te!

De qualquer maneira, Abel... foi esse mesmo o nome que ele acabou por adoptar nesta terceira vida. E ali estava ele no sossego da velha vila de Belas. E quando ia à Praia das Maçãs, punha-se a olhar para o mar e dizia: Por que assombro ou maldição se repete a vida dentro da vida?

Num belo dia, Abel passou pelo Café Parque. Como sempre, tinha-se sentado na esplanada, em frente de uma chávena de chá de limão e assim ali ficou a tentar relaxar-se e descontrair.

LEONOR

Pois foi... e, ao lado, na mesa habitual, o médico, já velhote, que era e é um dos meus grandes amigos, lá estava a ler o jornal e, como sempre, fazia de anfitrião às amigas íntimas da mulher e ainda conseguia ter tempo para receber das mãos de uma saloia anafada a fruta que, doutra maneira, teria que comprar fora de portas. Aquilo é que era mesmo a Corte da aldeia.

MARIA ALBA

Nessa altura, foste um amor.

LEONOR

E depois não fui?

MARIA ALBA

Tu... e esse médico ainda conspiraram contra o meu iluminado neto!

LEONOR

Isso foi muito mais tarde. Mas qualquer um o faria...

MARIA ALBA

Isso dizes tu. Talvez por isso ele mantivesse saudades da sua primeira vida!

LUÍSA

A sério?

MARIA ALBA

Sim, minha filha. Mas se tinha saudades, esquecia-as rapidamente. Um dia, à noite, quando o telefone tocou na Praça, o meu iluminado neto atendeu, e dói outro lado quem havia de aparecer? A Leonor.

LEONOR

Tal e qual. Era tarde e eu disse-lhe que me levasse a Lisboa, - É que a esta hora só uma pessoa de confiança! Fomos pelo IC19, Segunda circular, Avenida da República e, mesmo ao pé da biblioteca Nacional, pedi-lhe que parasse o carro. Ele parou e eu, atrás, com um xaile lilás à volta do pescoço, parece que foi agora, perguntei - Se deixasse por acaso de ser taxista, era mesmo capaz de largar de vez a sua profissão? Respondeu-me que sim, já tinha trabalhado pelo mundo todo, fora gerente de empresas, trabalhador de marinha mercante, agente da Swissair, operador de televisão e agora taxista. E eu aproveitei a deixa para lhe lançar a isca e disse-lhe: O meu problema é esse! Sabe, penso que as minhas dores de cabeça só surgem quando, de repente, há qualquer coisa que eu, no fundo de mim, recuso ou detesto fazer. Gostava de ter estado em todos esses países e ter feito outras coisas, mas agora é tarde demais!
Foi nessa altura que ele me convidou para cear num restaurante perto de Queluz, coisa de jeito, bem frequentada.

LUÍSA

Foi nessa altura que começaste a corar com as coisas que ele te dizia, não foi?

LEONOR

Foi... corei, cruzei os braços, cocei as mãos e lembro-me que havia imenso calor dentro do restaurante e, além do mais, era já bastante tarde. Mas ele, como um autêntico gentleman, limitou-se a levar-me à porta de casa e aconselhou-me a pedir um atestado médico, a dar uma volta, a ocupar-me com outras coisas durante uns dias...

MARIA ALBA

Tudo aconteceu, uns dias depois, numa ida à Batalha. O meu neto tinha estacionado o carro perto de Vieira de Leiria, em frente do oceano nocturno e tumultuoso. Aí, à beira desse areal meio molhado, lembrou a Leonor, mas sem nunca falar, sem uma única palavra, de tudo, tudo, tudo o que ela já vivera com ela na Praia das Maçãs. Deu-lhe a ler a maresia, o sussurro das ondas, a noite...

LEONOR

E nós ali agarrados ao fim de algum tempo de pasmo. E nós a lutar com os nossos fantasmas, sem saber onde passar a mão pela pele, pela roupa, pelas extremidades da história. Tanta atrapalhação e engasgo que valiam por cometas e luzes de ribalta,

MARIA ALBA

E nessa altura como se lembrou o meu iluminado Abel do pirotécnico Alonso!

LUÍSA

Do quê?

MARIA ALBA

Nada, nada. Continuem o vosso pequeno filme, meninas.

LEONOR

Tudo aquilo me apareceu como uma verdadeira história de amor inesperada!

MARIA ALBA

E dizia a Dona Olga, a tal que parecia tia da Leonor e que se fazia ao médico lá na esplanada da praça de Belas: Está a ver, minha filha, tantas vezes a dizer que a vida não se compunha! A dizer que podia ter tido uma vida de luxo, é verdade, mas depois tinha ficado viúva muito cedo, não é assim? Ele, esse saudoso Adão, era bom homem, bem parecido, uma bonita figura. Mas... ter sido seu namorado em jovem já é um orgulho e um privilégio que deve até agradecer a Deus. Mas, sabe, Deus escreve sempre direito por linhas tortas - eu que o diga! - E a felicidade, minha filha, tinha que acabar por bater-lhe à porta. Não é por acaso... o senhor Abel é um sujeito que, embora humilde, é tranquilo, discreto e deve dar-lhe muito carinho, ai ai, ui ui. Que bom que deve ser... ter um homem em casa, eu bem me lembro como era antes do Armando ter desaparecido em África, Deus o guarde e tenha compaixão de nós todos! Mas não me posso queixar, embora o que mais me custe, hoje em dia, seja a vista e o ouvido. Mas a gente distrai-se, há sempre coisas que fazer, cortinas, canjinhas, a paróquia, as fofas de Belas; o que é preciso é saber fazer bem a massa e polvilhá-la com açúcar bem granuladinho, também costuma fazer, não é? A minha mana, a sua vizinha, diz-me que sim e a Leonorzinha é muito jeitosa; pena é que depois do vosso... enlace - mas a Igreja até já protege o namoro e as relações de facto dos mais novos, mesmo sem matrimónio, não é assim? E os leigos já fazem, hoje em dia, quase o mesmo que os padres dantes aprendiam por si sós, e eu, sabe, minha filha, no fundo, até era capaz de admitir que nós, mulheres, pudéssemos dar missa. Não pense que sou assim tão antiquada, pois a idade cria caruncho e saudade do tempo em que despertávamos para certas coisas, mas agora os tempos mudam muito depressa, é tudo a correr, e a minha mana, pois, coitada, desde que a Leonor deixou de estar só, digamos assim, não vai já visitá-la como ia dantes e isso para ela era importante. Sabe, a minha irmã nunca conheceu homem... Bom, mesmo bom, é durante as longas invernias, ter ali ao lado um homem e, à noite, no tempo das constipações, servir-lhe um chazinho e umas torradas com aspirina e muitas colheres cheias de mel de favo é coisa que faz sempre bem, embora os intestinos, está a ver, isso é que é o pior. Gosto de a ver assim, rosadinha, composta e de novo a dar aulas sem aqueles pesos, aquelas dúvidas em que andou aí mergulhada. Pois é, pois é, eu apercebi-me de que a Leonorzinha andava mal; não andava mesmo nada bem, até pediu um atestado médico, ai, ai, ai, o que nós nos admirámos com isso, não fosse a voz esclarecida e sábia do senhor doutor e juro que até tínhamos, eu e a minha mana, pensado que a doença era mesmo coisa a sério. É que a Leonorzinha, nessa altura, andava tão branca, até emagreceu e pouco aqui aparecia na esplanada. Mas não há mal que não venha por bem e a menina, porque é boa moça, generosa, sempre pronta a ajudar e por isso mesmo tinha que atrair até si aquilo que merecia; digo-lhe, minha querida, que eu sempre tive essa intuição, sempre a tive. Bem lhe disse, hoje e tantas vezes antes, que é por linhas tortas que se escreve a felicidade, não é assim?

LEONOR

Ah!... A dona Olga, minha segunda mãe!

SARA

Que gente tão idiota, Deus meu, coño!

LEONOR

Um dia, o Abel deu-me boleia até Lisboa. Levou-me ao Campo Santana e, depois de me deixar do lado do Patriarcado, deu a volta ao jardim e estacionou. Do outro lado, a uns cinquenta metros de distância, viu decerto a silhueta de Luísa.

LUÍSA

Já não nos víamos há tanto tempo! Mas olha, juro-te que morria se soubesse que o meu defunto marido estava ali do outro lado do jardim!

MARIA ALBA

É verdade Sara, que gente tão poucochinho...!

LEONOR

Estou-te mesmo a ver. Vinhas com saltos muito altos e uma vestido azul-escuro com rendas claras ao longo dos ombros. Juro que disse para mim mesma, nessa altura: olha a Luísa, a abandonada, a falsa viúva rica.

LUÍSA

E eu pensei assim: olha a professorazinha de Belas agora com menos olheiras e com mais falinhas mansas...

LEONOR

Coitada... mas nesse dia cheguei tarde a casa. E lembro-me que gostei de te ver, Luísa. Lembrámo-nos de tanta coisa e, já se sabe, a infância é o único paraíso da vida. Quando me sentei à mesa diante de Abel, disse-lhe: foi muito bom ter saído, sabes? A Luísa é uma antiga amiga que eu conheci, quando ia comer à cantina da câmara... porque dava aulas ali ao pé na altura, numa escola da Junqueira. Ela foi casada com o Adão Ulisses, aquele da televisão que já morreu, lembras-te? Era bom homem. Conheceste-o? Sim, imagina. Quando era mais nova, costumava dizer às minhas amigas que eu e ela, a Luísa, éramos como Evas do mesmo Adão. É que, em adolescente, tive uns namoricos de praia com ele. Depois, é evidente, nunca mais o vi; é assim mesmo a vida. Estranhas? Mas foi verdade. Para que saibas. Tem graça, não tem?

MARIA ALBA

E Abel estremeceu.

LUÍSA

Foi nessa noite que tu desconfiaste que...

LEONOR

Foi.

LEONOR

A meio da noite, acordei e olhei insistentemente para Abel. Era ainda aquele olhar dos amados que não distinguem bem a diferença entre a ilusão óptica e a ilusão amorosa, mas, de repente, dei comigo, a desvendar friamente o que os olhos me davam, na realidade, a ver: a respiração tranquila, as costuras atrás da orelha, o acidente, coitadinho, como terá sido? Depois, com alguma insistência, passei com a minha mão no braço de Abel. E lembro-me que disse para os meus botões: mas de onde conheço eu esta articulação, esta carne tão íntima, este vigor, esta forma invisível?

MARIA ALBA

Ficou a suspeita.

LUÍSA

No dia a seguir, no telejornal - e com algum suspense -, uma conhecida jornalista, sorriu com ar atormentado e disse: deixamos agora aos senhores telespectadores uma história verdadeiramente admirável. Este senhor que vêem nas nossas imagens é o egípcio Muhammad Mubarak, mágico e prestidigitador, que, após alguns espectáculos no Cairo, deu uma entrevista ao Sunday Egipt onde disse que, em pleno planeta Terra, existia um homem que já tinha morrido uma vez e que, apesar disso, ainda vivia. Mas o mais interessante, segundo Mubarak - não confundir com o presidente do Egipto -, é que o homem em causa é um português de gema. Não bastasse já isso, a verdade é que todos nós o conhecemos de nome, ou seja, tratar-se-ia de José Adão Ulisses Ferreira, imagine-se! Diz quem ouviu Mubarak que a história lhe teria sido contada, no passado Verão, durante um espectáculo seu, dado algures na Etiópia. O nome que o morto-vivo adquirira, na sua segunda vida, era qualquer coisa como Ulisses Caim dos Santos Trigo. Enfim, senhores telespectadores, não podíamos ter acabado de melhor forma este nosso telejornal. Continue connosco e tenha um óptimo serão, sempre na nossa companhia. Boa noite.

LEONOR

E imaginem que, diante do ecrã, eu disse então ao Abel: Ainda ontem estivemos aqui à noite a falar dele, não é engraçado? Ele, sem dizer água vai água vem, levantou-se, limpou os lábios ao guardanapo e, ainda a mastigar, um nervoso, levantou-se da mesa, correu, correu e foi dizendo que tinha pressa, que já vinha, que ia só lavar os dentes, que era só um bocadinho, dizia

MARIA ALBA

Abel entrou na casa de banho, abriu as luzes laterais do espelho, encostou-se ao mármore da bacia e encarou o rosto, face na face, imagem trocada e truncada pelos seus nomes sem nome, olhos nos olhos diante do espelho. E agora? – Perguntou. Sei que, depois, ele disse no seu silêncio mais íntimo: O que vale é que o raio do Preste não conheceu a minha terceira vida, haja pois sossego! E o meu iluminado Abel ali continuou naquela posição de confronto consigo mesmo, a segredar, a temer talvez o pior. E acrescentava: Mas por que não me sei eu calar, porquê? E se o Porfírio acaba por falar? Eu, a todos os títulos, estou morto, não é? Não é assim? Era vê-lo, meninas, o meu Abel de olhos vermelhos em monólogo assustador, perdendo o controlo e a questionar, a questionar-se: estarei vivo? E o que é que me aconteceu, durante este tempo todo? Porquê eu? E tu Leonor, de repente, apareceste-lhe por trás e...

LEONOR

Sim, apareci e disse-lhe: Que é que estás a fazer, querido? Não te sentes bem? O que é que se passa?

LUÍSA

E ele?

LEONOR

E ele a falar sem nexo, a repetir-me... querida, eu estou aqui... com umas dores estranhas no peito, sabes? E eu insistia: Mas vê lá se queres que eu chame o doutor, com essas dores nesse sítio não se brinca. Foi agora enquanto comias, foi? Mas... por que não me contas tu o que sentes? Se te doía o peito, devias-me logo ter avisado! Parece até que... andas estranho nos últimos tempos! Estás com suores frios, é? Eu vou chamar o doutor, está bem? Sempre é melhor.

MARIA ALBA

E ele teve coragem para recusar. Parece que estou a ouvir a sua perdição - Não, não faças isso, não vale a pena, isto já está melhor, juro. Olha, põe lá aqui a mão, vês? Vês que não estou com nenhuma arritmia? Vês? Só ia aqui lavar os dentes, não te impressiones, se calhar comi depressa demais, não achas?

LEONOR

E eu tive pena dele, juro. E até lhe disse para deixar o táxi por uns dois dias. Mas ele não aceitou.

LUÍSA

No dia seguinte, ‘O jornal da Capital’ fazia capa da história do morto-vivo e dizia: “Desde ontem que o túmulo de Adão Ulisses tem sido visitado por inúmeras pessoas, ligadas à lenda viva do paladino de 'Tostões e Biliões'. E acrescentava, no interior: “Embora sem confirmação oficial, fontes seguras confirmaram a ‘O Jornal da Capital’ que a polícia judiciária está atenta ao caso e que, para além de ter desencadeado contactos internacionais sobre a estranha ocorrência, também já inspeccionou as campas dos nomes referidos pelo mágico egípcio. Ou seja, não apenas o túmulo da conhecida vedeta, Adão Ulisses, mas também a campa do meliante Ulisses Caim. A curiosa parecença dos nomes, pelo menos através da presença do enfático “Ulisses” em ambos, foi ontem motivo do programa radiofónico ‘Escárnio a bem dizer’ da ‘Emissora Regional de Lisboa’.

MARIA ALBA

A polícia começava agora a tratar o que era uma simples anedota como um caso realmente sério.

LEONOR

Três dias depois, o Abel levantou-se mais tarde do que o normal e foi lentamente, a sós, para o duche como que a imaginar saídas possíveis para isto tudo em que andava metido...

MARIA ALBA

E, minha menina, devo dizer-te que só lhe vinha à ideia uma qualquer fuga aparatosa e sempre, sempre... o diabo do Porfírio. Eram os cheques, os cheques... se o tipo - que agora devia estar em liberdade condicional - fosse à polícia contar que alguém, naquele dia, lhe utilizara os cheques... enfim, só pensava em problemas e em pistas contra si próprio...

LEONOR

Subitamente, sem razão nenhuma para tal, encheu o peito e pôs-se a cantar muito alto qualquer coisa como: “Leonor Luísa Amor/ Pelo vosso coração/ Canta a minha dor/As rosas desta visão”. Maravilha! De repente, como se as cordas vocais tivessem sabiamente regressado, Abel viu-se ali a cantar com a voz de Adão., o dos Limões e Limões.

LUÍSA

Foi então que entraste em casa...

LEONOR

Sim, foi nesse momento preciso. Abri lentamente a porta e subi alguns degraus. Não foi preciso mais para ficar apavorada diante daquela voz televisiva, clara e nítida, que conhecia como ninguém. Parei ainda no cimo das escadas e, já trémula de palavra e espírito, ainda tive forças para gritar - Abel, estás em casa ? Sem resposta, desci a escadaria rapidamente, em pânico, veloz, com a boca presa, os olhos muito abertos, a respiração quase em suspenso, parada, irada.

MARIA ALBA

O meu iluminado Abel, nu em flor tal como nascera, apercebendo-se do tremendo descuido, do repentino dom, do indomável susto, desceu até ao hall do primeiro andar e ainda gritou - Querida, estou aqui, o que é, o que se passa? Nessa altura, já Leonor tinha batido com a porta e fugido, fugido. Sem tempo sequer para pensar, Abel vestiu-se num ápice e saiu de casa. Contou o dinheiro, acelerou, evitou a praça e, em poucos minutos, deu consigo em plena estrada de Pêro Pinheiro. Atravessou então bermas de eucaliptos, nuvens baixas e carregadas e soube, por fim, que era este o termo da sua fase de Belas. Agora, já não podia voltar para trás. Depois do cantor, o chulo e agora o pacóvio, o pateta alegre! O meu iluminado neto riu-se de tanto fantasma, de tanta história insuportável, de si mesmo, juro-vos.

LEONOR

Eu, entretanto, corri até à praça, entrei no Centro de saúde e pedi para falar com o médico. E eu disse-lhe: senhor doutor, ontem o senhor, afinal, tinha toda a razão. O morto-vivo está mesmo na minha casa! Ouvi-o a cantar muito alto e garanto que era ele, sem engano, sem hipótese alguma de me enganar. É que eu segui, durante anos e anos, o programa dele e conheço-lhe a voz, juro Sr. Doutor, como conheço aqui as minhas mãos. Mas não é apenas isso. É também o corpo... primeiro era aquela articulação do cotovelo, o osso, a forma do braço, depois as coxas ao andar, o pescoço, mas não só. Sabe, é que ele, já lho tinha dito uma vez, foi meu namorado, há muitos, muitos anos! Mas há mais, repare Sr. Doutor, aquelas costuras atrás das orelhas devem ter sido plásticas que ele fez... para ocultar a identidade ou coisa do género e nunca por causa de qualquer acidente que tenha sofrido. Sempre desconfiei disso porque, pelo menos umas duas vezes, ele me trocou as estradas e até os sítios onde tudo se terá passado. Ó Sr. doutor, desculpe-me, deixe-me falar, eu sei que não estou nada bem, mas há uma última coisa que quero dizer. Aquele nome não existe no Arquivo, ou antes, corresponde a alguém que já morreu. Em vez de ir à escola, hoje de manhã, fui aos Arquivos Centrais e confirmei isso. É verdade, Sr. Doutor, tem toda a razão, eu devia ter desafiado o homem cara à cara... mas reconheço que fiquei apavorada, tive medo; não estava à espera de ouvir aquela voz de defunto a cantar. Parecia uma coincidência do diabo, vou ao arquivo, falto à escola e reencontro um morto! Foi demais para mim e foi por isso que tive que vir até aqui a correr, desculpe Sr. Doutor...

LUÍSA

O médico agarrou então no pulso de Leonor e disse com voz decidida: Venha, vamos daí, vamos lá à sua casa, depressa. Entraram no hall e depois na cozinha; examinaram a sala, os quartos, passaram pelas águas-furtadas e ninguém, nada, vazio total. No entanto, o ar de casa subitamente abandonada falava por si: marcas de duche deixado a meio, roupa no chão, flocos e duas notas de conto espalhados na bancada da cozinha, o armário aberto com peças de roupa a menos.

LEONOR

Eu estava arrasada e o médico dizia-me com toda a calma: não mexa, não mexa em nada, vê-se mesmo que o tipo fugiu a correr; aqui há realmente marosca e da grossa! Dê cá o telefone, dê cá. E lá chamou finalmente a polícia, Bah!

MARIA ALBA

Imagine-se agora a Dona Olga a comentar o ocorrido, espreitando de frente e no fundo dos olhos do médico: Mas isto... é o verdadeiro diabo entre nós! O perigo que a nossa Leonorzinha deve ter passado! Seja como for, ela está agora ali na Casa de saúde a compor-se com uns calmantes e eu vou lá passar outra vez daqui a um bocado.

LEONOR

E em Belas toda a gente repetia: Cuidado, olha que aqui sabe-se tudo, tudo, e... onde é que andará aquele bandido do Abel?

MARIA ALBA

E ele disse para mim de lábios fechados, no momento em que olhou para as nuvens densas e carregadas que atravessavam Lisboa: O que ouvi no noticiário a meio da tarde fez-me, de imediato, abandonar o carro numa colina isolada a norte de Alverca. Depois, segui a pé pela parte debaixo da auto-estrada a rebentar de trânsito e, sem qualquer norte, sem direcção ou rumo, corri entre estradas velhas, atalhos, barracas, prédios de quinze andares no meio da lama; acampamentos de ciganos, quiosques, armazéns clandestinos, gráficas; oficinas de recauchutagem de pneus, casas saloias, tascas cheias de ferroviários, viadutos e alguns passeios esventrados. Na feira do relógio, comprei um casaco e novos óculos escuros. Deambulei pela Avenida do Brasil, pelos lagos do Campo Grande e só me vinha à mente os olhos de Sara, os gestos de Leonor; Luísa a saltar as grandes ondas de Porto Covo. Advinham-me imagens coloridas das ruas de Banguecoque, da tromba de água do Índico, das casas brancas de Djibouti; via diante de mim as meninas de Porto Brandão, os aplausos sem fim do ‘Tostões e Biliões’, a minha desconhecida filha, ou os olhos ávidos da Dona Olga; revia o Porfírio gigante e cheio de tatuagens, o Maremagnum catalão; enfim, tudo aquilo era eu, perdido de sentidos, na Estrela ou no Jardim do Paço do Lumiar a contemplar um céu avermelhado e sem qualquer explicação. Senti-me tonto, fraco, frágil e sem forças. Sentei-me num dos bancos de jardim do Campo Grande e pensei - Já chega! Já chega. Chega de fugas, de fingimentos, de duplos. Chega de desventuras. Serei assim tão anormal? Não será possível contar toda esta minha história a alguém e ser ouvido? Poderei alguma vez vir a ser perdoado? Mas perdoado pelo quê?

SARA

Que homem este!

LEONOR

A todo o momento, a polícia podia cercá-lo, levá-lo, ou interrogá-lo.

MARIA ALBA

Mas o meu iluminado neto continuava a olhar para as nuvens densas e carregadas que atravessavam Lisboa e dizia: Estou aqui no Campo Grande, a sós, livre de querer e de ser, mas, seja como for, à vossa disposição, de todos. E pela cabeça tudo lhe passava: era o funeral da Estrela, os cartazes ostentando o rosto de Adão hilariante, o antigo fadista dos seguros, as belas putas do Pireu, o aeroporto de Dubai, as águas-furtadas de Barcelona e Sara e com ele, a sós, num sonho de Verão, em Cascais. Foi então que, sem medo de nada, de rigorosamente nada, o meu iluminado neto se meteu no metro. Era o tudo ou nada. Circulou, estação após estação, até ao Marquês de Pombal e daí até à Baixa-Chiado.

LUÍSA

Até que passou pelo Camões e começou a descer a Rua do Alecrim.

MARIA ALBA

Por ela, o destino da cidade se une ao Tejo, o que geralmente é coisa ofuscada, diminuída, que se encontra velada pela suave roupagem das colinas da cidade. Enquanto desce a rua, Abel relembra, por secretos augúrios da memória, a cor avermelhada dos céus da noite. A aurora boreal do longínquo dia em que nasceu, como lho contara eu mesma, sua avó, assim como os outros dois céus inauditos que o fizeram ser, por sortilégio, primeiro Caim e agora Abel.

LEONOR

Nada mais me restaria. Quem havia de dizer...e eu àquela hora ainda a tremer de medo, inundada de pânico, caída nos braços do médico e da Dona Olga!



ACTO IV
O TEMPO DO FOGO



MARIA ALBA

Depois, o meu iluminado neto sentou-se numa esplanada por trás da estação do Cais do Sodré, enquanto, em frente, aportava na gare marítima um cacilheiro carregado de pneus cor-de-laranja que pareciam globos armilares do antigo império. E foi nesse momento, após um último olhar para a outra margem, que Abel sentiu uma desmesurada necessidade de falar, de contar, de se expor fosse a quem fosse.

ZORBA

Na mesa ao lado, estava eu sentado. Naquele momento... eu era ainda um desconhecido e estava entretido com o meu silêncio e com o copo da minha Guiness. E, de repente, Abel dirigiu-se-me e disse: “Não tenha medo... mas o que está à sua frente é um homem que já viveu várias vidas e que se transforma em luz”. Respondi-lhe com calma, disse-lhe o meu nome - Olhe chamo-me Zorba! - Continuei a ouvir as suas frases bizarras e aceitei passear com ele, ao longo da cidade, enquanto me contava toda a sua história. Depois, apareceu a minha filha Isabel, para além de Júlia, amiga da minha filha e da sua avó, Dona Joana, essa já em Santos-o-Velho. Com o andar da tardinha, o grupo foi-se alargando: surgiu o senhor Gouveia na D. Carlos e, perto da Rua Nova de S. Bento, todos os restantes: o senhor deputado, o senhor professor de comunicação - o mais sisudo e calado - Lopamudra de Vidarbha, Chico e Sara de Belém e o Sr. Brihadratha. O sapateiro Palmeirim, por fim, só se juntaria ao grupo na Rua da Boavista, perto do Conde Barão. E todos os doze percorremos a Lisboa nocturna, naquela noite única de confissões inauditas. E a todos nós Abel contou a sua inusitada e estranha história.

MARIA ALBA

Parece que estou a ver o meu iluminado neto, nessa altura, virando-se para o grupo e sentindo o que Cristo sentiu no Jardim das Oliveiras: E agora aqui estamos, dizia ele, já o sol nasceu e a noite se evadiu. Desde o meio da tarde de ontem que venho contando toda esta longa história, e confesso que me sinto agora mais aliviado, menos misterioso. Ainda ontem, a esta hora, estava a entrar no fatídico duche e cantava, cantava, miraculosamente cantava. Era como se a voz de Adão me tivesse de novo visitado. Eis-me, aqui, de novo, entregue a vós e sem mais nada para dizer. Eu que sou Adão, Caim e Abel, ao mesmo tempo.

ZORBA

Até que ele repetiu a primeira frase que me havia dito: Não tenham medo, o que está à vossa frente é um homem que se transforma em luz. A frase, a tal frase.

MARIA ALBA

Foi então que o senhor Gouveia apontou com fúria para baixo e disse: Venham, venham por aqui, vamos para os baixos do Jardim de S. Pedro de Alcântara; lá... sempre estamos mais recatados, escondidos. E depois... logo se vê, haveremos de decidir o que fazer. E o grupo desceu pela Rua de S. Pedro, entrou no jardim e aí viu nascer a manhã.

ZORBA

E o sol levantou-se dos lados do Castelo, da Graça, de S. José e nós os treze, entre canteiros, passeando pelos bustos de Ulisses, Vénus e Minerva, evocando a idade de ouro, a bonança do vazio e a terrível aflição do momento.

MARIA ALBA

Até que, por volta das onze da manhã apareceram helicópteros, viaturas, buzinas, sirenes, comandos; o cerco era total. Em cima, o jardim foi praticamente fechado e o meu iluminado neto, diante de tal aparato, recuou até ao tronco do imenso limoeiro, sobre o abismo, encostado a nada, ao fim.

ZORBA

Ficámos os doze um pouco mais atrás, encostados à cerca de metal, aflitos, brancos de rosto, impávidos, esperando a voz, o alento, o sinal decisivo de Abel. E o nosso homem gritou, gritou, gritou muito alto para que o ouvissem e disse - Tenho uma granada comigo e estas doze pessoas são minhas reféns. Tudo o que quero é... esperar aqui neste sítio, até ao pôr-do-sol. Depois disso entrego-me, desde que me deixem contar tudo o que tenho a dizer.

MARIA ALBA

E os polícias que cercavam o local disseram uns para os outros: Ao crepúsculo? Mas o homem está maluco. O que vamos fazer, comissário? Tenham calma, não vêem que ele tem reféns e está armado? Nada de avançar, para já, com os comandos. Vamos esperar até ao pôr-do-sol, vigilantes, até porque esta espera pode não agoirar nada de bom.

ZORBA

À volta, por toda a Lisboa, uma multidão imensa rodeou o local e ouve quem gritasse em coro: canta, canta, canta Adão! Mas o silêncio de Abel manteve-se. Perdurou. Passaram algumas horas e nós mantivemo-nos aquietos, hirtos, dominados por uma qualquer grandeza sem nome. Por cima, as hostes amotinavam-se, iam-se agitando a pouco e pouco e, apoiados às grades, Luísa, Leonor, Dona Olga, o médico, Porfírio, algumas russas de Porto Brandão e gente e mais gente sem fim contradiziam-se nas implorações, impropérios e lisonjas.

MARIA ALBA

Era um desmedido caudal de gritos, alaridos, brados e ecos que ressoavam entre as fileiras da polícia e o cheiro a limão que envolvia a aparente calma de Abel. Nos telhados e sótãos dos prédios vizinhos, sobre estruturas improvisadas, as televisões transmitiam já em directo todo o folclore, a espera, o semblante enigmático e longínquo de Abel.

ZORBA

A tarde ia caindo, lenta, preguiçosa e, com ela, aumentava a expectativa, o temor, o tremor, a grande questão afinal: porquê o crepúsculo?

MARIA ALBA

Perto do pôr-do-sol, o comissário falou com o ministro e tudo foi decidido acerca da manobra. Os comandos avançariam por baixo e igualmente pelo ar, de helicóptero, tentando assim salvar os reféns e, ao mesmo tempo, não dando oportunidade a Abel para deflagrar a granada ou qualquer outro explosivo.

ZORBA

A multidão estava ao rubro, a excitação polvilhara a capital, o jardim começava a escurecer.

MARIA ALBA

E foi quando o meu iluminado neto ouviu ao longe o ruído dos helicópteros e o vasculhar das sebes no acesso ao jardim que, sem mais, correu subitamente para o meio dos doze e disse: abram um círculo à minha volta e protejam-me.

ZORBA

A cidade estava em suspenso, parecia calada; as sombras dos helicópteros a percorrerem telhados, uivos de cão ao longe; as cordas lançadas às grades, os comandos escalando por baixo do Jardim de S. Pedro de Alcântara.

MARIA ALBA

Quase ao mesmo tempo, a polícia de choque interveio à bastonada para evitar a histeria colectiva que se formara. Um atrito, uma espessa nuvem de gestos, sonidos de violoncelo, corpos por terra, uivos de cão ao longe e Abel entre nós os doze, de braços abertos, rindo muito alto, unindo os pés e lembrando-se como nunca de Alonso, o pirotécnico, o nómada fogueteiro de Trujillo.

MARIA ALBA

De repente, mal caiu o sol, Abel ficou com a pele toda macerada, em tons lilases, depois parecia vermelha, mais do que corada, quase em fogo. Passados alguns segundos, já os comandos saltavam as grades e os helicópteros apareciam sobre a Rua de S. Pedro, de súbito, sem que nada o fizesse esperar, Abel ficou incandescente como uma pira de lenho a arder e o seu corpo, agora longilíneo, afunilava-se como se o tronco, os membros e a cabeça se tornassem, de repente, numa vara muito alta em cor e em forma de fogo.

ZORBA

E mais se parecendo com um gigante fio-de-prumo de brasas virado para as nuvens, Abel subiu pelos céus de Lisboa como se fosse o pau, o simples pau de um magnífico foguete e, ao atingir a calote ainda azulada da esfera pelos últimos raios de sol; ao atingir a curvatura celeste reflectida nas águas avermelhadas do grande Tejo; ao atingir de par a par o arco perfeito da atmosfera das Tágides, este foguete que fora Adão, Caim e Abel transformou-se num colossal fogo de artifício que fez regressar Lisboa à lembrança da sua última aurora boreal.

MARIA ALBA

E tu, Zorba, espantado, quase destruído, sentiste uma estranha irritação nesse teu sinal em forma de serpente com duas cabeças.

ZORBA

É verdade, o pasmo era total e, por cima, expandia-se o clamor, a beleza da frágua vermelha; seguiram-se explosões e mais explosões na indolência dos ares, dos eflúvios de lume, luz e brilho que se expandiam em forma de trevo de três fogos.

MARIA ALBA

Foi assim durante mais de meia hora. Foi assim, na enigmática Lisboa, num dia de mil fortunas e luminárias.